Buscando construir uma história da arquitetura na América Latina mais ampla e diversa, Susana Torre (1) apontou a ausência da contribuição das mulheres no discurso cultural, especialmente aquelas que trazem juntas as culturas indígena, ibero-americana e africana. Na última década vários estudos inseriram a participação de arquitetas na historiografia da arquitetura na América Latina, sobretudo revisando o trabalho de ilustres protagonistas. Não obstante, a historiografia da arquitetura moderna nacional ainda não contemplou devidamente a contribuição dessas protagonistas que trabalharam no Nordeste brasileiro e fizeram dessa região seu campo de pesquisa, à exceção da atuação de Lina Bo Bardi (2) na Bahia e seu reconhecimento tardio.
As trajetórias das arquiteturas no Nordeste brasileiro ainda permanecem, em sua maioria, ausentes ou excluídas da historiografia da arquitetura nacional, sobretudo, se considerarmos a enorme quantidade de trabalhos feitos na região. Tampouco se revisou pesquisas daquelas estudiosas da arquitetura do Nordeste sob diferentes óticas, sendo uma delas a da habitação popular, como inspiração para as suas práticas profissionais.
Migrações, gênero e regionalismo têm convergido para explicar o trabalho de arquitetas e sua luta por espaço no campo profissional, e o conhecimento e expertise sobre a cultura vernacular foram estratégias escolhidas para afirmação profissional em um campo de conhecimento ainda pouco explorado. Outra estratégia assumida foi a opção pelos cursos no exterior, seja no continente americano ou europeu, o que, oportunizaria interagir com profissionais de outros países, em centros de pesquisa de relevância.
Como trabalho relevante, no exterior, destaca-se Native Genius in Anonymous Architecture (1957), no qual a pesquisadora alemã Sibyl Moholy-Nagy desenvolveu um inventário de valorização da arquitetura vernacular e nativa norte-americana como estratégia de afirmação profissional em um campo pouco reconhecido pelos homens arquitetos (3). Atitude semelhante foi adotada por Denise Scott Brown (4), que também se destacou por suas pesquisas sobre cultura popular norte-americana (5), bem como a arquiteta do Sri Lanka, Minnette De Silva (6) (1918-1998), formada na Architectural Association em Londres, a primeira mulher arquiteta do Sri Lanka e pioneira da arquitetura moderna em seu país. Seus projetos enfatizaram a adaptação aos trópicos e as questões regionais (7).
Descobrir a riqueza dos inventários e a arquitetura vernacular como alternativa para construção de melhores casas foi uma opção usada por arquitetas em busca de afirmação profissional. Voltar às origens para divulgar as técnicas da casa popular, que constitui uma grande parte das nossas cidades em vários níveis hierárquicos e confrontar com o que vem sendo construído, também é uma estratégia bastante elogiável.
No caso das arquitetas Neide Mota e Liana Mesquita, o impulso se atrela à preocupação com o problema da habitação popular no Nordeste, levando em conta a experiência de cada uma, seja na formação acadêmica, seja no campo da pesquisa científica de origem regional e internacional aliada às habilidades artísticas que inspiraram o olhar apurado em diferentes escalas da arquitetura, do interior da casa à sua fachada e à paisagem.
Esse gesto peculiar caracteriza o olhar sensível das arquitetas ao decidir investigar o saber popular na arte de construir e que não se restringe à ação do construtor no objeto edificado, uma vez que considera as condições climáticas, os materiais de construção e, portanto, a paisagem, abrangendo as regiões da mata, agreste e sertão. A dimensão sensível do olhar das pesquisadoras é materializada no olhar fotográfico da arquiteta Ivone Salsa e respaldada na leitura de alguns filósofos.
Para tal, se procurou analisar sua formação e trajetória profissional, tratando das técnicas construtivas da casa popular, mas, também, dos utensílios e dos elementos regionais da paisagem vernacular demonstradas em textos, desenhos e, principalmente, fotografias. O caminho da investigação permite afirmar que a condição de mulher direcionou, de certo modo, a área de atuação, as escolhas e práticas profissionais e, portanto, uma lente especial de apreensão da paisagem com o estudo da habitação popular buscando informar sobre o saber popular.
A pesquisa abordada pontua tais aspectos e foi realizada na década de 1970, sob a coordenação das arquitetas Neide Mota e Liana Mesquita, então denominada Métodos Construtivos Tradicionais do Nordeste e que teve uma versão resumida, mas apresentando a essência do conteúdo, publicada em 2017 no livro Cidades do Nordeste: do pote à rua: Métodos construtivos tradicionais.
