A intervenção no patrimônio cultural é um problema complexo. Do ponto de vista técnico-teórico, a intervenção coerente e consistente deve orientar-se de modo profundo e concatenado no referencial teórico do campo disciplinar, em particular da restauração, de modo a cumprir sua função primordial que é resguardar o bem em sua qualidade de referência para preservação.
Todavia, no que tange à definição da proposta, a prática contemporânea de intervenção no patrimônio arquitetônico nacional, por vezes, mostra-se superficial e incoerente em relação à teoria da restauração que deveria orientá-la. Nessa conjuntura, a intervenção pode promover um discurso que tem o potencial de causar prejuízos ao patrimônio como referência histórica.
Em razão disso, o objetivo deste artigo é discutir posturas teóricas contemporâneas que podem ser observadas no partido da intervenção no patrimônio arquitetônico nacional (edificação urbana, de médio e grande porte, isolada – não em conjunto). Isso é feito por meio de revisão bibliográfica sobre a teoria de restauração para intervenção nesse tipo de bem, em meio às dinâmicas atuais de valorização da imagem e do estético pelo impacto do novo na preservação.
A contribuição desta reflexão é apontar que a distinguibilidade, um tópico operacional da linha teórica do Restauro Crítico, tem se tornado uma figura de retórica empregada como justificativa pontual e superficial, em lugar da adoção concatenada de uma corrente teórica que deve ser a orientadora do partido da intervenção.
A teoria contemporânea para intervenção no patrimônio arquitetônico
O Restauro Crítico continua a ser uma linha teórica consistente e atual para a intervenção no patrimônio arquitetônico. Todavia, a própria compreensão desse patrimônio se ampliou desde sua criação, contribuindo para novas reflexões. Nesse panorama, segundo Giovanni Carbonara, são propostas, a partir de 1970, novas correntes teóricas que são menos esquemáticas e absolutas do que as duas instâncias (estética e histórica) estabelecidas por Cesare Brandi. Para o autor, elas “priorizaram, por um lado, o componente 'estético' (de alguns processos de reintegração e restituição) e, por outro, o ‘histórico’ (consequentemente, conservador)” (1).
A corrente teórica denominada "Conservação Pura" ou "Conservação Integral", por exemplo, assume uma conduta mais conservadora. Quanto à questão da matéria e da imagem, ela não confere acentuada importância à imagem, porque isto deturpa a matéria. Logo, não reconhece superfícies de sacrifício no bem, à medida que todas as superfícies do edifício registram as suas transformações e história. Sendo assim, elas detêm excepcional valor documental e devem ser preservadas integralmente. “Mesmo os sinais de degradação têm significado histórico, além de estético e, portanto, devem ser respeitados” (2). Conforme Marco Dezzi Bardesch afirma, em entrevista a Andrea Lacomoni (3), os sinais de deterioração da arquitetura de valor patrimonial aumentam sua aura. Portanto, essa corrente privilegia a instância histórica.
Nesse mesmo sentido, Beatriz Kühl (4) destaca que as várias estratificações da obra são “rigorosamente respeitadas”, ainda que apresentem descontinuidades, “admitindo-se uma configuração final da obra com conflitos e, mesmo, contradições.” Nessa linha de abordagem, qualquer conformação final do patrimônio não é contraditória, haja vista que é resultante de todas as ações que foram impostas ao bem ao longo do tempo. A historicidade dessas ações é “respeitada de modo absoluto, sendo a matéria preservada tal qual chegou aos dias de hoje” (5).
Ao privilegiar a instância histórica, a “Conservação Pura” rejeita qualquer tipo de reintegração e reprodução estilística, incluindo formas simplificadas, e também repudia a remoção de adições. Segundo Bardesch (na citada entrevista), a matéria faz a história por meio da forma em um contexto. Essa “pele” da arquitetura “é uma arte autografada”, por isso não pode ser “repetível”. “Cada gesto e sinal que se acumula no território tem sua autenticidade”. Por sua vez, a autenticidade da matéria como documento é um ponto pelo qual o autor afirma lutar, pois a relação entre a matéria e o contexto é inseparável (6).
No entanto, conforme Kühl (7), tal corrente teórica pressupõe sanar as patologias na arquitetura histórica, pois entende que a conservação “não é mero apêndice do restauro, nem um grau de intervenção. É algo de natureza diversa”. Desse modo, talvez essa seja a principal “peculiaridade” da “Conservação Pura”: a dissociação da conservação de qualquer outra ação no bem. O novo na intervenção é considerado uma ação à parte, o momento autônomo de criação e de “liberdade figurativa”.
