O espaço público, compreendido não só como um bem do Estado, mas principalmente como um bem da população e um direito como local de troca e convívio coletivo, determina fortemente nossa conduta como cidadãos. Boas e más experiências no espaço público têm a capacidade de modificar percepções dos lugares e alterar comportamentos e hábitos nas nossas formas de habitar. Tudo isso impacta na imagem e organização da cidade que hoje temos e as impressões que ela nos provoca, o que, por sua vez, determina a ideia de cidade e cidadania que cada um possui. Essas características e impressões podem influenciar, inclusive, na relação afetiva que se tem com a cidade, que é paralela à relação mais racional que as pessoas têm com ela, ou seja, a relação cognitiva. É possível conhecer e estar muito consciente da cidade em que se habita, mas não necessariamente estar consciente de como ela nos determina e influencia nas condutas cotidianas e nas relações sociais.
Por outro lado, essas duas formas de relação – afetiva, em relação ao uso e apropriação, e cognitiva, enquanto estar cientes da natureza pública desse espaço apropriado – podem se manifestar de forma mais intensa uma sobre a outra, condensando, inclusive, percepções errôneas e interpretações ambíguas da cidade, convertendo-a em objeto de receios, medos e preconceitos (1). Nesse sentido, o papel do estado é fundamental, pois é ele quem deve velar pela adequada gestão e utilização do espaço público e, consequentemente, pelo bem-estar de seus cidadãos. Existe, portanto, uma estreita relação entre espaço público, sua administração, gestão e a experiência cidadã.
No Chile, o Artigo 3º do Decreto de Lei 1939 de 1977, modificado recentemente em fevereiro de 2019, considera que
“Os bens do Estado, pela sua importância no desenvolvimento econômico e social do país, devem ser administrados em forma tal que seu controle não crie obstáculos à sua aplicação oportuna aos objetivos do Governo [...]. Uma eficiente administração dos bens do Estado faz imperiosa a necessidade de contar com um instrumento legal que permita obter deles um ótimo aproveitamento” (2).
O Ministério de Bens Nacionais do Chile é o responsável por administrar e gerir o patrimônio fiscal do país, tanto as pequenas propriedades como todos os bens nacionais de uso público, por meio de normas e políticas que beneficiem o desenvolvimento econômico, social e territorial dos cidadãos.
Por outro lado, e como colocado por Ignacio Lira (3), se considerarmos a relação entre investimentos em habitação e espaços públicos, no Chile, como na maioria das cidades latino americanas, durante anos a prioridade das políticas públicas esteve focada na produção da habitação, tendo como primeiro objetivo “dar um teto a todos os chilenos”, ficando o espaço público relegado a um segundo plano. As consequências se revelam não só nos altos níveis de desigualdade na distribuição das áreas verdes e espaços públicos na cidade, mas também na sua qualidade. Em termos simples, bairros mais ricos possuem mais e melhores áreas verdes e espaços públicos.
O caso de Santiago, explica Lira, é emblemático.
“Composta por 34 comunas, 9 delas concentram a metade das áreas verdes, sobretudo as do setor nordeste, onde se alcançam índices de até 20 m2 de áreas verdes por habitante, enquanto em outras comunas, do sul e oeste de Santiago, alcançam no máximo 1 ou 2 m2 de superfície verde por habitante. A média da cidade é 4,5 m2 por habitante e, se tomamos como referência a recomendação da Organização Mundial da Saúde, que estabelece um padrão de 9 m2 por habitante, constatamos que ainda temos muito trabalho por fazer” (4).
Em um cenário como o descrito, a possibilidade de conquistar e requalificar espaços com vocação pública, que realmente contribuam na vida coletiva, estimulando experiências de sociabilidade e troca, é um desafio relevante, se considerarmos que para alcançar esse objetivo não se trata só de uma intervenção física, urbana, paisagística e arquitetônica, mas também de um componente socioespacial. Nesse sentido, o papel do Estado é limitado, pois se, por um lado, existem investimentos e projetos voltados para esse objetivo, por outro, a capacidade de nutrir esses espaços de atrativos e atividades não depende só da iniciativa pública, mas também da parceria com os entes privados que reconheçam, nessas intervenções, oportunidades de investimento e rentabilidade. Em outras palavras, se trata de um componente especulativo que, sendo lícito, é também um risco para a durabilidade de apropriação e uso do espaço público.