Esse artigo discute as aproximações do tema habitação à noção de paisagem vernacular, entendida como paisagem habitada ou vivida, explorando a sensibilidade do olhar voltado para a casa popular, mas que é extenso e amplo trazendo de maneira transversal questões como regionalismo e gênero que alimentam o debate da arquitetura e da paisagem a partir do olhar sensível das arquitetas.
Arquitetura e arte, regionalismo e gênero sobre uma visão de paisagem
Uma das razões para a ausência das profissionais arquitetas da arquitetura popular nordestina na historiografia nacional tem eco na noção de alteridade, construída pela historiografia brasileira para a região Nordeste, constituindo uma condição periférica no debate nacional” (8).
Para Durval M. de Albuquerque Jr. (9) a noção de alteridade foi construída pelos intelectuais para a região Nordeste. São vários nordestes inventados, imaginados e proclamados nos discursos de “saudade e tradição” e que desponta na “paisagem imaginária” do país:
“O Nordeste é, em grande medida, filho das secas; produto imagético-discursivo de toda uma série de imagens e textos, produzidos a respeito deste fenômeno, desde que a grande seca de 1877 veio colocá-la como o problema mais importante desta área” (10).
Por razões distintas isso também provocou migrações intrarregionais assim como expedições exploratórias em busca de conhecimento sobre cultura vernacular em forma inventários, levantamentos documentais sobre arquitetura popular, artesanato ou técnicas construtivas tradicionais, estratégias utilizadas por arquitetas, como uma forma de atuação, de afirmação profissional em um mercado bastante concorrido e predominantemente masculino (11).
Essa prática favoreceu a descoberta de novos campos profissionais, uma vez que “muitas mulheres que se interessavam pelos aspectos sociais do ambiente construído [...] tornaram-se planejadoras, críticas, escritoras, jornalistas” (12), dedicando-se à habitação social, planejamento urbano, ensino e pesquisas acadêmicas, bem como, cenografia, museografia, entre outros. Arquitetura de interiores (inclusive desenho de mobiliário e utensílios domésticos) foi um campo de atuação profissional que historicamente acolheu as mulheres, em sua luta por espaços profissionais (13).
Na década de 1970, quando decidiram iniciar a pesquisa Métodos Construtivos Tradicionais do Nordeste, Neide Mota dirigia o Núcleo de Habitação ligado ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e Liana Mesquita trabalhava no Setor de Habitação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene. Um dos laços que as unia era a amizade com o filósofo Evaldo Coutinho, seu professor na Faculdade de Arquitetura do Recife. Outros professores comuns do curso da disciplina de Projeto de Arquitetura, Acácio Gil Borsoi, vindo do Rio de Janeiro e Delfim Amorim, de origem portuguesa, faziam referências à arquitetura tradicional do Nordeste e experimentos sobre habitação popular utilizando a taipa.
Entre 1950 e 1960, viagens de estudo eram frequentes entre os estudantes do curso de arquitetura, tanto para a Europa como para as cidades históricas do Nordeste. Nessas ocasiões, o professor Delfim Amorim “apontava exemplares de arquitetura popular nordestina aos estudantes de arquitetura” (14).
Naquelas viagens, a cultura popular era objeto de estudo e discussão privilegiada também em disciplinas como arquitetura analítica. Os estudantes tinham a oportunidade de experienciar a paisagem conhecendo a história e refletindo sobre os problemas sociais da região. Uma prática frequente era a elaboração de inventários e registros fotográficos da arquitetura popular e das paisagens locais, a semelhança das práticas de documentação da arquitetura do período colonial realizadas pelos pioneiros da Escola Nacional de Belas Artes – Enba, entre eles Lúcio Costa, nos anos de 1920. Também se inclui a experiência do Inquérito à Arquitetura Portuguesa (1955), empreendida pelos arquitetos conterrâneos portugueses do professor Delfim Amorim que catalogaram a arquitetura vernacular em seis regiões do território português, publicado em 1961, sob o título Arquitectura Popular em Portugal (15).
A paisagem não era discutida como objeto e como componente do projeto, mas estava subentendida, se fazia presente como entidade que relaciona o meio e os seus componentes construtivos e de infraestrutura, as pessoas e o próprio ser humano (16).