Ou, como Bardesch afirma, o novo representa um “poder autônomo de expressão” (8). São esses “possíveis conteúdos, funções e expressões” agregadas com o novo que a intervenção deve promover, além de garantir a conservação do patrimônio. Para o autor, a dialética entre o antigo e o novo é uma necessidade inseparável da reutilização da arquitetura histórica. Logo, esse deve ser um diálogo conciliador, estruturado por “fragmentos significativos” entrelaçados conscientemente e criativamente com o bem. Assim, uma maneira de intervir respeitosamente na preexistência é empregar materiais simples (a exemplo do tijolo), como a gramática que constrói o diálogo entre o novo e o antigo. Sobretudo pelo fato de que a tecnologia se impõe de forma “cada vez mais invasiva” nas dinâmicas de reutilização do antigo.
Nesse sentido, Paolo Torsello (9) acrescenta que a restauração é não apenas um momento criativo do autor do projeto, mas também de autoconsciência. Ela não deve alterar o preexistente; deve, inclusive, prover a manutenção dos sinais de sua decadência, pois esses são essenciais para a análise da obra e para a tradução de sua mensagem. Contudo, Torsello ressalta que o novo também é essencial; sendo assim, o novo e o antigo devem coexistir.
Da mesma forma, Amedeo Bellini defende que se promova o entendimento da “intensidade expressiva” da arquitetura histórica, por meio do destaque de sua “mensagem verdadeira”. Somente “a autenticidade dos dados materiais é garantia essencial da verdade”. Entretanto, “a adição é inevitavelmente contemporânea” e deve ser aceita no âmbito das transformações, “maximizando a permanência” (10).
Com uma abordagem, em parte, oposta à "Conservação Pura", a corrente teórica denominada "Manutenção-restauração" (também chamada de “Manutenção-repristinação” ou, ainda, “Hipermanutenção”) enfatiza as ações de pesquisa e operacionais, envolvendo “manutenções ou integrações ordinárias e extraordinárias” (11).
Quanto à questão da matéria e da imagem, a “Manutenção-restauração” confere relevante importância à imagem e discute a questão da autenticidade da matéria na intervenção. Paolo Marconi (12) afirma que os argumentos propagados pelos antigos “heróis” teóricos, cheios de “certezas morais” e métodos, são “tecnicistas” e acentuadamente mobilizados pelo valor de antiguidade conferido ao patrimônio. Mesmo os materiais empregados em consolidações definidas no domínio de uma intervenção alinhada com a “Conservação Pura” raras vezes se mostram inteiramente compatíveis com os preexistentes e, além disso, também se degradam progressivamente. Sendo assim, “o problema não é a autenticidade do texto, é a qualidade da interpretação, bem como a qualidade intrínseca da música”.
O autor pondera sobre o tema, relembrando que para os japoneses a legibilidade da obra lhe confere autenticidade. Por isso, a imagem da degradação é aviltante sendo empregada, inclusive, a reconstrução. Todavia, ele assinala que a reconstrução de qualquer arquitetura é uma situação extrema que deve ser avaliada com rigor filológico, caso a caso, atentando-se ainda ao valor que é conferido ao bem. Uma reconstrução é uma nova arquitetura, mas é também capaz de provocar emoções (13).
Nesse sentido, Carbonara (14) ressalta que, se é a imagem do bem que deve prevalecer na definição da intervenção, seu aspecto degradado deve ser evitado. A limpeza das superfícies do patrimônio construído deve ser executada de forma eficiente, igualmente atingindo camadas mais profundas da matéria. Superfícies de sacrifício são adotadas nos bens, pois entende-se que são renovadas periodicamente com a conservação do patrimônio. Portanto, as argamassas e pinturas deterioradas devem ser refeitas, empregando técnicas e materiais adequados. “Isso é diverso, porém, de refazer argamassas e não consolidar as que existem e pintar aleatoriamente” (15).
Orientada por essa mesma perspectiva, a reprodução de partes perdidas ou deterioradas é justificada, inclusive sem simplificação para a distinguibilidade. Para Marconi (16), a distinguibilidade das reintegrações é uma “interpolação maximalista”, uma “demonização do falso histórico” ressuscitado com base na Carta de Restauro Italiana (1972), que promoveu um “rigor intransigente” para a restauração. Tal premissa resulta em uma imagem de “colcha de retalhos” conferida pelas diversas integrações no bem, que se sucedem com o tempo. Um “perverso” efeito que ganha escala e cria um “panorama de ruínas”, contrário ao entendimento da arquitetura como “um produto vivo de uma sociedade em movimento”. Esta é uma “lacuna definitiva e intransponível” entre as gerações antigas e atuais. Já nas adições, o uso generalizado de materiais típicos distinguíveis (como o concreto, no lugar do tijolo e da cal, e do aço, no lugar da madeira) é outro equívoco, pois é possível uma identificação “moderada” empregando materiais tradicionais.
