Todo estudo que se debruce sobre uma cidade nova tem diante de si a oportunidade de observar alguns fenômenos em um contexto que evidencia de forma mais latente as contradições entre o projetado (desejado) e o realizado (materializado). Aqui, o objeto de análise é Palmas, capital do então recém-criado estado brasileiro do Tocantins, concebida por arquitetos e inaugurada no final do século 20 a toque de caixa em um movimento de ocupação da região norte do país.
Seu projeto é formado por um Plano Básico / Memória a cargo do escritório goiano GrupoQuatro, cujos responsáveis costuram diversos discursos na busca de certa originalidade urbanística, que resultou numa proposta de cidade que nos instiga a decifrá-la. Considerando o ano de projetação/inauguração, 1989, junto aos objetivos com que os arquitetos a idealizaram, Palmas se insere cronologicamente e teoricamente em um contexto de revisão dos dogmas funcionalistas da Carta de Atenas.
Se a principal corrente teórica da segunda metade do século 20 focou em questões urbanas, muitas das quais compartilhadas com os arquitetos da capital tocantinense (flexibilidade, qualidade ambiental, adequação à escala humana, resgate da centralidade tradicional, atenção ao pedestre, crescimento controlado para evitar suburbanização), como estas reverberaram no projeto implantado?
Parte-se da hipótese de que o projeto de Palmas representa um interessante paradoxo, ao reforçar paradigmas da cidade modernista, embora no discurso do plano a negasse plenamente. Conforme descrito em seu memorial, buscava-se revogar atitudes radicais racionalizadoras, bem como setorizações e imposições contra a natureza. No entanto, o traçado, o arranjo das funções e as espacialidades construídas resultaram numa cidade de uma tediosa quadrícula cartesiana em que a falta de usos combinados, a monotonia da repetição, a negação da rua e da calçada e a total priorização do transporte motorizado individual terminaram por moldar o inverso do que se pretendia.
Desta forma, o objetivo do presente trabalho é avaliar o projeto urbano de Palmas a partir das contradições entre as teorias funcionalistas do urbanismo moderno e as respectivas teorias revisionistas que emergem pós 1945.
A problematização das teorias urbanas modernas reside na lacuna entre o discurso e a prática – fato tão caro aos projetistas, que aqui é colocada sob lente de análise. Certo está de que a vida percebida nos trechos de cidade e nas arquiteturas construídas sob tais princípios funcionalistas, descortinou uma realidade muito distante da apregoada em entusiasmados textos doutrinários. A promovida morte da rua-corredor que a anulou como lugar de encontro, transformou-a unicamente em via de circulação, sem calçadas atreladas à edifícios conjugados nem a usos e pedestres em toda sua extensão. O bloco solto desalinhado da via empobreceu a vida coletiva, resultando em um tecido urbano descontínuo, fragmentado, de prédios distantes entre si, apenas alcançados por transporte motorizado. O carro, este promissor artefato da liberdade da vida moderna, transformou-se no grande vilão, já que o congestionamento, a poluição e o ruído terminaram por sentenciar sua perversa ação sobre o espaço urbano. O térreo sob pilotis descaracterizou os usos combinados, as fachadas ativas, os múltiplos acessos, induzindo a vazios desprovidos de apropriação e significação. A uniformidade dos conjuntos habitacionais estampava todos esses atributos, replicando uma espacialidade amorfa, de vida opaca, que em nome de uma desejada coletividade não conseguia potencializar valores locais dos lugares em que estavam inseridos. O resultado é um distanciamento entre o homem real, comum, autêntico e individual; e o homem ideal, universal e abstrato.
Os postulados da cidade funcional começaram a ser revogados durante os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – Ciam’s, órgão formulador e propagador deste ideário. Ao longo de suas dez edições de existência (1928 a 1956), acompanhou-se uma intensa transformação mundial que tem como marco a Segunda Guerra Mundial e a posterior reconstrução europeia. Valores urbanos divulgados como universais pensados para um homem-tipo, com emoções-tipo em requeridas cidades-tipo, em realidade, passaram a não alcançar a complexidade da vida pós 1945.