Nessa dinâmica de relações entre o espaço em que as ações acontecem e o tempo em que demoram a acontecer, são duas, principalmente, as formas em que se dá essa especulação. Uma delas é a incerteza em relação ao futuro de algo, ou seja, o que esperar de determinada ação. No campo que nos interessa, a cidade, trata-se de uma incerteza em relação ao que esperar de determinado projeto ou intervenção em um ambiente, nas diferentes escalas em que essa ação opera. Uma segunda leitura, e possivelmente a mais complexa, corresponde à relação entre o solo urbano e o componente financeiro a ele associado, que se expressa como um conflito entre a cidade como um direito e sua interpretação como um bem de consumo e as consequentes dinâmicas mercadológicas que isso implica. A especulação, nesse sentido, é uma pressão diante do planejamento urbano, pois submete às regras do mercado um “produto” que, na realidade, deveria ser um direito.
As chamadas plazas de bolsillo são uma expressão da parceria público-privada, sustentada na transitoriedade e democratização de terrenos predominantemente de propriedade pública, que tenta romper com esse modus operandi. Esse artigo apresenta o programa das Plazas Públicas de Bolsillo de Santiago, uma iniciativa de ocupação de terrenos baldios públicos por praças temporárias, mediante ações de urbanismo tático, em parceria com a iniciativa privada.
Partiremos com uma seção que trata dos antecedentes das Plazas Públicas de Bolsillo, seguida de uma discussão sobre a importância dos usos temporários e das ações táticas como alternativas ágeis para ativação e destinação de usos sociais a espaços vazios ou subutilizados, para, na sequência, apresentar o programa das Plazas Públicas de Bolsillo, suas características, desdobramentos, limitações e desafios.
Antecedentes: pocket parks e parques de bolsillo
O conceito de pocket park foi desenvolvido na década de 1960 pelo então comissário do departamento de Parques de Nova York, Thomas Hoving. Parte da ideia da adequação do conceito do parque urbano a pequenos interstícios da cidade (“pocket” em inglês ou “de bolso” em português), adaptando a proposta de lazer vinculada ao controle social e à separação simbólica da cidade, mediante o controle de acesso e regras explícitas de uso, originária dos parques urbanos do século 19.
Espalhados em pequenos lotes pelas grandes e densas cidades, os pocket parks foram uma forma de criar um sistema de espaços verdes de respiro para os cidadãos. Ao criar o conceito, Hoving desenvolveu alguns princípios que deveriam guiar a localização e implantação desses miniparques, estipulando padrões a serem seguidos. Os princípios básicos (5) sugerem que o novo espaço de lazer 1 esteja localizado em ruas movimentadas, para maior atração de pessoas; 2. ofereça opções de alimentação a preços acessíveis; 3. ofereça cadeiras e mesas soltas para que as pessoas possam configurar o espaço de acordo com seus desejos; 4. contenha queda d'água para proporcionar um foco e um bom motivo para visitação, além de um ambiente tranquilo e de privacidade criado por meio do som; 5. contenha sombra de árvores no verão, sem que sua estrutura seja tão densa a ponto de evitar a passagem de luz; e, finalmente, 6. forneça iluminação que produza calor em dias frios (no caso de lugares com clima temperado).
Os princípios descritos por Hoving foram ao encontro dos conceitos de Whyte (6) que, no livro The social life of small urban spaces, aponta algumas características presentes nos espaços públicos de sucesso, como sentabilidade, água, comida, sombra e contato com a rua.
O primeiro pocket park construído de acordo com os princípios de Hoving e os conceitos de Whyte foi o Paley Park. A praça foi concebida como um protótipo de espaço público pelo escritório Zion and Breen (7). Sua criação se deu por meio do investimento e do fornecimento do terreno por William Paley, empresário e CEO da emissora CBS (8). A construção do pequeno espaço de lazer foi incentivada por uma política pública implementada em Nova York na época, o programa New York’s Privately Owned Public Space – Pops Program. A política se baseia na oferta de bônus de densidade em troca da adição de espaço público no interior ou ao redor dos edifícios comerciais privados, permitindo um aumento de áreas públicas de lazer na cidade pela conversão de partes de terrenos privados. O Pops Program foi um dos principais incentivos à criação dos pocket parks. Portanto, esses espaços destinados ao lazer e descanso foram as primeiras tentativas de parceria público-privada para geração de espaços públicos em Nova York (9).
Quando inaugurada, em 23 de maio de 1967, a praça teve sucesso imediato. Por estar localizada em uma área muito densa, de alto fluxo e grande dinâmica comercial, tornou-se um espaço bastante convidativo. Sua dimensão de 13,80m x 30,50m (aproximadamente 420,90 m²) à primeira vista pode não parecer muito promissora, mas o projeto conseguiu dar conta, com poucos elementos, das principais questões apontadas por Hoving e Whyte, garantindo a apropriação do espaço pelo público.