O autor ainda afirma que as questões teóricas mais atuais a respeito da intervenção no patrimônio podem ser sintetizadas em duas vertentes: proteger o bem mesmo em seu estado reduzido ou reviver, tanto quanto possível, características reconhecíveis no artefato obscurecido pela degradação. Isso, porque o “paroquialismo acadêmico” reduz e intimida a capacidade criativa do arquiteto/restaurador, cuja responsabilidade também é inserir o novo na preexistência e restituir a capacidade de comunicação do patrimônio com a sociedade. Ao arquiteto que intervém no bem, “o que mais importa é que ele pode comunicar sua mensagem através de modificações e reduções, uma mensagem que consiste em oferecer ao homem abrigo e proteção, bem como emoções e beleza” Livre da “atmosfera moralista” de que a verdade é a honestidade estrutural e morfológica ostentada por técnicas e matérias distinguíveis (17).
A veemência de Marconi na defesa de sua crença na corrente da “Manutenção-restauração” induz a uma perspectiva mais emocional do pensamento para intervenção no patrimônio arquitetônico. Para Carbonara (18), essa corrente teórica impõe um escrutínio “particularmente pesado de manutenção substitutiva e inovadora”. Kühl (19) acrescenta que essa abordagem se baseia “numa lógica indutiva”, enquanto a teoria brandiniana parte, ao contrário, de uma lógica dedutiva fundamentada em axiomas éticos e científicos. Ademais, a “Manutenção-restauração” também é contrária ao pragmatismo da “Conservação Pura” e do “Restauro Crítico-conservativo” (tratado a seguir), que têm em comum uma “tendência maior a se trabalhar por analogia”.
Em uma linha menos “radical” do que as duas anteriores, a corrente teórica “Restauro Crítico-conservativo” é fundamentada no axioma de que cada intervenção é um caso. Segundo Carbonara (20), essa é a corrente teórica mais correta e em consonância com a compreensão ampliada de patrimônio, como expressão cultural e com o necessário juízo de valor para a intervenção. Kühl (21) reforça que existe um crescente interesse pelo “Restauro Crítico-conservativo” para a intervenção no patrimônio construído.
Segundo afirma a autora, essa linha teórica tem uma estrutura de pensamento que confere grande relevância aos “valores documentais e formais da obra como imagem figurada”. As instâncias históricas e estéticas são assumidas de forma crítica, interativa e sintética, não dissociativa. Isso devido ao seu interesse pela clareza e por “facilitar a leitura” do patrimônio, destacando o aspecto documental sem renunciar à imagem. O “Restauro Crítico-conservativo” admite que “nem tudo numa mesma obra deva ser preservado ou deva ser ‘visível’ imediatamente e ao mesmo tempo, preconizando-se limitadas remoções em casos pontuais, e propondo, quando necessário, a reintegração da imagem. Contudo, os casos de remoção de adições e reproduções “são cada vez mais restritos, tendendo-se a uma ampla conservação do documento”. Essa é uma postura “prudente”, que se assemelha à “Conservação Pura”, mas “não significa de modo algum congelamento e não prescinde, antes propõe, quando necessário, o uso de recursos criativos (utilizados, porém, com respeito pela obra e não em detrimento dela)” (22).
A criação no “Restauro Crítico-conservativo” é solidária, condicionada e pressionada pelo bem, de modo que haja uma articulação entre a ação conservativa e a inovadora (23). A liberdade para criação é menor se comparada à “Conservação Pura”, mas, neste caso a ação de conservação é bastante restritiva, porque essas atividades são dissociadas, conforme já citado.
A pátina, para Carbonara (24), além de ter um caráter histórico, é corroborada pela estética, por meio da imagem. O autor contesta argumentações “pseudocientíficas” que discutem a cor da edificação, no lugar do tema que seria mais pertinente: “a ‘conservação’, através da perpetuação da matéria, do colorido antigo, mesmo se desbotado e não necessariamente original”. A significação histórica da imagem precede a estética da novidade. A preexistência já possui um valor que é único e completo. “E qualquer intervenção sobre a obra é também uma intervenção sobre a maneira de transmitir a obra em si, ao longo do tempo” (25).