Uma nova pauta passava a exigir da arquitetura e do urbanismo soluções frente ao crescimento urbano advindo do êxodo rural, o desenvolvimento tecnológico, a questão ambiental, a emergente sociedade de consumo, o intenso uso do transporte individual motorizado, a volta a uma escala humana, a recuperação das qualidades humanas do contraste e da variedade, a deterioração dos centros históricos, entre outros.
O painel apresentado pelo casal Smithson no Ciam 9 (1953) intitulado Urban Re-identification Grid buscava romper com o tradicional grid corbusiano de apresentação que se rebatia em uma crítica em pensar a cidade por suas funções. Eles propunham que o elo que une a pessoa à cidade é a identidade, e essa só se desenvolve a partir de uma hierarquia de elementos associativos que passa pela casa, rua, bairro e cidade. Encontrar novas equivalências para essas relações deve ser, de acordo com o texto apresentado na ocasião, a principal tarefa relacionada à nova sociedade. Projetar a partir da facilidade de se movimentar pela cidade associada a uma densidade que permita a convivência do coletivo com várias atividades é um método de se opor ao isolamento das quadras monofuncionais estritamente residenciais (Neighbourhood) e dos edifícios habitacionais (Unité) estimulados pelas teorias modernas.
Desta insurgência, toma forma uma teoria da arquitetura que busca dar conta destes novos desafios, irradiando uma estrutura crítica revisionista que representa as “vicissitudes do pensamento moderno” (1), cujas ideias principais são aplicadas ao longo da segunda metade do século 20, vindo a compor, ainda que no discurso, o ideário do projeto urbano da capital tocantinense.
Com a constituição cidadã de 1988, fica definido o desmembramento da porção norte do estado do Goiás, denominando-o doravante Tocantins, resultado de anos de lutas separatistas que teve como mentor o político José Wilson Siqueira Campos. Empossado governador, entre a decisão de ocupar uma cidade já existente ou a criação de uma nova, optou-se pela segunda, correndo o ano de 1989 a contratação direta do escritório goiano GrupoQuatro, na época a cargo dos arquitetos Luiz Fernando Cruvinel Teixeira e Walfredo Antunes de Oliveira Filho.
No documento intitulado “Projeto da Capital do Estado do Tocantins – Plano Básico / Memória” (2), os arquitetos de Palmas encarregados de criar essa artificialidade lançaram mão de argumentos que nos fazem acreditar ser esta uma nova cidade em revisão de conceitos anteriormente desgastados, já não tão adequados para uma realidade do século 21. É nítida uma posição anti-Ciam no discurso dos arquitetos bem como uma oposição as cidades high-techs que deixam “muito a desejar em relação ao verdadeiro bem-estar do homem em seu habitat” (3). Porém, na defesa do idealizado já aparecem alguns paradoxos.
Josep Maria Montaner (4) afirma que o Movimento Moderno, impulsado por um caráter positivista, pensava a arquitetura a partir de um homem puro e perfeito. Este usuário idealizado, possuía sentimentos e atitudes que estavam em consonância a uma nova realidade, cuja ética e moral se ajustavam por meio de uma funcionalidade racionalizante via nova organização espacial e tipológica. No Memorial de Palmas, lemos “nestes espaços, integrados com a natureza através de um traçado simples e lógico, os habitantes devem viver e conviver em harmonia consigo mesmo, com a comunidade e com a natureza”, de modo que “esta consciência social e ecológica deve refletir-se em ruas tranquilas”, onde “a educação será uma tônica visto quase inexistirem os conflitos de trânsito” (5). Mais à frente, na crença infindável outorgada ao plano urbano, revelam por clarividência que “o homem conviverá assim, em harmonia com sua cidade, respeitando a natureza e os outros cidadãos” (6). Assim, às portas do século 21, nos encontramos com um projeto de raízes fincadas na utopia maquinista, já que atribui ao traço arquitetônico o poder transformador do ser humano, cuja descrição no Memorial de Projeto, o faz parecer habitar em um tipo de paraíso terreno que o uniformiza em seus aspectos comportamentais, sentimentais e espirituais.
