Desde 2007, os moradores da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, tiveram contato com dois projetos urbanos de grande porte: o Projeto de Aceleração do Crescimento/Urbanização de Assentamentos Precários – PAC UAP, programa federal iniciado em 2007 e parcialmente implementado até 2018, e o Projeto Comunidade Cidade, do Governo do Estado anunciado em 2019. Esse artigo se propõe a analisar a participação comunitária nesse período, com foco na realidade ocorrida e a visão dos moradores sobre o projeto e o processo participativo. Enquanto o PAC UAP apresentava uma forma de participação institucionalizada nos Canteiros Sociais, o projeto Comunidade Cidade não prevê formas de participação dos moradores. A partir de um levantamento das ONGs e coletivos atuantes na Rocinha e o acompanhamento das reuniões de um coletivo local, percebemos diferentes formas de organização da população frente aos problemas urbanos e sociais e identificamos algumas questões que se apresentaram como os principais anseios dos moradores em relação os temas urbanísticos na comunidade.
O trabalho se insere em uma pesquisa mais ampla que tem por objetivo geral analisar as políticas públicas e as práticas urbanísticas em favelas na cidade do Rio de Janeiro que receberam recursos do PAC UAP, aferindo os níveis de participação comunitária e as dimensões de inclusão, justiça social e autonomia, e utiliza como casos referência, além da Favela da Rocinha, as favelas do Pavão-Pavãozinho-Cantagalo e da Babilônia e Chapéu-Mangueira.
Neste trabalho, o foco é na favela da Rocinha, apresentando os resultados da pesquisa nesta área.
O Censo de 2010 indica a Rocinha, considerada um bairro em termos administrativos, como a maior favela do Brasil. Hoje, o bairro tem oficialmente 69.156 moradores em 25.135 domicílios (1), mas lideranças comunitárias estimam que haja pelo menos 120 000 habitantes. Ocupa uma área de 838.648 m², tendo como vizinhos os bairros de classe média alta de São Conrado e Gávea (2).
A Rocinha possui um histórico de mobilizações e ativismo comunitário; são comuns os movimentos feitos pelos moradores reivindicando acesso a água, energia e saneamento básico e movimentos de resistência às constantes intervenções policiais e aos episódios de violência. A Rocinha possui também um perfil de moradores bastante heterogêneo, no que se refere à emprego e renda, escolaridade e faixa etária. Nos anos de 1966, 1967, 1996 e 2010, ocorreram deslizamentos de terra que resultaram na morte de pessoas e na perda de casas, geralmente resultando em remoções (3). Dadas as condições topográficas do sítio e a precariedade de várias habitações, aliadas aos problemas de infraestrutura e de segurança pública, a Rocinha apresenta várias áreas de risco e vulnerabilidade socioambiental.
Em 23 de julho de 2007, iniciou-se o projeto PAC UAP na Rocinha. Este foi uma iniciativa do Governo Federal que resultou em projetos de urbanização em diversas favelas no país. O projeto na Rocinha foi realizado em duas etapas, ambas as quais foram paralisadas antes da conclusão. A primeira etapa (PAC1), com 73,63% das obras concluídas, teve o custo de 122,02 milhões de reais, enquanto a segunda (PAC2), com 44% das obras concluídas, de 156,78 milhões.
As principais obras realizadas foram: a construção de equipamentos públicos, como o Complexo Esportivo, a Unidade de Pronto Atendimento – UPA e a Biblioteca Parque; o alargamento e pavimentação da rua 4; e a construção de 144 unidades habitacionais, destinadas a famílias que sofreram remoções (4).
Este trabalho está organizado em 3 seções. Na primeira apresentamos rapidamente o Programa PAC UAP, centrando na participação comunitária institucionalizada por meio do PAC Social. Depois apresentamos os resultados dos levantamentos que efetuamos das ONGs e coletivos atuantes na Rocinha, classificados de acordo com o tipo de atuação, data de fundação, localização, dentre outros atributos, para verificarmos se o PAC Social promoveu um aumento da participação comunitária. Finalmente, apresentamos os resultados do nosso trabalho de acompanhamento das reuniões do Coletivo Rocinha Sem Fronteiras – RsF, no qual foi possível traçar algumas considerações iniciais sobre a realidade e o anseio dos moradores frente aos problemas urbanos e à participação efetiva nos projetos urbanos.