Entretanto, isso não significa a imutabilidade da preexistência, sobretudo porque não há uma maneira asséptica de restaurar. Intervir na arquitetura de valor patrimonial significa operar sensivelmente uma mudança que, inevitavelmente, tem implicações estéticas e formais no edifício. O restauro não deve ser anulado pela arquitetura, nem o contrário (26).
Para o “Restauro Crítico-conservativo”, isso significa transformar de forma confiante, podendo contar com o emprego equilibrado de elementos modernos. A tecnologia, por exemplo, deve ser deixada à vista. Um diálogo deve ser estabelecido com ela, evitando-se os danos à matéria remanescente do bem por consequência da intenção de dissimulá-la. Isto, respeitando-se os tópicos operacionais de reversibilidade, distinguibilidade e mínima intervenção. “O contraste bem estudado é muitas vezes preferível à mais tranquilizadora imitação e replicação linguística” (27).
Por outro lado, consolidações estruturais, por exemplo, dispensam muitos esforços para evitar demolições e reconstruções, incorrendo no emprego de propostas e recursos que são acréscimos visuais que se sobressaem à arquitetura preexistente. Assim, a consolidação da matéria original do documento em detrimento à imagem, também pode impactar sobremaneira sobre o que o bem comunica. Com efeito, a consolidação estrutural “nunca é figurativamente neutra” ou asséptica (28).
“Disso decorrem consequências imediatas, para a arquitetura, para o chamado "restauro estrutural", não raro caracterizado por preconcebidas posturas de predileção pelo "esquema estático" em detrimento da figuratividade arquitetônica e de consequente "purismo" tradicionalista, com formulações de método que, mesmo inteligentes, são, no entanto, radicalmente inconscientes da complexidade do problema e da sua natureza, no mais alto grau, crítica” (29).
Em nome da legitimidade e visando à distinguibilidade, o conservadorismo no tratamento de materiais e superfícies tem resultado em forte impacto na imagem do bem. Isto não é um contraste bem estudado. Além do que, como dito antes, nem tudo deve ser imediatamente visível. Carbonara (30) emprega esse mesmo argumento, não com o objetivo de privilegiar a instância estética, mas, visando reforçar o entendimento de que “não existem linhas operacionais privilegiadas, porque cada caso é um caso”. E, se cada caso é um caso particular, com sua forma, seus materiais e sua significação, mais uma vez é imprescindível o posicionamento crítico para a intervenção.
Com base nesses apontamentos, já é possível se reconhecer que essas três correntes teóricas contemporâneas não são necessariamente antíteses umas das outras. Ainda mais se levarmos em conta que partem do mesmo ponto, o “Restauro Crítico”. Na prática, no que se refere à definição do partido de intervenção no patrimônio arquitetônico, há mais semelhanças do que diferenças. Entretanto, há premissas conceituais distintas e o reforço destas é também um recurso didático. São as diferenças que apontam o léxico teórico ao qual uma intervenção contemporânea se alinha.
Carbonara (31) defende que as divergências contemporâneas no campo teórico da intervenção no patrimônio são, de modo geral, da ordem das “recriações modernizadoras e fantasiosas” e das reproduções tais e quais ou simplificadas. No mesmo contexto, Claudio Varagnoli afirma que a principal dificuldade a enfrentar é a dicotomia que se estabelece entre restauro e design. Este momento não tem sido de profunda revisão de métodos, mas sim de “relançamento da abordagem interpretativa do patrimônio histórico de acordo com parâmetros que, às vezes, são novos e estimulantes, mas, muitas vezes, são questionáveis e artificiais, excessivamente formalistas, recusando a submeter-se à lógica do edifício existente” (32).
Tal “lógica do edifício existente” é um discurso – o da preexistência. E, ao entender-se que não se intervém no vazio e não se deve “musealizar” a arquitetura de valor patrimonial, pode-se ponderar que não cabe fomentar a dualidade entre “conservação” e “projeto”. A intervenção cria com a preexistência, que deve ser assumida em sua amplitude significativa. Sob essa condição, ela também pode ressignificar a historicidade do bem com o novo, acrescentando uma nova camada de tempo, desde que não subverta o discurso da preexistência.