O mobiliário local é solto do chão, com design leve e prático, podendo ser configurado livremente pelo espaço, permitindo pequenos ou grandes grupos de pessoas. A cafeteira, localizada perto do acesso, proporciona comida e bebida, e a grande queda d'água no fundo do lote cria um som ambiente e uma atmosfera relaxante para quem está no interior. As árvores de espécies apropriadas para o local, plantadas propositalmente bem próximas umas às outras, produzem uma massa de sombra que protege no verão e permitem a passagem de sol no inverno. A praça possui horário de funcionamento das 6h00min às 22h00min, com acesso controlado por meio de um portão.
O conceito de pocket park foi introduzido posteriormente em outros países, cujas iniciativas serviram também de antecedentes para as Plazas Públicas de Bolsillo, como é o caso dos Parques Públicos de Bolsillo da Cidade do México. Nessa cidade, a iniciativa partiu da sociedade civil, através da Verdmx (10), empresa cidadã de associação civil sem fins lucrativos, cuja atuação está voltada a melhorar os aspectos sociais, econômicos e ambientais, trabalhando por uma economia verde e pela sensibilização educativa através de ações ambientais e de comunicação. Para recuperar o espaço público para a população, a empresa vem implantando, por meio de parcerias, diversos parques de bolsillo na Cidade do México. Em 2014 foram concluídos alguns parques conjuntamente com a Autoridad del Espacio Público, que têm seu funcionamento mantido através de patrocinadores e doadores.
Os suportes físicos dos parques de bolsillo são os espaços ociosos na malha urbana da cidade. Alguns projetos foram implantados em remanescentes de ruas, em cruzamentos não ortogonais de ângulos agudos, em rotatórias e em espaços físicos que sobram do encontro de duas ou mais ruas.
As Plazas Públicas de Bolsillo são uma adaptação desses antecedentes à realidade chilena. As diferenças, no entanto, são essenciais. Enquanto as pocket parks norte-americanas são intervenções de caráter permanente, a ação chilena é intermitente, que busca dar uma solução temporária, enquanto os terrenos não assumem novas funções edilícias. Os parques norte-americanos ainda têm o particular de surgirem em troca de potencial construtivo para as edificações adjacentes, o que demonstra também a diferença da natureza jurídica dos terrenos, que no Chile são prioritariamente públicos, enquanto os norte-americanos são partes de lotes privados. Em relação aos parques de bolsillo mexicanos, a diferença se encontra no suporte físico, uma vez que as praças chilenas estão localizadas em lotes, enquanto as mexicanas ocupam áreas residuais do espaço público.
Outra questão que vale nota é a própria tradução do termo, que altera o nome “parque” para “praça”, eliminando a diferença entre parques e praças, tão discutida na literatura da arquitetura paisagística. Enquanto o parque é uma tipologia relativamente recente na história, cuja origem está no século 19, e, como já comentado, significa um espaço de refúgio que estabelece uma relação de separação simbólica da cidade, a praça é uma tipologia muito mais antiga, que teve origem na ágora grega e é, fundamentalmente, um espaço político, cuja inserção urbana sempre foi aberta e democrática. Portanto, a denominação de “plaza de bolsillo” altera a compreensão do sentido do “parque de bolso”, refúgio de pequena escala em meio ao tecido urbano consolidado, para a “praça de bolso”, um espaço cívico e aberto, revelando, assim, certa contradição de uso do termo, uma vez que as plazas de bolsillo são espaços cercados. Curiosamente, no caso dos “parques de bolsillo” mexicanos, o conceito também entra em contradição com sua aplicação. Por sua situação urbana, estes, sim, funcionam como praças, e não como parques, na medida em que são espaços abertos de caráter mais cívico do que de refúgio.
Usos temporários e urbanismo tático para ativação do espaço público
“Um terreno, quando vazio, tem que ser preenchido imediatamente, de preferência com alguma atividade de animação. Desejo até a possibilidade de se instalarem estruturas provisórias para consolidar algumas atividades até que surjam novos projetos” (11).
O Urbanismo Tático tem sido disseminado no século 21 como uma abordagem que, por meio de intervenções de pequena escala, combina ações rápidas e de fácil execução para demonstrar possibilidades de mudança em larga escala e de longo prazo nas cidades. O termo foi cunhado há menos de uma década pelos urbanistas norte-americanos Mike Lydon e Anthony Garcia (12), porém, sua origem está nos escritos do urbanista e filósofo francês Michael de Certeau (13). Certeau define diferenças entre estratégias e táticas, chamando de estratégia o cálculo das relações de força a partir do ponto de vista do poder, e de “tática” a reação gradual que aproveita as ocasiões e as brechas para atuar. Reconhece-se, a partir do ponto de vista de Certeau, que as táticas são determinadas pela ausência do poder e servem como resposta dos fracos (cidadãos), enquanto as “estratégias são as ferramentas formais dos poderosos (poder público)” (14).