A malha urbana de Palmas se estrutura em dois grandes eixos perpendiculares formados pela avenida Teotônio Segurado (Norte-Sul) e Juscelino Kubitschek (Leste-Oeste), em cuja intersecção se dispõe o centro cívico, formado pela Praça dos Girassóis (sede do poder estadual). A partir deste centro, são edificados os “setores compostos de habitação (alta e baixa densidade), comércio e serviços em função da demanda” (7) e replicam-se vias paralelas transversais entrecortadas por rótulas em seus cruzamentos em nível por onde aflui o principal trânsito da cidade, conformando as grandes quadras residenciais de aproximadamente 700x700 metros quadrados.
No memorial, ao disparar um provocativo discurso contra Corbusier – que defendia a técnica moderna da construção em altura e a geometria nos traçados – os arquitetos de Palmas dizem refutar qualquer conceito de “cidade absolutamente geométrica, entrecortada por vias rigidamente ortogonais, setorizada em obediência a uma série absoluta de prioridades assumidas” (8), incorrendo na prática, em uma peculiar contradição.
A escolha do tecido reticular diz se justificar pela facilidade econômica na execução e na garantia de sua expansão em obediência ao traçado proposto, onde “é necessário rigidez no conjunto geral, induzindo um traçado que não venha alterar-se a todo momento” (9). Sob este aspecto, o plano urbano de Palmas não tem começo, meio e fim (como Brasília e Chandigarh), já que a malha, podendo ser reproduzida ad infinitum, é a que melhor responde ao desejo dos projetistas de que a cidade tivesse um crescimento controlado “que possa reproduzir-se conforme a necessidade de implantação” (10), com uma ocupação por etapas e em “fitas”, partindo de uma parte central e que paulatinamente ao alcançar as densidades desejadas, abriria mais quadras para sua urbanização.
Já em 1964, o arquiteto Fumihiko Maki sugeria em seu artigo Investigations in Collective Form, a existência de uma forma coletiva que admitisse elasticidade e flexibilidade, podendo ser alterada com o passar dos anos mesmo que submetida a um princípio comum de organização. Para ele, a forma coletiva deve ser flexível o suficiente para admitir crescimento e mudança, e menciona que “as cidades hoje tendem a ser fisicamente e visualmente confusas. São padrões monótonos de elementos estáticos. Falta-lhes características físicas e visuais em consonância com as funções e tecnologia que as compõe” (11). Assim, a riqueza da forma coletiva percebida por Maki nas cidades históricas advém da multiplicidade de elementos presentes e que poderiam ser revelados pelas possibilidades que um novo desenho urbano pudesse incentivar. No projeto do GrupoQuatro aparece uma forma de cidade que condiciona uma vida cotidiana encerrada em um conjunto estático, que não permite um desenvolvimento elástico nem flexível, moldando uma paisagem urbana fundamentada na repetição da quadrícula, cuja dominância da técnica no “vir a ser” descarta – pela racionalidade do plano – qualquer possibilidade do orgânico e do espontâneo.
No segundo pós-Guerra, Josep Lluis Sert abandona a metáfora da máquina simbolizada pela visão funcionalista dos primeiros Ciam’s e passa a compreender as cidades como organismos vivos. Esta transição fez com que o arquiteto catalão passasse a aceitar o local, concebendo cidades como um ato que não está isolado de sua região de influência, introduzindo em seu texto The human scale: key to the measure of cities (1957) os conceitos de flexibilidade e crescimento orgânico. Ao contrário do projeto de Palmas, que ignora a região que está inserida (12) refazendo nos confins do Brasil a defasada ideia da tábula-rasa da modernidade, Sert mira a qualidade dos tecidos urbanos das cidades históricas, abrindo uma visão mais contextualista afirmando que o sistema de espaços públicos abertos de uma cidade não são os grandes trechos residuais livres e sem projeto promovidos pela doutrina funcionalista, e sim, aqueles que são pensados à escala humana, conectados a diversos usos e facilitadores do encontro.
Na capital tocantinense, os arquitetos negam uma cidade que seja “uma imposição humana contra a natureza” (13), rebatendo pelo discurso a afirmação de Corbusier “uma cidade! É o domínio do homem sobre a natureza. É uma ação humana contra a natureza” (14), de modo que definem, enfim, que “o projeto da futura capital do Estado do Tocantins foi, portanto, precedida de um outro tipo de sonho: ecológico e humanístico” (15).