A teoria na prática da intervenção no patrimônio arquitetônico
Beatriz Kühl (33) afirma que, no Brasil, as intervenções contemporâneas no patrimônio arquitetônico frequentemente citam Cesare Brandi e a Carta de Veneza (1964) como referencial teórico para justificar suas ações. Entretanto, segundo a autora, ao analisá-las, observa-se uma “ignorância completa desses escritos, ou uma leitura pouco profunda”.
A autora identifica práticas como reconstruções, demolições e o tratamento das superfícies com o foco no novo, abarcando assim o refazimento de argamassas, o descarte da pátina etc. Dessa forma, subvertendo as características do bem como “aspectos formais, documentais, sua composição como um todo (interna e externamente), sua materialidade, suas várias estratificações e seus aspectos simbólicos”. Além disso, apura que a distinguibilidade costuma ser empregada para amparar essas intervenções, opondo-se à premissa teórica de “preservar e facilitar a leitura dos aspectos estéticos e históricos do monumento, sem prejudicar o seu valor como documento e sem eliminar de forma indistinta as marcas da passagem do tempo na obra” (34).
Claudia Cunha (35) também analisa intervenções no patrimônio arquitetônico nacional e observa que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Cultural – Iphan, de maneira geral, ainda mantém as práticas de reconstruções de outrora. Mesmo em detrimento das frequentes referências à Carta de Veneza, “dando ensejo ao respeito pelas diversas etapas por que passou o monumento e no abandono da busca pela unidade estilística”. O que é uma atuação distante da “verdadeira restauração”, por ser uma “leitura estética formal dos monumentos, relegando a preservação da autenticidade material e histórica para segundo plano”.
“A leitura dos monumentos, apesar do discurso mais amplo de patrimônio que se propala, continua a ser feita a partir de suas características estéticas. Mas a leitura estética que se faz agora é ainda mais rasa do que aquela da fase heroica, resumida à aparência exterior do monumento, que deve ostentar cores chamativas e alegres, num quadro de apropriação consumista e vazio daquilo que deveria ser a materialização da memória coletiva” (36).
Outra autora que analisa intervenções contemporâneas no patrimônio arquitetônico no Brasil é Patrícia Nahas (37). Ela identifica a hegemonia do emprego do tópico operacional brandiniano da distinguibilidade, assim como Kühl. Nahas afirma que a prática ocorre pela “experimentação”, sendo “ainda bastante afastada das prescritivas do campo disciplinar do restauro”. As premissas teóricas em que as intervenções deveriam fundamentar-se são focadas isoladamente, sem uma coerência global.
Essas autoras ratificam, por meio de suas análises e considerações, uma impressão que já é vislumbrada por outros autores, a de que a demolição e a reconstrução ainda são recorrentes, a de que há uma ênfase aos aspectos do novo e a de que a distinguibilidade é comumente empregada como uma justificativa teórica superficial e pontual.
Cabe ressaltar que tais posturas não são exclusivas da prática nacional. Claudio Varagnoli (38) destaca a tendência, no exercício da intervenção na Itália, de preservar o exterior da arquitetura histórica e projetar volumes internos. Essa pode ser tomada como uma releitura inovadora ou como o uso do postulado da distinguibilidade para exortar o novo. “Uma relação ambígua é estabelecida entre o antigo e o novo. A preexistência é usada e, muitas vezes, fortemente manipulada apenas para transmitir o novo projeto dentro de um contexto antigo”. Além disso, as demolições permanecem sendo frequentes, até mesmo para promover maior contraste e dramaticidade ao novo. Um exemplo é a remoção de adições que já compunham a história do edifício, para substituí-las por outras mais facilmente distinguíveis.
Para o autor, a arquitetura feita “por contraste” é praticada por profissionais que “não fazem restauro próprio do campo específico da ação”. Eles fazem uma arquitetura de autorreferência que rejeita o “restauro dos especialistas”, criticado por apresentar “resultados decepcionantes em termos de qualidade arquitetônica”. Essa postura traduz, de forma incisiva, o que o Varagnoli chama de “espírito dos tempos”. Um momento no qual o patrimônio arquitetônico ou é predominantemente criação, e a preexistência é só suporte, ou é predominantemente rigor teórico, e a preexistência é morta e estática (39).
Não obstante se reconheça que essa reflexão é insuficiente para identificar se existe um léxico teórico comum na prática da intervenção no patrimônio arquitetônico nacional, no que tange à definição de seu partido, tais posturas identificadas podem ser correlacionadas às premissas conceituais das principais correntes teóricas contemporâneas derivadas do “Restauro Crítico” a título de exercício. Por exemplo, as premissas do “Restauro Crítico-conservativo” de valorização do caráter documental das várias estratificações do bem na composição de sua imagem podem rivalizar com as frequentes demolições e reconstruções de nossa prática. As premissas da “Conservação Integral" de manutenção dos sinais de degradação da edificação, descartando a reintegração de lacunas e a reprodução, rivalizam com o aspecto novo conferido às superfícies, e a premissa de valorização documental do bem também se opõe às demolições.