Neide Mota, nascida no município de São Bento do Una – região agreste de Pernambuco – realizou pós-graduação em dois países da América Latina: Colômbia (1963), no Centro Interamericano de Habitação e Planejamento – Cinva; e Peru, no Curso Regular de Planejamento Urbano e Regional do Programa Interamericano de Planejamento Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA (1972). A experiência de Liana Mesquita unia conhecimentos da ecologia em viagens de estudo junto ao ecólogo Vasconcelos Sobrinho e da botânica com o professor Dárdano de Andrade Lima. Por outro lado, já se revelava como poeta e pintora, aluna do artista Elezier Xavier. Tanto uma como a outra atuaram em equipes multidisciplinar reunindo sociólogos, economistas, assistentes sociais, planejadores urbanos e engenheiros, tendo como tema central a habitação de interesse social (17).
O olhar artístico na habitação e a paisagem vernacular
O Nordeste foi sempre a região brasileira narrada com a noção da alteridade em relação ao Sudeste. José Carlos H. Espinoza (2014) (18) valendo-se de um levantamento preliminar do conjunto dos artigos publicados nas revistas do Sudeste: Acrópole, Arquitetura e Engenharia, e Módulo entre 1950-1970, verificou que o Nordeste esteve presente em diversos artigos e foi narrado como o local “selvagem e acolhedor”, nas palavras do jornalista Maurício Vinhas.
Para Maurício Vinhas (1959), a região foi muito além da ideia de cenários paradisíacos, quase intocados, os quais não haviam sofrido as transformações de outras cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo. A região entre Recife e Maceió, nas localidades de Ipojuca, Serinhaém (sic.), Rio Formoso e Barreiros, é o local paradisíaco ilustrado com diversas fotos de sua arquitetura vernacular, treliças em madeira, casebres em taipa, trepadores de coqueiros, jangadeiros e pescadores: “enormes cobertas de palhas, sem paredes, amparadas em vigas de troncos de coqueiros” (19).
É intrigante e paradoxal a matéria do jornalista Maurício Vinhas publicada na Revista Módulo 12 (1959) imaginando um passeio de Paul Gauguin pelo interior do Nordeste no itinerário Recife-Maceió passando da paisagem dos canaviais à dos coqueiros de São José da Coroa Grande, também conhecida como Puiraçu, em Pernambuco, e Japaratinga e Maragogi, em Alagoas. Apesar de sua arte fotográfica, capturando as casas de folhas de coqueiros trançadas – que ele chama de ‘mucambos’ – e os trepadores de coqueiros, que atraem a curiosidade do leitor, o autor revela seu sentimento de pouca estima pela gente do lugar. Diz ele que Gauguin “cansado de pura paisagem” se dispõe a conversar com “aquela gente” – entre eles os jangadeiros – e que, certamente, correria o risco de deixar de pintar, pois Puiraçu, apesar da beleza é também “lugar que entorpece e desalenta” (20).
É possível que os não nordestinos ou ‘estrangeiros’ tivessem incorporado sim este estereótipo culturalmente trabalhado. No entanto, o olhar sensível das arquitetas nordestinas segue outro viés, o olhar artístico e científico-investigativo de curiosidade e admiração, de divulgar um tipo de saber popular invisível para a sociedade.
O olhar sensível sempre busca mais do que o objeto focal e descobre além dele, sendo assim os outros elementos interiores e exteriores começam a ter significado (21). Esses elementos constituem um conjunto e uma composição que se aproxima da arte e, também, um sentimento de interesse a partir de algo artístico o que fica bem explícito nas palavras de Collot: “É o olhar que transforma o local em paisagem e que torna possível sua ‘artialização’, mesmo que a arte o oriente e o informe em retorno” (22).
Para o filósofo da ‘artialização’ Alain Roger (23), a arte está na natureza o que possibilita o sentir a paisagem. Ainda mais valorizando o meio e suas características, ou melhor, o que proporcionou a possível resposta da habitação na paisagem. A composição, na verdade, está na natureza e é operacionalizada ou “artializada” como paisagem, de forma direta no terreno como um jardim (in situ) e de forma indireta em diferentes representações artísticas como pintura, literatura, entre outros (in visu). Mas, para perceber essa totalidade, é preciso sentir a natureza como essência da paisagem. É o que a filósofa Adriana Serrão ressalta no pensamento do italiano Rosario Assunto para enfatizar a necessidade da imanência na natureza enquanto paisagem como essência vivencial da experiência. Assunto enfatiza que tal condição faz ultrapassar a relação de paisagem como panorama ou vista ou cenário para “chegar a senti-la como lugar de estadia e de habitação” (24). Sabe-se que habitação não é a casa em si, é a casa e os seus usos, é formar hábitos no lugar, é o cotidiano, enfim, é estabelecer um modo de vida (25).