Por mais que o quadrilátero definido para a construção de Palmas tenha características topográficas majoritariamente planas, não se pode deixar de considerar a variedade de formas da Serra do Carmo (à Leste) e a sinuosidade do Rio Tocantins (à Oeste) sendo ambas cortadas transversalmente por ribeirões serpenteantes que nascem na Serra e desaguam no rio. Este caminho orgânico, que esculpe linhas de força no terreno escolhido, foi totalmente descartado ao impor neste sitio geográfico uma quadrícula rigidamente ortogonal, que anula qualquer possibilidade de integração entre o traçado e a natureza circundante. Ao assumirem não querer qualquer “radical atitude racionalizadora” (16), terminam na prática em desenhar uma cidade que prevalece tanto a imposição quanto a divisão funcional por áreas de atividade e ênfase na circulação viária.
A insipidez na similar disposição das quadras entre tediosas avenidas retilíneas provoca três contradições que vão contra os princípios almejados pelos próprios autores do projeto, ao considerarem que “prevaleceu uma visão ecológica” que “conduziu os trabalhos a uma busca holística entre o conjunto social, as partes edificadas e o ambiente que irão ocupar” (17). Primeiramente, as próprias quadras não são pensadas em sua relação holística, ou seja, que estabelecesse uma harmonia com o conjunto edificado de modo que foram projetadas como unidades autônomas introvertidas com apenas dois ou no máximo três acessos, cujos limites são os próprios fundos dos lotes, que obrigatoriamente devem ser murados. Em seguida, como consequência, já que junto a estes muros que definem os próprios limites das grandes quadras acontecem as calçadas margeando as vias de circulação, as vias arteriais se dão em total desconexão com frentes de edifícios e eventuais atividades, conformando uma infinidade de espaços livres totalmente residuais, sem tratamento adequado nem uso definido – tal qual criticado por Sert quarenta anos antes. No final, o desenho urbano proposto induz a uma tipologia de quadra sinônimo de pequenos protótipos condominiais (18) que negam totalmente o espaço público, voltando-se para o interior acreditando criar laços de identidade e pertencimento, mas que em realidade apenas conseguem moldar o isolamento e o anonimato. Apenas lembrar que Jacobs já declarava “devemos refutar qualquer modelo que encare os bairros como unidades auto-suficientes ou introvertidas” (19). Na capital tocantinense, ao circular pela cidade, não sabemos o que ocorre em suas quadras, nem tampouco há interesse em conhecer uma quadra vizinha, já que foram concebidas para serem isoladas (20), tal como descrito em seu memorial, “as vias internas às quadras terão uso exclusivamente local, não permitindo a circulação de tráfego de passagem” cujos acessos “deverão ser limitados de forma a minimizar as interferências com as vias arteriais” (21).
Já no interior de cada quadra encontramos vias de acesso locais, que fazem o acesso exclusivo às residências e pequenas praças com a previsão de possuir escola primária/creche, comércio unicamente local e alguma estrutura de lazer como quadra e playground. Enquanto os autores do projeto afirmam que “a noção de quadra fechada é uma noção que quando bem trabalhada dá uma noção de pertencimento, de vizinhança, de uma progressão de sossego” (22), o que se percebe de fato é que o parcelamento tradicional dos lotes não alcança qualquer modelo de coletividade, já que as quadras urbanizadas pelas incorporadoras privadas – que são proprietárias da gleba e detentoras dos lotes – apenas reproduzem um desgastado e lucrativo sistema imobiliário de compra/venda de terra urbana.
O ordenamento urbano de Palmas não está pensado pela combinação da pluralidade de atividades. Ele parte, em realidade, do arranjo de suas funções (administrativas, comerciais, residenciais, de lazer e indústrias) com viés restritivo e singular. Ao lembrar que os arquitetos autores do projeto buscaram justamente a negação da cidade funcional, em que “a absoluta racionalização das funções humanas na cidade já se tornou passível de revisão” (23), percebe-se que foi justamente a separação de usos que moldou a urbanização da capital. Escreve Sert em 1966 ante o Riba,
“o uso residencial separado do uso comercial ou de negócios e vinculado apenas às instalações recreativas [...] é um quadro bastante ingênuo e desprovido de vitalidade. A mescla de usos do solo tem contribuído em animar as melhores paisagens urbanas” (24).