Por outro lado, os princípios da "Manutenção-restauração" de adotar superfícies de sacrifício e de não valorizar os sinais de degradação, refazendo argamassas e pinturas, reintegrando lacunas e reproduzindo partes, podem ser relacionadas ao aspecto novo conferido às fachadas das edificações. E a aceitação da remoção de adições pode ser associada às demolições, também verificadas na prática da intervenção nacional. Em contrapartida, nossas adições costumam ser claramente distinguíveis, inclusive empregando materiais de alto impacto na imagem do bem – ao contrário do uso dos materiais tradicionais para uma distinguibilidade moderada, defendida por Paolo Marconi. Ou seja, uma arquitetura de contraste como definido por Varagnoli.
Natália Vieira-de-Araújo (40) desenvolve uma reflexão semelhante a essa. Afirma que não há, de forma significativa, uma prática nacional de intervenção no patrimônio edificado que possa ser alinhada com a corrente "Conservação Integral" ou com o “Restauro Crítico-conservativo”. Porém, a autora pondera se há realmente uma identificação com a linha de “Manutenção-Restauração”.
“Assim, incomoda-nos bastante a percepção de que apesar de haver uma enormidade de exemplos intervencionistas baseados em princípios próximos à corrente italiana da “repristinação”, não temos acesso a praticamente nenhum material nacional de reflexão teórica que defenda e apresente as justificativas para a adoção de tal postura” (41).
Vieira-de-Araújo (42), tal como Cunha, destaca que na prática institucionalizada do Iphan há “uma pré-disposição bastante forte para a adoção de princípios de reconstrução e/ou reconstituição de uma determinada feição eleita como de maior valor patrimonial por parte de técnicos, espalhados por todo o território nacional”.
“Diante destas permanências, preocupa-nos a recorrência do discurso de valorização da imaterialidade e participação da população como justificativas para a realização de reconstruções miméticas, de forma tal que colocamo-nos a questão: não será essa uma legitimação para a perpetuação da ação primeira do Iphan fortemente pautada por reconstituições e repristinações?” (43).
Em função disso, a autora instiga: “Consciência técnica em prol da repristinação ou manutenção do status quo?” (44). Por certo, há de se reconhecer que não existem evidências sólidas de uma “consciência técnica em prol da repristinação”, defendida como postura no exercício técnico profissional da definição do partido da intervenção no patrimônio arquitetônico nacional. Kühl e Nahas ressaltam o frequente caráter superficial e fragmentado dos fundamentos teóricos expostos como justificativas de intervenções. Sendo assim, não há nessa conjuntura um grau de aprofundamento teórico que possa testemunhar um explícito alinhamento com a corrente “Manutenção-Restauração”.
Todavia, é possível que as práticas empíricas verificadas em nossa realidade sejam mais alinhadas com a “Manutenção-Restauração”, em função de fatores não diretamente vinculados aos postulados da corrente teórica propriamente dita. Com efeito, os partidos das intervenções nacionais demonstram certo privilégio da fruição da imagem, que se encontra respaldado no valor de novidade de Alois Riegl (45), conferido pelas massas, em detrimento do documento histórico.
Ademais, essa condição está em consonância com o panorama contemporâneo de percepção da arquitetura histórica abordado por Ignasi de Solà-Morales (46).. O autor se baseia na reflexão de Riegl, segundo o qual o antigo é uma “manifestação da passagem do tempo histórico”, que promove uma sensação de satisfação, e as massas não têm interesse nas “informações eruditas” que essa arquitetura pode “decodificar, no detalhe de um ornamento” e na pátina, por exemplo. A leitura que é feita é mais global e decorre do aspecto desafiador à passagem do tempo dessa edificação. Em razão disso, Solà-Morales afirma que o “contraste” entre o antigo e o novo na arquitetura histórica é o foco da “sensibilidade contemporânea”, pois ela gera uma “satisfação estética básica”.