A paisagem nos fala dos homens, dos seus olhares e dos seus valores, e não propriamente do mundo exterior (26). Na realidade, só haveria paisagens interiores mesmo se essa interioridade se traduz e se inscreve no exterior, no mundo. Então essa paisagem vivida é a paisagem habitada e que, para Besse (27), é a paisagem vernacular, que tem caráter provisório, pois responde às circunstâncias do meio mas, também, tem uma dimensão criativa. O sentido da paisagem está na experiência que se materializa também como imagem, o que ocorre em se tratando de uma fotografia ou uma pintura, assim a imagem é uma representação de paisagem.
Tais considerações ampliam a compreensão do propósito da pesquisa e as escolhas quanto ao material gráfico produzido, muito mais fotografias, além de desenhos que explicitam arte e técnica sintonizados no olhar e gesto de cumplicidade das arquitetas coordenadoras tão bem correspondido no olhar da fotógrafa arquiteta Ivone Salsa. A captura da paisagem a partir do olhar artístico é o que une as três arquitetas e esse entrosamento está na sensibilidade diante da arte da natureza que se manifesta na paisagem a partir da troca de experiências, no vivenciar que aflora a percepção e no respeito ao gesto humano, no caso, o arquiteto amador ou o construtor popular.
A intimidade com a região Nordeste e a veia investigadora das arquitetas direcionam a escolha das cidades para o interior dos três estados que são Pernambuco, Paraíba e Alagoas, o que fica bem caracterizado logo na introdução do livro:
“O homem do campo constrói a sua casa com o material que tem à sua disposição, geralmente o mais adequado tanto ao seu nível de renda quanto às condições climáticas. Criam, além disso, espaços que correspondem às suas necessidades, originando uma obra em que se acham as marcas do meio geográfico e das restrições socioeconômicas que lhe são impostas, revelando ainda a sua herança cultural” (28).
Nesse trecho fica explícito o pensamento de unidade das autoras referindo-se à racionalidade do construtor popular, na medida em que ressalta suas limitações, salienta a criatividade em aproveitar do que tem ao seu redor, nas suas proximidades e adequá-los às suas necessidades.
O sociólogo Gilberto Freyre se antecipou nessas considerações a respeito da casa do homem simples, que trata como construtor popular, do campo, que vem pra cidade, ou daquele que precisa de um abrigo para sobreviver na cidade, que ele chama de mucambo (29) admitindo, também, a referência à ‘paisagem social’ do Nordeste.
No prefácio da segunda edição do livro Mucambos do Nordeste (1967), Freyre (30) se refere ao termo “arquitetos anônimos” que é usado pela pesquisadora alemã Sybil Moholy-Nagy “escrito há alguns anos atrás”, que são colonos rústicos, construtores, durante a ocupação dos Estados Unidos, mas, admite que poderia atribuir o termo aos construtores populares, sejam eles, mestiços, negros ou ameríndios, pois, o mocambo e outros tipos de construção popular foram influenciados pelo africano e pelo indígena. O sociólogo caracteriza, assim, um tipo de construção da ‘paisagem social’ do Nordeste que é ressaltada no prefácio à primeira edição de 1936 (31), elaborado pelo diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rodrigo Melo Franco de Andrade. Afirma ainda que, do ponto de vista da ecologia, a composição material do mocambo do Nordeste utiliza tipos diferentes de vegetação presentes na paisagem regional, aspecto de destaque no estudo das arquitetas.
Na pesquisa aqui, pontuada, foram coletadas várias informações referentes à casa de tijolo, de taipa e de pedra e às técnicas construtivas focalizando a estrutura, a coberta, o piso, e outros detalhes como a forma de cozinhar alimentos e armazenar água, por exemplo. O que impressiona mais é a fotografia, o olhar não só das vistas panorâmicas do casario, das ruas e calçadas, além dos detalhes de cada elemento da composição construtiva e, portanto, do espaço interior e exterior da casa. Essa investigação está pautada, evidentemente, no gesto, na expressão humana que é a experiência de paisagem.