Em 1965, Christopher Alexander em seu artigo A city is not a tree, avalia elementos que interferem no projeto urbano e na vida cotidiana, recorrendo a uma cena comum em Berkley, Califórnia (25). Neste relato há uma farmácia em uma esquina diante de um semáforo e na entrada da farmácia, na calçada, há uma máquina de vender jornal. Enquanto o semáforo de pedestres está vermelho, pessoas aguardam na esquina lendo as manchetes do jornal, outras compram o jornal e outras apenas olham para o semáforo. Este exemplo mostra um conjunto de elementos funcionando simultaneamente, sendo alguns fixos (a máquina, o semáforo e a calçada) e outros variáveis (pessoas, jornais, dinheiro e impulso elétrico). Na análise de Alexander, a atividade comercial funciona como um catalisador da vida urbana, permitindo novas dinâmicas que trazem a cidade mais pessoas às ruas.
O zoneamento inicial da capital tocantinense configurou um centro administrativo destinado a edifícios isolados única e exclusivamente governamentais. A monumental avenida Teotônio Segurado (definida com uma largura de 150m) foi pensada como o principal eixo de comércio e serviços para toda a cidade, não admitindo edifícios de uso misto e decretando que aqui, única e exclusivamente, deveriam se localizar escolas, hospitais, hotéis, templos e outros tipos de comércio e serviços de grande porte. Nas grandes quadras residenciais não são admitidos comércio e serviços mais abrangentes, limitando-as a pequenos estabelecimentos de uso e acesso estritamente local. Os equipamentos de lazer e cultura estariam dispostos apenas ao longo das áreas verdes intersticiais e na Avenida Parque que margeia a represa enquanto que equipamentos comerciais especializados como revendas de automóveis, depósitos de materiais de construção e postos completos de gasolina não poderiam ser implementados no tecido urbano central e sim, mais afastados próximo à rodovia TO-050 que margeia a cidade. À universidade, foi destinado um terreno junto à represa, distante 10km do centro da cidade.
Ao definir que “as redes principais de serviços e sistemas urbanos de abastecimento, estão previstas sempre no sentido Leste-Oeste” (26) restringe-se as avenidas Norte-Sul a explorar este tipo de atividades. Por cruzar a cidade em toda sua extensão, estas avenidas Norte-Sul muito movimentadas – que nada mais são do que fundos de quadras murados de lotes residenciais – estão se subvertendo em avenidas comerciais, potencializando uma urbanidade antes inexistente. O resultado é uma transgressão à lei que não considerava a dinâmica de uma urbe em formação. Atualmente, a infinidade de calçadas que ladeavam muros opacos, agora faz par com frentes de lojas, bares e restaurantes com mesas nas calçadas. Este é um fenômeno percebido em muitas avenidas Norte-Sul na cidade, que são atualmente das mais movimentadas e animadas comercialmente. Sai o rígido zoneamento e entra a diversidade de funções.
O casal Smithson afirmava que “a rua não é apenas um meio de acesso, mas também uma arena para expressão social” (27), cuja relação entre o edifício, a calçada e a rua podem inspirar novas formas de arquitetura e projeto urbano que favoreçam o encontro. É uma alternativa que vai contra a abolição da rua-corredor, cujo ideal corbusiano de mecanização, padronização e despersonificação da rua no cotidiano, afastou os pedestres de seus domínios mantendo-os dentro de térreos-parques desprovidos de qualquer significação. Por este motivo, é que algumas das palavras de ordem de Alison e Peter Smithson são identidade e associação, ou seja, resgatar a identificação das pessoas com o espaço que habitam e circulam associadas às atividades que ali desenvolvem e podem vir a ser desenvolvidas. A indicação dos arquitetos ingleses é que há de se alinhavar o desenho urbano proposto, com atividades atreladas a tipologias arquitetônicas que permitam aos usuários um verdadeiro sentimento de pertencimento e identificação com o espaço que usufruem da cidade.
O sistema viário de Palmas foi pensado para atender majoritariamente os seguintes objetivos: “a eficiência da circulação de pessoas e mercadorias, e o custo econômico de implantação da infraestrutura urbana” (28). É uma visão funcionalista da rua, projetada como um local de circulação em alta velocidade que define perímetros de quadras. Aqui ela é um dado técnico a ser contabilizado entre as necessidades de bom funcionamento da cidade, percebido por palavras de ordem como eficiência e custo. Em Palmas, a trama regular de vias principais favorece a fruição de veículos motorizados em que não foi pensado como solucionar os deslocamentos dos pedestres pela cidade – ou ao menos dedicar alguma solução urbanística contextualizada em sua realidade século 21.