Essa abordagem surge em um contexto específico, caracterizado, segundo Neil Brenner (15), por uma ampla crise de governança nas cidades contemporâneas “em que tanto os Estados como os mercados sistematicamente falharam na entrega de bens públicos básicos, como habitação, transporte e espaço público, às populações urbanas em rápida expansão”. David Harvey (16) atribui essa crescente crise de governança ao que denomina como “crise da urbanização planetária”, que vem se intensificando especialmente nos países em desenvolvimento. Segundo o autor, o boom da urbanização mundial pouco se voltou à solução dos problemas da sociedade, tendo se concentrado na acumulação do lucro sem promover o bem-estar urbano. Nesse sentido, o Urbanismo Tático surge como uma alternativa que, em meio à crise, aposta na potência de pequenas e rápidas intervenções, significando uma resposta ágil para circunstâncias específicas do século 21.
Em meio às variadas formas possíveis de aplicação do Urbanismo Tático, uma das alternativas que vem ganhando relevância nesse contexto de crise são os usos temporários como veículo de experimentação. Peter Bishop e Lesley Williams (17) comentam que, até recentemente, usos temporários atraíam pouco interesse profissional em arquitetos e urbanistas, apesar de sempre terem representado, para grande parcela da população, uma parte vital da cultura urbana, preenchendo lacunas e trazendo vitalidade para a cidade. Segundo os autores, esses usos têm o potencial de trazer benefícios, caso incorporados ao planejamento urbano.
Dentre as vantagens do uso temporário apresentadas em seu estudo, destacam que a ocupação temporária de um bem ocioso, seja ele público ou privado, promove segurança e demove os custos de proteção e a vulnerabilidade de imóveis vazios contra ocupações ilegais. Em alguns contextos, o uso temporário pode economizar os custos de manutenção de imóveis vazios, como IPTU progressivo ou taxas de vacância. Finalmente, usos temporários não comerciais podem atrair usos temporários comerciais, movimentando a economia e atraindo ainda mais gente, criando um ciclo virtuoso de valorização do bem vacante.
Usos temporários, portanto, têm um grande potencial na ativação de vazios, tanto públicos quanto privados, embora, no caso de bens privados, existam mais desafios envolvidos. Bishop e Williams (18) comentam que, em geral, proprietários têm receio da dificuldade de retomada dos terrenos, caso decidam dar outro destino ao imóvel, ou mesmo do nascimento de um movimento pela permanência de determinada atividade temporária no local. Há, portanto, a necessidade de se vencer a resistência dos proprietários, para que possam iniciar as ações ou estabelecer parcerias. Segundo os autores, o proprietário como parceiro também pode ter considerável ganho econômico, realizando pouco investimento em infraestrutura. Assim, em contextos onde usos temporários são valorizados, gradativamente, proprietários têm percebido que estes podem valorizar seus imóveis e o entorno imediato. Nesse processo de crescimento, vem surgindo diferentes usos temporários em vazios urbanos.
No caso das plazas de bolsillo, os usos temporários são as atividades responsáveis por povoar os terrenos baldios, tendo o Urbanismo Tático como abordagem para tornar a operação possível, em uma intervenção de baixo custo a partir da articulação entre atores. Mike Lydon e Anthony Garcia (19) já haviam defendido que estratégias e táticas têm igual valor, podendo atuar em conjunto, impulsionando transformações positivas. Nesse sentido, a parceria entre poder público e sociedade civil têm o potencial de atuar taticamente em um bairro, e ao mesmo tempo promover a multiplicação da ação a partir do estabelecimento de uma política urbana.
Plazas Públicas de Bolsillo como tática de ativação de vizinhanças
O programa Plazas Públicas de Bolsillo é uma iniciativa nascida do Ministério de Obras Públicas, do Governo Regional Metropolitano de Santiago e da Intendência de Santiago (20), e propõe a ocupação de terrenos públicos (e eventualmente privados) baldios por praças temporárias, mediante ações de urbanismo tático, em parceria com a iniciativa privada. Trata-se, portanto, não de espaços públicos convencionais, mas de lotes inseridos na malha urbana, de propriedade pública ou privada, a exemplo dos pocket parks norte-americanos, como já apresentado.
Procederemos a uma breve análise do programa, estruturada em seis categorias: objetivos e contexto de surgimento, tipos de espaço suporte, atores e parcerias, programa e atividades, processo de implantação e situação atual. Dessa forma, esperamos dar conta das principais características das Plazas Públicas de Bolsillo.
Contexto de surgimento e objetivos
Segundo Bishop e Williams (21), é bastante comum em várias partes do mundo a utilização de terrenos vazios, principalmente aqueles próximos aos centros, como estacionamentos temporários. A proposta de ativação temporária de terrenos públicos em Santiago teve como primeiro desafio a demoção da ideia do poder público de estabelecer estacionamentos nesses terrenos, apostando na recuperação temporária dos vazios urbanos por meio da construção de áreas verdes.