Para Paulo Cesar da C. Gomes (32), a composição, entendida como um conjunto estruturado de formas ou coisas, é uma expressão da espacialidade e é também um aspecto da morfologia da paisagem, assim como o enquadramento que, na nossa mente, configura a imagem. Logo, Besse (33) afirma que a paisagem é uma leitura, uma interpretação e que também pode se expressar como uma linguagem. Com isso podemos estimar que existem linguagens de paisagem (34) das cidades do Nordeste, caracterizadas pela arquitetura do construtor popular ao trabalhar a casa de taipa, de pedra e de tijolo, além do clima e dos elementos naturais do entorno representados na vegetação específica das zonas da mata, agreste e sertão – mata atlântica, caatinga – e que esta pesquisa trata de expor.
Do pote à rua: métodos construtivos tradicionais
A relevância dessa discussão permanece tangenciando o estudo da arquitetura brasileira que resiste à inclusão da casa popular como casa brasileira (35). Para ilustrar lembramos que, na Aula Magna realizada na Escola de Belas Artes, em 1939, o engenheiro Joaquim Cardozo foi veemente quando, ao criticar a casa colonial como arquitetura brasileira, afirmou que:
“A expressão artística brasileira não é puramente a do índio, nem a do português colonizador; é, principalmente, sob a imensa influência destas, a manifestação da consciência de um povo livre e de parcos recursos que nasceu e se desenvolveu dentro de uma paisagem tropical, exuberante e prodigiosa. Nestes termos, quase poderíamos dizer que a arquitetura civil brasileira é a da casa de beira de mangue ou da boca da mata, o mocambo, ou melhor, a casa de taipa, arquitetura pobre, de fracos recursos, porém bem integrada na paisagem, revelando, nas suas linhas, a marca de um gosto coletivo e, mais do que qualquer outra, adaptada à vida ambiente e à necessidade de morar (grifo nosso) (36).
Joaquim Cardozo, conhecido como mestre dos múltiplos saberes (37), parece descortinar a realidade ainda, convenientemente, invisível e usa a expressão clara da casa de arquitetura pobre, o mocambo, que se esconde como casa à beira de mangue ou da boca da mata, porém, paradoxalmente, é bem integrada na paisagem. Nessa mesma fala, recorre ao sociólogo Gilberto Freyre mencionando seu estudo sobre os mocambos, além de ressaltar a experiência pioneira relacionando arquitetura e paisagem da equipe da Diretoria de Arquitetura e Urbanismo da década de 1930 (38).
Assim, perseguindo o mesmo propósito social da casa popular, a pesquisa sobre os métodos construtivos tradicionais reuniu duas arquitetas Neide Mota e Liana Mesquita e três instituições, a UFPE, a Sudene com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, instaladas no Centro de Artes e Comunicação da UFPE, onde conheceram a arquiteta e fotógrafa Ivone Salsa (39).
Em 1978, as arquitetas desbravaram o Nordeste documentando suas construções primitivas na investigação dos métodos construtivos tradicionais (40) e, por conta disso, abriram uma nova perspectiva de atuação profissional, possibilitando a criação de um núcleo de pesquisa de habitação e introduzindo estudos da ecologia urbana e da arquitetura da paisagem (41).
Buscando ‘preciosas lições de sabedoria popular tão cheias de simplicidade e criatividade’ (42), as arquitetas justificam na introdução do livro que:
“No Nordeste do Brasil há, sem dúvida, uma experiência construtiva acumulada que merece ser conhecida e captada em diferentes aspectos, abrangendo além do uso de materiais e técnicas construtivas soluções de abastecimento d'água, para a guarda e cocção de alimentos, como também o tratamento dos espaços interno e externo das edificações. Assim, empregando materiais não industrializados, muitas vezes resultantes de simples extração em fontes naturais, como o barro, a madeira, a palha, etc., ou de confecção manual, como o tijolo de adobe, a telha e o tijolo de barro etc., as edificações envolvem comumente práticas de autoconstrução por parte das populações pobres seja no meio urbano e/ou rural” (43).
Neide Mota de Azevedo juntou a familiaridade com as construções populares de seu passado vivido em meio rural, ao gosto e sensibilidade pelos detalhes construtivos implícitos nas técnicas tradicionais do Nordeste, que a possibilitou se aproximar dos setores populares de construção bem como descobrir a criatividade de soluções espontâneas do povo do Nordeste (44). Por outro lado, Liana Mesquita trazia estudos e experiências sobre habitação popular vivenciadas na equipe do setor de habitação da Sudene e a visão sistêmica da ecologia aliada ao seu talento artístico de pintora e poeta, fontes basilares à apreensão de paisagem.