Jacobs diz que “as ruas e suas calçadas, principais locais públicos de uma cidade, são seus órgãos mais vitais” (29) e Ghel define que das necessidades psicológicas que as pessoas precisam nos espaços públicos estão “a necessidade de contato, a necessidade de conhecimento e a necessidade de estímulo” (30). Ao conjugar calçadas junto às vias arteriais com os fundos de lotes murados, reproduz-se uma paisagem urbana amorfa, não estimulando a urbanidade, acanhando pedestres de circular por suas vias, afinal, a falta de contato visual, as longas distâncias por conta da extensão das grandes quadras margeadas por largas avenidas e os escassos atrativos nos percursos murados terminam por confirmar que “a calçada por si só não é nada. É uma abstração. Ela só significa alguma coisa junto com os edifícios e os outros limítrofes a ela ou calçadas próximas” (31).
Outro aspecto que se relaciona a divisão das quadras é o uso delas decorrentes. Essas quadras residenciais, que eram limitadas a receber comércio estritamente local, estão sendo apropriadas pelo setor terciário, de modo a receber usos que transbordam para toda a cidade, criando uma dinâmica até então não permitida no planejamento inicial. Esta singela transformação faz com que quadras, como 106 Sul, 204 Sul, 304 Sul, 504 Sul, 307 Norte, tenham um variado fluxo de pessoas, incorrendo uma vida urbana mais animada, complexa e variada. Tal qual Alexander (32) indica, as vantagens de uma estrutura mais complexa com sobreposição de funções faz com que a vida cotidiana seja mais rica em experiências, favorecendo espacialidades que permite a convivência e a circulação, recordando a Gehl que “entre todas as atividades que têm lugar no âmbito público, a circulação – de pessoas e mercadorias em seu caminho de um lugar para outro – é a mais completa” (33).
Mais um interessante paradoxo é o fato de que uma das vertentes da ecologia urbana associada ao bem-estar é a diminuição do uso de transportes motorizados fazendo prevalecer os deslocamentos a pé ou por modos de baixo consumo energético, como bicicletas e patinetes. Exemplos vistos em algumas cidades mundiais colocam na pauta a adaptação de trechos de cidades que possam melhor incentivar tais modais, de modo que em uma cidade como Palmas, que já nasce com o título de “Capital Ecológica” era de se esperar um desenho urbano que colocasse o pedestre como protagonista. No Plano Básico/Memória, a palavra calçada não aparece uma única vez.
O processo de ocupação da capital tampouco sanou essa contradição, já que esta foi sendo urbanizada carente de sombreamento, ciclovias, adequada pavimentação e acessibilidade, cujas calçadas – quando existentes – não são nada respeitosas a escala humana, muitas vezes de terra batida, sem rampas nos cruzamentos nem atreladas a um sistema de circulação que favoreça segurança e variedade. Neste critério, refutamos veementemente o ingênuo argumento de Silva que afirma em Palmas “o que realmente inibe a circulação de pedestres é o clima – o sol escaldante durante todo o ano, torna inviável andar na rua mesmo a curtas distâncias” (34), de modo que defendemos que o adequado projeto dos sistemas de espaços livres e de circulação de uma cidade criam a ambiência necessária para que as pessoas se movam das mais diferentes formas, bastando apenas lembrar casos de cidades espanholas (Granada, Sevilha, Córdoba e outras) cujos habitantes, mesmo em meio às altas temperaturas no verão, continuam percorrendo seus espaços a pé e permanecendo nos espaços públicos devidamente pensados para que sejam usufruídos em todos os momentos do ano. Em suma, trata-se de um problema projetual a ser previsto e resolvido e não apenas um aspecto meteorológico. Saber tirar partido das condicionantes climáticas no arranjo urbano e nas dinâmicas que ele irá impulsionar, deveria ser uma das premissas para uma cidade planejada que diz querer ser “ecológica” e diz partir de um ideal “humanístico” de “coletividade”.