Pablo Fuentes (22), então coordenador do projeto Plazas Públicas de Bolsillo do Ministério de Obras Públicas e idealizador do projeto, ressalta a importância das áreas verdes públicas no ambiente urbano e como estas estão diretamente relacionadas à boa qualidade de vida. Reconhecendo a importância dessas áreas, e constatando que na maior parte do país a proporção de áreas verdes para áreas edificadas é insuficiente, o Ministério deu início ao plano Chile Verde, que propõe 34 parques no país, sendo 8 localizados na região metropolitana de Santiago. Entretanto, como a concepção dos parques é um processo custoso e longo, podendo levar de dois a quinze anos para implantação, as praças se mostraram uma alternativa tática, rápida, econômica e de alto impacto, promovendo os benefícios das áreas verdes (23) sem competir com o projeto dos parques, solução que pode realizar-se em paralelo, com resultados a longo prazo.
As plazas de bolsillo surgem, portanto, da iniciativa de ampliar os espaços públicos de permanência, enxergando nos vazios urbanos uma oportunidade. Vazios urbanos, segundo Borde (24), são os “terrenos e edifícios vacantes que contrastam com o tecido urbano pelas condições de uso e ocupação (sem ocupação, sem uso ou subutilizados) e por não cumprirem sua função social.” Terrenos vazios, a despeito de sua propriedade, podem ser encarados como oportunidades para novos espaços de uso público, onde o vazio não seja só ausência, mas também promessa, encontro, espaço do possível, expectação (25).
A contribuição das praças vem tanto no sentido da melhoria dos atrativos locais e das condições ambientais dos bairros, valorizando-os economicamente e reduzindo a insegurança gerada por terrenos baldios, como também na promoção de maior socialização entre os residentes e de desenvolvimento de práticas socioculturais.
Trata-se de uma alternativa de relativa facilidade de viabilização. Para implantação de uma praça, são necessários três elementos principais: 1. um terreno em situação de abandono; 2. elementos de caráter transitório (arte urbana e mobiliário); e 3. um sócio ativador (operador privado) (26).
Tipos de espaço suporte
As plazas de bolsillo ocupam temporariamente terrenos ociosos que devem atender aos seguintes critérios referentes à mobilidade urbana, segurança pública e morfologia do espaço: 1. ter boa conectividade, localizando-se próximo a estações de metrô e/ou pontos de ônibus; 2. estar em uma área de fluxos de pedestres; 3. ser segura, de forma a garantir a conservação do mobiliário e da iluminação, 4. ter área adequada, igual ou inferior a 500m² e; 5. ter empenas cegas voltadas a ele.
Segundo Pablo Fuentes (27), alguns terrenos privados foram usados para implantação do projeto, entretanto, isso acarreta um aluguel a ser pago pelos comerciantes de foodtrucks para uso do espaço. Tal custo dificulta a permanência do comércio local, que é a principal fonte de ativação das praças. Por essa razão, os projetos têm melhor desenvolvimento em terrenos públicos. A ideia seria que os terrenos abandonados cujos donos não têm projetos a curto ou médio prazo fossem cedidos gratuitamente durante algum tempo, de forma que os pequenos investimentos das plazas de bolsillo pudessem dinamizar essas áreas e reduzir focos de delinquência, sendo transferidos a outro local no caso dos terrenos serem solicitados pelos proprietários (28).
Fuentes (29) aponta o desejo da apropriação também de áreas residuais do espaço público, além de terrenos vazios, apesar dessa alternativa ainda não ter se concretizado.
Atores e parcerias
As praças materializam-se por meio da articulação entre quatro atores principais: o Governo Regional Metropolitano (Santiago), a Direção de Arquitetura do Ministério das Obras Públicas, os municípios que abrigam as praças e as associações de foodtrucks.
A cada um dos atores cabem funções específicas. O Governo Regional Metropolitano provê o financiamento para o projeto, ao mesmo tempo em que realiza as comunicações necessárias com os demais parceiros e dá apoio institucional. A Direção de Arquitetura do Ministério de Obras Públicas analisa as diferentes propostas de desenho para a praça e contacta os artistas responsáveis pelos murais. Os municípios articulam os empréstimos, as permissões necessárias para as obras no terreno e a supervisão e manutenção durante o processo de execução. Já às associações de foodtrucks cabe o gerenciamento da rotação das carrocinhas, as contas de luz e água, a coleta de lixo e dejetos, a instalação de banheiros químicos e o provimento de segurança no espaço (30).