Buscando meis de construir com simplicidade e economia de recursos com vistas a buscar respostas para o problema habitacional, a pesquisa abrangeu 57 localidades dos estados de Pernambuco, Paraíba e Alagoas, sendo 23 no Sertão, 18 no Agreste e 16 no Litoral e Mata.
A intenção de paisagem está presente na vista panorâmica de algumas cidades – Triunfo e Vitória de Santo Antão, em Pernambuco e, Souza e Areia, na Paraíba – nas quais se percebe o skyline, as massas construídas e as vegetadas, a topografia, as superfícies aquáticas, a composição dos telhados e a proeminente torre da igreja.
O arruado fica bem caracterizado na cidade de Ingá ressaltando as ruas não pavimentadas e a área generosa de afastamento da entrada das casas a partir de alguns degraus e um pequeno patamar. Os detalhes das fachadas, em frontões planos, são elementos de identidade na cidade de Areia, assim como o movimento dos telhados em duas águas na Vila Mata Limpa. O espaço público é ponto focal na amplitude de chão batido da cidade de Ingá, Paraíba, em frente à igreja enquanto jarros enfileirados em calçadas mais amplas nas ruas de Sirinhaém, Pernambuco, representam os jardins imaginários.
Além dos métodos e detalhes construtivos das casas, a exemplo dos exaiméis para recebimento do barro documentaram portas e janelas, sejam de madeira ou palha, esquadrias, elementos de vedação – painéis trançados em folhas de coqueiro –, tanques para lavagem de pratos e de roupas, mesas de tijolos para fogões, armador de redes, forquilhas, mesas, moedor de café, potes para armazenagem de alimentos, moedor de carne, soluções para armazenar alimentos.
Para Enio Laprovitera (45), embora os estudos tenham sido realizados apenas na década de 1970, “seus conteúdos anunciaram o que foi objeto dos debates sobre o Brasil na década de 1960” interrompidos pelo golpe militar de 1964 e a criação do Banco Nacional de Habitação – BNH.
A habitação na paisagem: gênero e regionalismo
Não se trata de entender todas as arquitetas que atuaram no Nordeste com a noção de alteridade, mas identificar em que aspectos a ideia de alteridade e regionalismo, construída para o Nordeste, refletiu-se na obra dessas mulheres arquitetas, ou ainda, como puderam tirar partido dessas estratégias de aproximação à tradição cultural do Nordeste em suas obras, e em última instância, como suas atitudes profissionais refletem uma preocupação com a sustentabilidade de técnicas construtivas tradicionais.
A investigação das arquitetas Neide Mota e Liana Mesquita sobre os métodos construtivos tradicionais revela uma linguagem construída a partir das fotografias que percorre diferentes escalas da arquitetura popular enfatizando tanto a dimensão técnica como a dimensão artística das soluções encontradas. A riqueza desse material não obteve o devido mérito, apesar da reconhecida necessidade e apoio financeiro institucional para sua execução, inicialmente. Depois, caiu no esquecimento e ficou por muitos anos na prateleira apesar do empenho das autoras em publicá-lo, o que significa aproximadamente trinta anos. Uma das hipóteses é que não constituía ideia central na arquitetura, uma bela arquitetura.
A sensibilidade em trabalhar diferentes escalas da arquitetura dos utensílios até os gestos das pessoas e a rua, se expressa nos ângulos fotográficos e nos desenhos detalhados da madeira, do barro, da pedra e da palha, transportando o leitor em uma viagem no tempo para observar a arte da construção nas paisagens das cidades do Nordeste brasileiro.
notas
NA – Agradecemos à mestranda Raquel Nadine do MDU UFPE pelo apoio à edição do artigo.
1
TORRE, Susana. Teaching Architectural History in Latin America: The Effusive Unifying Architectural Discourse. Journal of the Society of Architectural Historians, v. 61. n. 4, p. 549-558, dec. 2002. University of California Press <http://www.jstor.org/stable/991875>.
2
Desbravou o campo nordestino ao atuar na Bahia entre (1958-1964), coletou e registrou a cultura popular da região: a casa, as técnicas construtivas tradicionais, o artesanato popular, utensílios domésticos e assentamentos urbanos. BARDI, Lina Bo. Tempos de Grossura. São Paulo, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1994; PEREIRA, Juliano Aparecido. Lina Bo Bardi Bahia, 1958-1964. Uberlândia, EDUFU, 2008.
3
HEYNEN, Hilde. Anonymous architecture as counter image: Sibyl Moholy-Nagy's perspective on American vernacular. The Journal of Architecture, August 2008.