Participação comunitária no PAC UAP – o PAC Social
O Programa de Aceleração do Crescimento – PAC foi criado no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2007-2010). O objetivo principal era incentivar o desenvolvimento social e econômico do país por meio de investimentos maciços nas áreas de transporte, energia, saneamento, habitação social e recursos hídricos. Havia um segmento específico para projetos de urbanização de favelas. Em 2000 estimou-se que cerca de 3,2 milhões de famílias viviam em assentamentos precários no Brasil.
O PAC pode ser considerado uma política pública inovadora. Pretendia combinar crescimento econômico com desenvolvimento social, concentrando-se na melhoria das condições sociais das classes menos favorecidas. O PAC em geral concentrou-se no fornecimento ou modernização de infraestrutura econômica e social, com investimentos maciços em habitação, saneamento e transporte. Cerca de 2,5% do investimento total do PAC foi dedicado ao PAC Social, para incentivar a participação comunitária na fase de implementação dos diferentes projetos, que aconteceria em espaços construídos específicos, onde ocorreria uma interação entre o Estado, as empresas de construção e a população, mediada pelas ONGs.
A partir de 2003, houve um aumento substancial nos recursos destinados aos programas de urbanização de favelas, de R$ 336.512 milhões em 2003, R$ 704.159 milhões em 2004, R$ 682.409 milhões em 2005, R$ 1.040.014 milhões em 2006, atingindo R$ 1.643.039 milhões em 2007. Neste ano, o governo federal inaugurou oficialmente o PAC Urbanização de Assentamentos Precários – PAC UAP, com o objetivo de melhorar as condições de moradia e infraestrutura nas favelas.
O PAC UAP tinha três princípios norteadores: a) melhorar as condições de moradia e infraestrutura das favelas por meio de intervenções físicas; b) dotar a área de equipamentos públicos; c) promover a inclusão social, garantindo a participação dos moradores nas diferentes fases das propostas.
Para as favelas do Rio de Janeiro, os recursos foram direcionados para quatro grandes assentamentos: Complexo do Alemão, Manguinhos, Cantagalo-Pavão-Pavãozinho e Rocinha (5).
As intervenções previam a instalação de infraestruturas de saneamento, drenagem, iluminação pública, ampliação e pavimentação de ruas, construção de novas habitações sociais e melhorias nas antigas e construção de equipamentos públicos. Nas favelas haveria a participação das três esferas de poder: federal, estadual e municipal.
Os principais resultados do PAC UAP nas comunidades foram a construção de moradias sociais, a construção de unidades educacionais, de saúde e culturais. Na Rocinha construiu-se 144 novas moradias. Na primeira fase do PAC UAP no Rio, aproximadamente 4.000 famílias foram realocadas devido às obras, não necessariamente por estarem em áreas de risco. Embora o governo dissesse que era um processo de realocação, o que aconteceu foram remoções, que ser tornaram uma das questões mais problemáticas na implementação do PAC UAP e foco de muitas mobilizações e ações de insurgência e de resistência.
Dentro dos termos do PAC existiam três formas de compensação: o aluguel social, um pequeno crédito para comprar uma nova casa, ou uma quantia em dinheiro.
Havia dois tipos principais de despejo: a) devido às obras do PAC; b) devido ao risco. Nos dois casos, houve muita resistência por parte dos moradores em sair de sua moradia e muitas dificuldades no processo de realocação.
Todo o processo de remoção era uma fonte constante de conflitos entre a comunidade e o governo. Deve-se notar que não houve nenhum esforço por parte do governo para divulgar informações confiáveis sobre as remoções. Isso criou mais insegurança e desconfiança entre as famílias.