Programa e atividades
Em sua maioria, as intervenções se baseiam em uma pequena obra física (pavimentação básica, canteiros com arborização, grafite nas empenas), instalação de mobiliário de praça, vasos de plantas, bicicletário, sanitários e ocupação por foodtrucks, que cuidam da manutenção do lugar. Algumas praças contam com espaços e equipamentos para lazer, como mesas de Ping Pong e Totó, algum comércio alternativo, espaço para pequenos shows, hortas comunitárias, brinquedos infantis e áreas de descanso. O que diferencia as atividades entre as praças é a localização das mesmas e os parceiros envolvidos no projeto. Além das atividades cotidianas, as praças recebem ativações eventuais diversas, como feiras de ciclistas, festas nacionais e celebrações de diversas naturezas.
Processo de implantação
A primeira plaza de bolsillo foi implantada em 2016 na Calle Morandé n. 83, no centro de Santiago, e nasceu da oportunidade de um terreno baldio que teve uma obra interrompida ainda em seu início, ficando sem uso definido. Após especulações sobre seu futuro, decidiu-se dar uso de lazer a esse espaço por meio da instalação de uma praça temporária (31). Assim surgiu o projeto Plazas Públicas de Bolsillo.
Outras tantas praças sucederam (32), vindo de demandas espontâneas de outros bairros, com processos de implantação semelhantes. Em geral, as implantações dividem-se em duas etapas, sendo a primeira o planejamento (escolha do terreno, regularização e projeto) e a segunda, a construção física e comunitária do espaço, bem como sua ativação.
O projeto consta basicamente de um layout do espaço com especificação de materiais, que tem também o objetivo de quantificar e orçar a obra, e uma imagem digital para apresentação, convencimento e divulgação da ideia. As intervenções físicas, feitas em grande parte com recursos públicos, são básicas, consistindo em uma pavimentação simples, instalação de arborização de médio porte em vasos, mobiliário removível, alguma cobertura leve e uma pintura artística nas empenas cegas (33).
Algumas praças passaram por processos distintos, como foi o caso das praças Abate Molina, Cumming e Santa Isabel. A praça Abate Molina foi realizada em um terreno privado com recursos privados, porém, seguindo as diretrizes do Ministério de Obras Públicas para as Plazas Públicas de Bolsillo. A praça Cummimg foi construída em um terreno do metrô, cujo aluguel de três anos foi licitado a um gestor privado, que executou as obras e é dono dos carros, alugando-os a comerciantes. Já a praça Santa Isabel teve uma etapa de projeto participativo realizado por uma empresa, a Ágora 21, que adotou uma etapa prévia de ativação através de uma festa comunitária, na qual se reuniu a comunidade local, artistas e comerciantes com o objetivo de avaliar o terreno e refletir sobre o que lá poderia ser feito. A praça oferece um mercado modular de caráter permanente, com boxes cedidos a comerciantes para oferta de produtos inovadores, que geralmente não estão disponíveis no mercado (34).
Situação atual
Atualmente, o projeto conta com doze praças concluídas em Santiago (dez da primeira etapa e duas da segunda) e cinco localizadas em outras regiões do país, totalizando dezessete praças. A segunda fase do projeto tem como meta a construção de seis praças. Com a propagação das praças por redes sociais e imprensa, muitas comunidades, empresas privadas e associações de bairros vem entrando em contato com o poder público para sugerir possíveis novos espaços. No país, hoje existem aproximadamente quatrocentos terrenos públicos inutilizados que poderiam se transformar em novos espaços públicos, permitindo incentivar os fluxos de pedestres, transformar a imagem urbana, outorgar segurança, fomentar a participação cidadã e diversificar o comércio local.
Críticas e desdobramentos
As plazas de bolsillo injetaram certa inovação em termos de uso de áreas ociosas e de dinamização urbana, enfrentando, com soluções de baixo custo e curto prazo, um tema recorrente das grandes cidades. O pioneirismo do projeto lhe rendeu o prêmio Avonni de Inovação, em 2016.
Alguns aspectos podem ser apontados como desafios para um melhor desempenho das praças e do programa como um todo. O primeiro é a incorporação de uma gama mais ampliada de parceiros, para além da associação de foodtrucks, preocupação já apontada por Fuentes (35) como um aspecto necessário para dar escala ao projeto. Apesar da existência de diversos atores durante o processo de construção, concepção e funcionamento de uma praça, os atores sociais que aparecem na ativação propriamente dita se restringem a esses comerciantes. Entende-se a importância de sócio operadores robustos para a garantia do funcionamento da praça e a manutenção do mobiliário. Porém, a limitação do programa à parceria com os foodtrucks de certa forma homogeiniza as praças, que poderiam assumir diferentes identidades caso os parceiros estivessem mais relacionados ao entorno das ações. Outra questão envolvida na restrição aos foodtrucks é a excessiva comercialização no espaço público que, apesar de não significar a privatização do mobiliário, de certa forma vincula o uso do espaço público ao usuário consumidor. Para além desse fator, é responsabilidade dos vendedores manter o espaço da praça seguro e limpo, o que requer um certo investimento financeiro que, por muitas vezes, não acontece. Seria necessário agregar mais parceiros que possam injetar capital no projeto (36).