4
BROWN, Denise Scott. Sexism and the star system in architecture. In ARNOLD, Dana. Reading Architectural History. New York, Routledge, 2006, p. 205-210.
5
HEYNEN, Hilde. Genius, Gender and Architecture: The Star System as Exemplified in the Pritzker. KU Leuven University Library, February 2013.
6
MINNETTE DE SILVA. Wikipédia, a enciclopédia livre <https://en.wikipedia.org/wiki/Minnette_de_Silva>.
7
DARLEY, G. Introductions. In DE SILVA, M.; DE VOS, A.; SIRIVARDANA, S. (Orgs.). The Life and Work of an Asian Woman Architect. Sri Lanka, Minnette De Silva (Pvt) Ltd/ Smart Media Productions (Pvt) Ltd., 1998.
8
Relação de diferença do eu com o outro, dentro de um contexto sociopolítico. A alteridade despertou a atenção dos filósofos do século 20 como Jacques Derrida, sendo elemento de compreensão da realidade que alcança a questão da ética e da política e que inclui a relação cultural e de gênero: “a relação do eu com o outro é, notadamente, uma relação de assimetria e radical desigualdade”. TAVARES NETO, José Q.; KOZICKI, Katya. Do “Eu” para o “Outro”: a alteridade como pressuposto para uma (re) significação dos direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito, v. 47, n. 0, UFPR, s.d., 2008, p. 65-80 <https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/15735/10441>.
9
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo, Cortez, 2013, p. 78.
10
Idem, ibidem, p. 81.
11
NASLAVSKY, Guilah. Tradição do Nordeste brasileiro na obra de três arquitetas: Lina Bo Bardi, Janete Costa e Neide Mota de Azevedo. Anais do 7º Docomomo Norte/Nordeste. Manaus, Docomomo, 2018, p. 1-19 <https://7docomomomanaus.weebly.com/uploads/7/0/0/2/70024539/tradi%C3%87%C3%83o_do_nordeste_brasileiro_na_obra_de_tr%C3%8As_arquitetas_lina_bo_bardi_janete_costa_e_neide_mota_azevedo.pdf>.
12
WRIGHT, Gwendolyn. On the Fringe of the profession: Women in American Architecture. In KOSTOF, Spiro. The Architect: chapters in the history of the profession. New York, Oxford University Press, s.d., 1977, p. 284.
13
Idem, ibidem, p. 280.
14
Entrevista concedida pelo arquiteto Marcos Domingos da Silva a Guilah Naslavsky. Recife, 4 jul. 2003. Apud NASLAVSKY, Guilah. Arquitetura moderna em Pernambuco, 1951-1972: as contribuições de Acácio Gil Borsoi e Delfim Fernandes Amorim. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2004.
15
Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal. Wikipédia: a enciclopédia livre. Wikimedia, 2013 <https://bit.ly/3fBgcE9>.
16
BERQUE, Augustin [1994]. Paisagem, meio, história. Cinco Propostas para uma Teoria da Paisagem. In BARTALINI, Vladimir (Org.). Paisagem Textos 2. São Paulo, FAU USP. Textos da disciplina, 2013, p. 31-42.
17
LAPROVITERA, Enio.L'Architect et le people à Recife (Brésil),1959-2009.2009. 540 f. Tese de doutorado em Ciências Sociais. Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2009, p. 119.
18
ESPINOZA, José Carlos H. “O Nordeste selvagem e acolhedor”: o olhar carioca, paulista e mineiro sobre a arquitetura moderna nordestina através das revistas especializadas, 1950-1970. Anais do Seminário Docomomo Norte/Nordeste, n. 5, 2014, Fortaleza, UFC, 2014, p. 1-11.
19
VINHAS, Maurício. Nordeste selvagem e acolhedor. Revista Módulo, n. 12, 1959, p. 8.
20
Idem, ibidem, p. 8.
21
COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Rio de Janeiro, Oficina Raquel, 2013, p. 18.
22
Idem, ibidem, p. 18.
23
“Artialização” segundo Alain Roger, corresponde à operação artística que se estabelece na relação homem/natureza quando a natureza se torna paisagem então representada na poesia, na pintura, na fotografia (in visu) e, também, no jardim (in situ). ROGER, Alain. Natureza e cultura. A dupla artialização. In SERRÃO, Adriana V. (Org.) Filosofia da Paisagem. Uma antologia. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011, p. 151-166.
24
SERRÃO, Adriana. V. Pensar a Sensibilidade. Baumgarten-Kant-Feuerbach. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007.p.60.