A guisa de conclusão, pontuamos que o centro simbólico da capital tocantinense não está pensado como o grande espaço de encontro da cidade, de modo que ali não se pensou em ubicar o teatro, a biblioteca, a universidade e os grandes equipamentos de integração da população como Sesc, Estádio e Centros de Lazer. No promontório principal, a mando do mentor Siqueira Campos, que “era a fonte de todas as decisões, absolutamente todas” (35), se coloca o palácio governamental e as secretarias, realçando a obviedade, de que se está edificando uma capital administrativa regida por um corpo político que do alto tudo assiste. Essa grandiosidade projetual, materializada na imensidão da Praça dos Girassóis (36) preenchida por edifícios isolados desconectados uns dos outros, está muito distante do que se entende por centro cívico nas acepções colocadas a partir do Ciam 8 e promovida pelos arquitetos das gerações seguintes. Sert, no discurso de abertura desta edição do Congresso de 1951, diz “o coração da cidade trata dos problemas urbanísticos daqueles setores urbanos que são lugar de congregação de massas, centros de vida coletiva e, ao mesmo tempo, símbolos da cidade mesma” (37), alabando o núcleo central como o local de reunião das artes, dos monumentos e das praças públicas.
A monumentalidade lograda em Palmas representa a celebração da autoridade por formas construídas, terminando por confirmar o manifesto de Sert, Léger e Giedion de décadas anteriores, onde em uma sociedade que não é capaz de reconhecer as forças criativas de sua época, não consegue construir monumentos ou edifícios públicos integrados aos seus centros urbanos e sim apenas “receptáculos vazios” (38).
Considerações finais
Este trabalho buscou explorar alguns paradoxos, paradigmas e disparidades entre a cidade nova de Palmas e algumas teorias urbanas revisionistas que emergiram a partir do segundo pós-guerra.
Respeitando seus respectivos contextos históricos mas inserindo o projeto de Palmas numa mesma cronologia de revisão do pensamento urbanístico moderno, ao longo do texto aparecem elementos teóricos e práticos que vão colocando em xeque a gênese conceitual do desenho urbano proposto pelo escritório GrupoQuatro, que não incorpora algumas das principais críticas ao funcionalismo e à segregação de usos, em que aparentemente afirmavam perseguir.
A malha urbana reticular que prioriza o transporte motorizado realça o pouco tratamento com a escala humana, que é o cerne das discussões revisionistas pós 1945. A cidade planejada sem prioridade ao pedestre no conjunto geral nem tampouco a opção de transporte público de baixo consumo energético, não traduz o conceito de “ecológico” que o Memorial diz se fundamentar. O desenho urbano repetitivo incorreu na monotonia de grandes quadras introvertidas, de parcelamento tradicional, entregues as incorporadoras imobiliárias que não exploram nenhum caráter de vida pública comunitária que poderia emergir da experiência do novo, ignorando por completo os ideais de “coletividade” almejados no projeto original.
Enfim, encontramos nas experiências apontadas em nosso estudo de caso, algumas evidências de que o projeto de Palmas já revela em sua origem um total descompasso aos elementos discutidos nas teorias urbanas revisionistas de coletividade, multiplicidade e resgate do verdadeiro valor da rua e da calçada na vida cotidiana. Perde-se sucessivas oportunidades, que a partir do fenômeno de uma cidade nova, poderia se aspirar em um arranjo que incentivasse a identidade, o pertencimento e uma melhor qualidade na vida entre os edifícios. Nos confins do Brasil, vemos repetidamente a subordinação do indivíduo a um plano urbano de matizes autoritários que quer condicionar seus comportamentos e sentimentos cotidianos. É um delírio anacrônico, que refaz na imensidão do cerrado a defasada ideia da tábula rasa da modernidade, cujo projeto é o paradigma do contrário do que se buscou ser.
notas
1
VIANNA, Fabiano Borba. O plano de curitiba 1965-1975: desdobramento de outro moderno brasileiro. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2017, p. 10.
2
GRUPOQUATRO. Projeto da Capital do Tocantins. Plano Básico/Memória. Palmas, Fundação Cultural de Palmas, Acervo Histórico Casa Suçuapara, 1989 (mimeo).
3
GRUPOQUATRO. Op. cit., p. 2.
4
MONTANER, Josep Maria. Después del movimiento moderno. Barcelona, Gustavo Gili, 2011.