O segundo aspecto a ser mencionado é o fechamento das praças, o que, como já comentado, colide com o próprio conceito de praça como um lugar aberto e democrático. E isso está relacionado ao tema anterior, uma vez que, como o parceiro é o responsável pela manutenção dos espaços, estes têm seu horário restrito ao próprio funcionamento das carrocinhas. As praças são abertas ao público, finalmente, de acordo com a disponibilidade da venda de comida, dinâmica que fere o uso democrático do espaço. Para as praças funcionarem durante todo o dia e nos fins de semana, é necessário um operador forte que se beneficie desse horário. Portanto, reconhece-se a necessidade de mesclar outras atividades à atividade comercial.
Outro aspecto digno de menção é a questão do engajamento comunitário. Um projeto de certa forma “padronizado” tende a negligenciar demandas específicas das comunidades, que poderiam ser atendidas caso houvesse um maior envolvimento de atores locais, por exemplo, na definição do programa das praças. Oficinas com representantes locais e consultas públicas poderiam auxiliar em uma maior aderência da proposta às cores locais.
Ainda vale chamar atenção para a ausência de um planejamento sistêmico, acupuntural, na implantação do programa. As praças não surgem como resultado de um planejamento baseado na oferta de espaços e nas demandas dos bairros, visando um equilíbrio de áreas verdes na cidade, mas sim ao sabor das oportunidades de terrenos vazios, o que deixa áreas da cidade sem acesso a essa infraestrutura urbana.
Considerações finais
Como observado ao longo desta discussão, as plazas de bolsillo não respondem necessariamente a um único modelo de ocupação do espaço. Porém, dependendo dos contextos, relações e parcerias, principalmente público-privadas, têm em comum serem uma possibilidade de conquista de espaços com vocação pública, contribuindo na vida coletiva e na sociabilidade.
Outro aspecto relevante é que a tática das plazas de bolsillo permite operar sobre o espaço público deslocando, em parte, a dinâmica especulativa do contexto capitalista dominante, entendida com uma tensão entre a intepretação da cidade como um direito e sua interpretação como um bem de consumo. A especulação, como já dito, é uma pressão diante do planejamento urbano, pois o submete às regras do mercado. As plazas de bolsillo, nesse sentido, respondem a uma interdependência entre os componentes, um mutualismo entendido como um sistema sustentado na contribuição de todos para benefício individual de cada um dos contribuintes. Por um lado, ganha o Estado, que abre terrenos para benefício dos cidadãos, incrementando a rentabilidade social da sua gestão. Por outro, os empreendedores privados, que ganham uma oportunidade de atividade comercial. E finalmente, o cidadão, que recebe mais um espaço de troca, convívio e de serviços diversos.
Assim, uma expressão da parceria público-privada, sustentada na transitoriedade e democratização de terrenos predominantemente de propriedade pública, quebra a lógica da especulação sobre terrenos vazios da cidade, fazendo das plazas de bolsillo espaços de refúgio cívico e abertos, por meio da ativação dos vazios.
Por último, é importante reconhecer uma certa fragilidade desta iniciativa. Sua continuidade descansa na capacidade do Estado em apoiar as plazas de bolsillo, independentemente dos governos e dos resultados imediatos. A possibilidade de reconhecer no urbanismo tático e, especificamente, nas plazas de bolsillo, as bases de uma política pública com forte apoio do poder público permitirá alcançar novos objetivos a longo prazo.
notas
1
DURÁN, María-Ángeles. La ciudad compartida: Afecto, usos y costumbres. Madrid, Ediciones Consejo Superior, Colegios de Arquitectos, 1998.
2
BIBLIOTECA DEL CONGRESO NACIONAL DE CHILE. Normas sobre adquisición, administración y disposición de bienes del estado, 2019 <https://bit.ly/3mrXUaF>.
3
LIRA, Ignacio. Construir áreas verdes para criar comunidades. Fundação Mi Parque e a recuperação participativa de espaços públicos no Chile. Revista Prumo, v. 2, n. 3: Cidades Latino-Americanas, Rio de Janeiro, PUC Rio, 2017, p. 20 <https://bit.ly/3kyxaVG>.
4
Idem, ibidem, p. 21.
5
TREE HUGGER. Thomas Hoving 1931-2009: Creator of Pocket Parks <https://bit.ly/3ov5AuF>.