O “contraste”, termo empregado na discussão dos modelos teóricos estéticos, segundo Solà-Morales (47), pode, nesse contexto, ser entendido como “distinguibilidade”. Logo, na atualidade, a distinguibilidade pode ser influenciada por essa sensibilidade contemporânea aos estímulos visuais, tornando-se mais evidente e contrastante, e menos absoluta como definido por Brandi, para o qual se empregam harmoniosamente materiais diversos dos remanescentes e se simplificam a forma e a tecnologia das adições.
Considerações finais
A teoria de restauro deve ser a linha condutora da intervenção, com a qual o autor preserva o patrimônio arquitetônico na qualidade de referência, resguardando o próprio bem e sua funcionalidade, assim como os processos socioculturais que o envolvem. No caso das correntes teóricas contemporâneas, que fundamentam a definição do partido de intervenção no patrimônio arquitetônico, existem divergências quanto às recriações indulgentes ou reproduções distinguíveis, quanto às criações eloquentes ou evidentes, por exemplo. Tais posturas são associadas aos valores de antiguidade e de novidade, todavia estes não resumem a dialética teórica vigente para a intervenção, nem seu processo metodológico se atém exclusivamente a esses valores.
De fato, em âmbito nacional, o partido da intervenção, por vezes, revela-se empírico, marcado pela superficialidade e pela desarticulação a respeito das premissas teóricas do restauro mais fundamentais. Um indício disso é o recorrente emprego do tópico operacional brandiniano da distinguibilidade, como uma justificativa teórica pontual e superficial, em lugar da adoção de uma linha condutora para toda a intervenção. Isso ocorre porque há uma carência de aprofundamento teórico dos agentes responsáveis pela definição da intervenção e, à medida que o entendimento imediato da distinguibilidade é mais facilmente assimilado, ela ganha notoriedade, mas tem sua complexidade subestimada.
Outrossim, também ocorre porque a distinguibilidade é um “artifício” vinculado à adição do novo na edificação histórica. Nessa condição, o novo é enfaticamente identificável, pois torna-se uma oportunidade de acrescentar a “marca do arquiteto”, além de ser atrelado ao interesse das massas. Assim, o novo conforma a imagem do bem como um “pastiche” de sua significação, progressivamente substituindo a fundamentação teórica para a definição da intervenção, ou pelo menos o rigor teórico que a restauração demanda. Como resultante desse processo, também se confere novo sentido à preexistência, subvertendo sua precedência e relevância. Desse modo, a distinguibilidade torna-se uma figura de retórica que embasa um discurso de intervenção que potencialmente minimiza a preexistência.
Por outro lado, cabe ressaltar que o novo não é incompatível com a preservação contemporânea. A intervenção não prescinde do novo na funcionalidade da arquitetura histórica. Isto será válido, desde que a criação e o novo “sirvam” ao bem, que elevem o “discurso” da preexistência, resguardando-a como referência para preservação. De tal modo, a intervenção não pressupõe a segregação entre o projeto e a restauro, mas sim a aliança entre a criação harmoniosa e, particularmente tratando-se da prática nacional, as reproduções idênticas ou moderadamente reconhecíveis.
Não se pode negar que intervir na preexistência também é um processo criativo. Tolhê-la sumariamente com restrições conservadoras e tecnicistas, cuja origem está em processos de tombamento e valoração muito vinculados às características materiais do bem e pouco associados à sua significação, é negar sua longevidade como processo sociocultural vivo e dinâmico.
notas
1
CARBONARA, Giovanni. Tendencias actuales de la Restauración en Italia. Loggia, Arquitectura & Restauración, n. 6, 1998, p. 13. Tradução da autora.
2
Idem, ibidem, p. 17. Tradução da autora.
3
LACOMONI, Andrea. Saper credere in architettura: Cinquanta domande a Marco Dezzi Bardeschi. Napoli, Clean Edizoni, 2013.
4
KÜHL, Beatriz Mugayar. História e ética na conservação e na restauração de monumentos históricos. Revista CPC, v. 1, n. 1, 2006, p. 28.
5
KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização: problemas teóricos de restauro. 1ª reimpressão. Cotia, Atelie Editorial, 2008. p. 83.
6
LACOMONI, Andrea. Op. cit., p. 66-75. Tradução da autora.
7
KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização: problemas teóricos de restauro (op. cit.), p. 83-90.
8
LACOMONI, Andrea. Op. cit., p. 27-47. Tradução da autora.
9
TORSELLO, Benito Paolo. Che cos’ è il restauro? In BELLINI, Amedeo; TORSELLO, Benito Paolo (Org.). Che cos’ è il restauro? Nove studiosi a confronto. 6 edição. Venezi, Marsilio Editori, 2005, p. 53–56.