5
GRUPOQUATRO. Op. cit., p. 2.
6
Idem, ibidem, p. 2.
7
Idem, ibidem, p. 8.
8
Idem, ibidem, p. 3.
9
Idem, ibidem, p. 4.
10
Idem, ibidem, p. 6.
11
MAKI, Fumihiko. Investigations in Collective Form. St. Louis, Washington University, 1964, p. 3.
12
Para o histórico desta região com as populações que já residiam nas imediações bem como etnias pré-existentes, ver Anjos (2017) e Lira (2011).
13
GRUPOQUATRO. Op. cit., p. 3.
14
CORBUSIER, Le [1924]. La ciudad del futuro. Buenos Aires, Ediciones Infinito, 1971, p. 7.
15
GRUPOQUATRO. Op. cit., p. 3.
16
Idem, ibidem, p. 3.
17
Idem, ibidem, p. 6.
18
Há casos atuais de quadras que já discutem seu fechamento com guarita e controle de acesso e, inclusive, a criação de quadras já condominizadas no centro da cidade, como os condomínios de alto-padrão Aldeia do Sol e Alphaville.
19
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 125.
20
Exceções estão ocorrendo na apropriação de quadras residenciais de Palmas por usos de comércio e serviços, passando a refazer novas dinâmicas territoriais na cidade. Para isso, ver o artigo de Bottura (2018).
21
GRUPOQUATRO. Op. cit., p. 13.
22
ANTUNES, Walfredo. Depoimento a Sarah Afonso Rodovalho. Palmas, do projeto ao plano. Dissertação de mestrado. Palmas, PPGCiamb UFT, 2012, p. 171.
23
GRUPOQUATRO. Op. cit., p. 3.
24
SERT, Josep Lluís. Opiniones cambiantes sobre el entorno urbano. Cuadernos de Arquitectura y Urbanismo, n. 93, Barcelona, COAC, 1972, p. 44.
25
ALEXANDER, Christopher. A city is not a tree. In THACKARA, John (Org.). Design after modernism: beyond the object. London, Thames and Hudon, 1988.
26
GRUPOQUATRO. Op. cit., p. 5.
27
SMITHSON, Alison; SMITHSON, Peter. Urban Structuring: Studies of Alison & Peter Smithson. London/ New York, Studio Vista/Reinhold Publishing Corporation, 1967, p. 8.
28
GRUPOQUATRO. Op. cit., p. 8.
29
JACOBS, Jane. Op. cit., p. 29.
30
GEHL, Jan [1971]. La humanización del espacio urbano. Barcelona, Reverté, 2017, p. 127.
31
JACOBS, Jane. Op. cit., p. 29.
32
ALEXANDER, Christopher. Op. cit.
33
GEHL, Jan [1971]. Op. cit., p. 127.
34
SILVA, Valéria. Girassóis de Pedra. Presidente Prudente, Unesp, 2008, p. 88.
35
ANTUNES, Walfredo. Depoimento a Sarah Afonso Rodovalho (op. cit.), p. 174.
36
Cabe destacar que a Praça dos Girassóis, com 571 mil metros quadrados se mantém no bizarro ranking da segunda maior praça urbana do mundo. SILVA, Valéria. Op. cit.
37
SERT, Josep Lluís. Centros para la vida colectiva. Ponencia del VIII CIAM. In COSTA, Xavier; HARTRAY, Guido (Org.). Sert, arquitecto en Nueva York. Barcelona, MACBA, 1997, p. 127.
38
SERT, Josep Lluís, LÉGER, Fernand, GIEDION, Sigfried. Nueve puntos sobre la monumentalidad. In COSTA, Xavier; HARTRAY, Guido (Org.). Op. cit. p. 15.
sobre os autores
Roberto de Almeida Bottura é arquiteto e urbanista pela PUC Campinas (2006) e mestre em Teoria e História da Arquitetura pela Universitat Politécnica de Catalunya (2011). Doutorando na FAU USP e professor adjunto do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Tocantins.
Heliana Comin Vargas é arquiteta e urbanista pela FAU USP (1974); economista pela PUC SP (1982); mestre (1986) doutora (1993), e professora titular pela FAU USP. Autora do livro Espaço Terciário (Manole, 2018).