25
BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro, Editora UERJ, 2014.
26
Idem, ibidem.
27
Idem, ibidem.
28
MESQUITA Liana; MOTA, Neide. Cidades do Nordeste: do pote à rua: métodos construtivos tradicionais = Cities of the Northeast: from the pot to the street: traditional construction methods; Liana Mesquita, Neide Mota; organização AUTOR; tradução Yellow Idiomas; fotografia Ivone da Silva Salsa. Recife: Cepe, 2017. 226p. il.p.21.
29
FREYRE, Gilberto. Mucambos do Nordeste. Algumas notas sobre o tipo de casa popular mais primitivo do Nordeste do Brasil. Recife, Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1967. Segundo Freyre, a denominação ‘mucambo ou mocambo’ é de origem africana, é uma palavra quibunda, formada do prefixo mu+kambo, que quer dizer esconderijo.
30
Idem, Ibidem, p. 29.
31
Neste prefácio, Rodrigo de M. F. de Andrade faz referência ao livro de Gilberto Freyre, ‘Sobrados e Mucambos’ publicado, em 1936, em que a paisagem social se dá a partir da relação entre os tipos de habitação e os sistemas de vida de seus moradores.
32
GOMES, Paulo Cesar da C. O lugar do olhar. Elementos para uma geografia da visibilidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2013.
33
BESSE, Jean-Marc. Op.cit.
34
SPIRN, Anne W. The language of landscape. Connecticut, Yale University Press/New Haven London, 1998. Linguagem da paisagem: conceito utilizado por Anne Spirn, ressalta a paisagem como a linguagem nativa, a habitação original sobre a terra e sob o céu entre humanos, plantas e animais; é o primeiro texto a ser lido.
35
A exceção fica com WEIMER, Günter Weimer. Arquitetura popular brasileira. São Paulo, Martins Fontes, 2005; uma história à parte nos manuais de arquitetura nacional.
36
CARDOZO, Joaquim. Aula Magna: Escola de Belas Artes. In MACEDO, Danilo Matoso; SOBREIRA, Fabiano José Arcadio (Org.). Forma estática-forma estética: ensaios de Joaquim Cardozo sobre arquitetura e engenharia. Brasília, Câmara dos Deputados/Edições Câmara, 2009, p. 56.
37
SANTANA, G. Joaquim Cardozo. O engenheiro da poesia. In MACEDO, Danilo Matoso; SOBREIRA, Fabiano José Arcadio (Org.). Op. cit., p. 20.
38
CARDOZO, Joaquim. Aula Magna: Escola de Belas Artes (op. cit.).
39
MESQUITA Liana; MOTA, Neide. Op. cit.
40
MOTA, Neide; MESQUITA, Liana. Métodos Construtivos Tradicionais do Nordeste. Recife, UFPE/Sudene, mimeo,1978.
41
Atualmente o Laboratório da Paisagem do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, criado em 1998, é coordenado pela Profa. Ana Rita Sá Carneiro, que foi responsável pela organização do livro Cidades do Nordeste: do pote à rua: métodos construtivos tradicionais, das arquitetas Liana Mesquita e Neide Mota.O Laboratório dá continuidade aos estudos sobre a paisagem do Nordeste, evidenciando a atualidade do trabalho das arquitetas frente às novas demandas de sustentabilidade.
42
MOTA, Neide; MESQUITA, Liana. Op.cit., p. 41.
43
Idem, Ibidem, p. 21.
44
LAPROVITERA, Enio. Op. cit.
45
Idem, ibidem, p. 219.
sobre as autoras
Guilah Naslavsky é arquiteta e urbanista (UFPE, 1992); mestre (1998) e doutora (2004) em Estruturas Ambientais e Urbanas na área de História da Arquitetura pela FAU USP e pesquisa sobre arquitetura moderna no Recife. É professora de História e Teoria da Arquitetura desde 1995 na Faupe/Unicap/UFPB, na graduação e no Departamento de Arquitetura e Urbanismo do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE.
Ana Rita Sá Carneiro é arquiteta, doutora pela Oxford Brookes University (1996), professora da Graduação e da Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano e coordenadora do Laboratório da Paisagem do Departamento de Arquitetura e Urbanismo – UFPE; membro do Comitê Internacional de Paisagens Culturais Icomos – IFLA e representante do Icomos Brasil. Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq: Jardins de Burle Marx. Publicou, entre outros, Parque e Paisagem. Um olhar sobre o Recife (EdUFPE, 2010).