10
BELLINI, Amedeo. Che cos’ è il restauro? In BELLINI, Amedeo; TORSELLO, Benito Paolo (Org.). Op. cit., p. 23. Tradução da autora.
11
KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização: problemas teóricos de restauro (op. cit.), p. 86.
12
MARCONI, Paolo. Il restauro e l’architetto. 2ª edição. Venezia, Marsilio Editori, 1993, p. 8. Tradução da autora.
13
Idem, ibidem.
14
CARBONARA, Giovanni. Tendencias actuales de la Restauración en Italia (op. cit.).
15
KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização: problemas teóricos de restauro (op. cit.), p. 232.
16
MARCONI, Paolo. Il restauro e l’architetto (op. cit.). p. 181-189. Tradução da autora.
17
Idem, ibidem, p. 28. Tradução da autora.
18
CARBONARA, Giovanni. Brandi e a restauração arquitetônica hoje. Desígnio, n. 6, 2006, p. 16.
19
KÜHL, Beatriz Mugayar. História e ética na conservação e na restauração de monumentos históricos (op. cit.), p. 28.
20
CARBONARA, Giovanni. Brandi e a restauração arquitetônica hoje (op. cit.).
21
KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização: problemas teóricos de restauro (op. cit.).
22
Idem, ibidem, p. 82-90.
23
Idem, ibidem.
24
CARBONARA, Giovanni. Brandi e a restauração arquitetônica hoje (op. cit.), p. 14.
25
CARBONARA, Giovanni. Architettura d’oggi e restauro: un confronto antico-nuovo. Torino, Utet Scienze Tecniche, 2013, p. 69-70. Tradução da autora.
26
CARBONARA, Giovanni. An Italian contribution to architectural restoration. Frontiers of Architectural Research, v. 1, n. 1, 2012, p. 2-9.
27
CARBONARA, Giovanni. Architettura d’oggi e restauro: un confronto antico-nuovo (op. cit.), p. 6.
28
Idem, ibidem, p. 4. Tradução da autora.
29
CARBONARA, Giovanni. Brandi e a restauração arquitetônica hoje (op. cit.), p. 8-9.
30
Idem, ibidem, p. 9.
31
Idem, ibidem, p. 8.
32
VARAGNOLI, Claudio. Antichi edifici, nuovi progetti. Realizzazione e posizioni teoriche dagli anni Novanta ad oggi. In FERLENGA, Alberto; VASALLO, Eugenio; SCHELLINO, Francesca (Org.). Antico e Nuovo. Architetture e architettura, v. 2, Venecia, Il Poligrafo, 2007, p. 836.
33
KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização: problemas teóricos de restauro (op. cit.), p. 113.
34
Idem, ibidem, p. 183-223.
35
CUNHA, Cláudia dos Reis e. Restauração: diálogos entre teoria e prática no Brasil nas experiências do Iphan. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2010, p. 154-157.
36
Idem, ibidem, p. 154.
37
NAHAS, Patricia Viceconti. Antigo e novo nas intervenções em preexistências históricas: a experiência brasileira (1980-2010). Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2015. p. 348.
38
VARAGNOLI, Claudio. Op. cit., p. 837. Tradução da autora.
39
Idem, ibidem, p. 835-837. Tradução da autora.
40
VIEIRA-DE-ARAÚJO, Natália Miranda. Ressonâncias teóricas entre pesquisadores brasileiros e as correntes contemporâneas do restauro na itália: e a prática? Anais do Encontro Internacional sobre Preservação do Patrimônio Edificado (Armemória), n. 5, 2017, Salvador, 2017.
41
Idem, ibidem, p. 18.
42
VIEIRA-DE-ARAÚJO, Natália Miranda. Posturas intervencionistas contemporâneas e a prática brasileira institucionalizada. Anais do Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gradução em Arquitetura e Urbanismo (Enanparq), n. 3., 2014, São Paulo, 2014. p. 7.
43
Idem, ibidem, p. 16.
44
Idem, ibidem, p. 18.
45
RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e sua origem. São Paulo, Perspectiva, 2014.
46
SOLÀ-MORALES, Ignási de. Del contraste a la analogía. Transformaciones en la concepción de la intervención arquitectónica. Revista ph, n. 37, Especi, 2001, p. 53–54.
47
Idem, ibidem.
sobre a autora
Ana Cristina Csepcsényi é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal Fluminense (2002), mestra (2006) e doutoranda em Arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Possui experiência na área de projetos de intervenção no patrimônio cultural.