6
WHYTE, William. The social life of small urban spaces. New York, Project for Public Spaces, 1980.
7
CALENDER, Fany. Nova York: uma experiência de desenho dos espaços livres urbanos. Revista Paisagem Ambiente Ensaios, São Paulo, n. 8, dez. 1995, p. 25-46.
8
PROJECT FOR PUBLIC SPACES. Paley Park <https://bit.ly/3kAS0nj>.
9
BARATA, Aline F. M. Do micro ao macro. Urbanismo Tático para transformação de espaços públicos. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Prourb FAU UFRJ, 2018.
10
Verdmx <https://bit.ly/3mmITXI>.
11
LERNER, Jaime. Acupuntura urbana. Rio de Janeiro, Record, 2011, p. 39-40.
12
LYDON, Mike; GARCIA, Anthony. Tactical Urbanism: Short-term Action for Long-term Change. New York, Island Press, 2015.
13
CERTEAU, Michel de. The Practice of Everyday Life. Berkley, University of California Press, 1999.
14
LYDON, Mike; GARCIA, Anthony. Op. cit., p. 9.
15
BRENNER, Neil. Seria o “urbanismo tático” uma alternativa ao urbanismo neoliberal? Revista e-metropolis, n. 27, ano 7, dez. 2016, p. 9.
16
HARVEY, David. Cidades Rebeldes. Do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins Fontes, 2014.
17
BISHOP, Peter; WILLIAMS, Lesley. The Temporary City. New York, Routledge, 2012.
18
Idem, ibidem.
19
LYDON, Mike; GARCIA, Anthony. Op. Cit.
20
GOBIERNO REGIONAL METROPOLITANO DE SANTIAGO <https://bit.ly/31Rmuds>.
21
BISHOP, Peter e WILLIAMS, Lesley. Op. Cit.
22
FUENTES, Pablo. Entrevista Plazas Públicas de Bolsillo. Youtube, 1 mar. 2018 <https://bit.ly/34A2vl8>.
23
Idem, ibidem.
24
BORDE, Andrea. Vazios urbanos, perspectivas contemporâneas. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Prourb FAU UFRJ, 2006, p. 5.
25
SOLÀ-MORALES, Ignasi. Territórios. Barcelona, Gustavo Gili, 2002, p. 187.
26
GOBIERNO REGIONAL METROPOLITANO DE SANTIAGO. Plazas Públicas de Bolsillo: Nuevas experiencias en generación de espacios públicos, 2018 <https://bit.ly/34zjRyt>.
27
FUENTES, Pablo. Op. cit.
28
GOBIERNO REGIONAL METROPOLITANO DE SANTIAGO. Op. Cit.
29
FUENTES, Pablo. Op. cit.
30
FUENTES, Pablo. Op. cit.
31
FUENTES, Pablo. Op. cit.
32
Após Morandé 83, foram construídas as praças de Las Telas, Padre Mariano, Abate Molina, Faculdade de Arquitetura da Universidad de Chile, Santo Domingo, Luchín, San Diego, Cumming e Artesanos (10 praças na primeira etapa). A segunda etapa consta das praças Santa Isabel, Castillo Velasco (executadas), Einstein, Hipódromo, Ochogavía e Cerro Renca.
33
FUENTES, Pablo. Op. cit.
34
SALAS, Sebastián; CARCAVILLA, Eduardo. Comunidad y desarrollo. La posibilidad de un sitio eriazo. Primer Encuentro de Innovación Urbana Ciudadana. Placemaking, Valparaíso, 2017.
35
FUENTES, Pablo. Op. cit.
36
FUENTES, Pablo. Op. cit.
sobre os autores
Adriana Sansão Fontes é arquiteta e urbanista (1995), mestre (2004) e doutora (2011) em Urbanismo pelo Prourb FAU UFRJ, com estágio doutoral na Etsab UPC (2008-2009). Professora Adjunta da FAU UFRJ e do Prourb FAU UFRJ. Autora de Intervenções temporárias, marcas permanentes. Apropriações, arte e festa na cidade contemporânea (Casa da Palavra, 2013).
Fernando Espósito Galarce é arquiteto e urbanista (2001) pela EAD PUCV, Valparaíso, Chile. Doutor em Arquitetura (Etsab UPC, 2011). Professor Assistente do DAU PUC Rio. Sócio da Ciudad Abierta, Corporación Cultural Amereida, Chile.
Fernanda Schwarc Mary é designer de produto (2013) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, arquiteta e urbanista (2017) pela Universidade Federal Fluminense e mestranda em Arquitetura Paisagística (em curso) pelo Prourb FAU UFRJ.
Lara Liberatto Nunes Alves é graduanda de Arquitetura e Urbanismo pela FAU UFRJ e técnica em Edificações pela Faetec RJ (2012).