Para receber recursos do governo federal, os Estados deveriam promover formas de participação nas diversas fases do projeto de urbanização, através do PAC Social (6). No Estado do Rio, o PAC Social ficou vinculado à Secretaria do Gabinete Civil. Segundo o discurso oficial, a participação da comunidade e seu envolvimento em uma espécie de cogestão fortaleceria as intervenções sociais e criaria legitimidade para as obras urbanas. De fato, observa-se que desde a primeira fase do PAC UAP a participação da comunidade aumentou e mudou de caráter. Para a implementação da segunda fase do PAC UAP, as comunidades envolvidas pediram para participar do diagnóstico social e discutir todos os equipamentos e obras públicas a serem construídos. Um dos componentes do processo de participação foi a formação de diferentes comitês: Comitê de Construção, Comitê de Realocação etc.
Todos os projetos a serem financiados pelo PAC precisavam necessariamente formular o Projeto de Serviço Técnico Social, conhecido como Serviço Social. O elemento de participação no PAC UAP deveria basear-se em regras e procedimentos muito específicos, que foram compilados no manual “Instruções Específicas para o Desenvolvimento do Trabalho Social para a Urbanização de Assentamentos”, criado pela Secretaria Nacional de Habitação, Ministério das Cidades em 2007. Foi uma tentativa de integrar as pessoas afetadas pelas obras públicas em diferentes fases do projeto, desde a concepção, implementação, gestão e avaliação.
O processo participativo dentro do PAC ocorreria em três diferentes momentos. Durante o início da fase de projeto, definida como a fase pré-obra. Nesta fase, o diagnóstico econômico e social seria apresentado à população. Isso incorporaria as necessidades e demandas da comunidade. Um segundo momento de participação ocorreria durante a execução das principais obras. Nesse momento, informações sobre os trabalhos seriam fornecidas e haveria a capacitação dos líderes para mediar conflitos em potencial quando os trabalhos afetassem diretamente os moradores, especialmente no caso das remoções. Um terceiro momento do processo de participação ocorreria após a conclusão dos trabalhos. Essa seria a fase de adaptação dos moradores ao novo ambiente urbano. Isso incluiria a preparação para o uso dos novos espaços públicos, o processo de regularização fundiária e o término do trabalho social (7).
ONG’s e coletivos na Rocinha
Em outubro de 2018, a pesquisa iniciou um levantamento de ONGs, coletivos e mídias comunitárias que atuam na Rocinha para verificar se houve um aumento da participação comunitária pós PAC Social. O levantamento continha informações de cada iniciativa como ano de fundação, endereço, público alvo, responsável/grupo coordenador, se fundada ou não por moradores, apoio/patrocínio, tipo, atuação interna ou externa à comunidade, dentre outras. Classificamos as iniciativas segundo o ano de fundação – antes ou depois do início do PAC Social na Rocinha – e segundo as principais temáticas, visando contribuir para a compreensão da dinâmica da participação comunitária depois do PAC UAP, e avaliar se houve mudança nos níveis de engajamento da população (8).
Levantamos um total de 82 ONGs, coletivos e mídias comunitárias, sendo 32 fundadas por moradores (9). Dentre as 22 fundadas após o início do PAC em 2007, 13 foram criadas por moradores e 9 por agentes externos.
No gráfico abaixo pode-se perceber que, dentre as ONGs fundadas antes de 2007 (ano de início do PAC na Rocinha), predominam as ligadas à educação, capacitação e formação. Nessa categoria encontram-se as creches comunitárias, fundadas por moradores nas décadas de 1970 e 1980 em sua maioria (10). Também são numerosas (11) as ONGs de origem externa à comunidade que atuam na educação de crianças e adolescentes. Verifica-se a presença, nesse período, de ONGs de caráter assistencialista (12). Como exemplo, podemos citar a Associação Creche Viva, que, além de manter um centro de estudos, assessora cinco Creches Comunitárias da Rocinha, com auxílio financeiro, reformas e manutenção. Para as crianças matriculadas nas creches assessoradas pela Associação, oferecem assessoria psicopedagógica e atendimento pediátrico gratuito, entre outros benefícios.
Dentre as iniciativas fundadas após o PAC, verifica-se o predomínio das mídias comunitárias, seguidas das relacionadas à arte e cultura. É importante ressaltar que as mídias comunitárias desempenham frequentemente um papel que vai além da circulação de informações úteis à comunidade e notícias. O Rocinha.ORG, por exemplo, realizou um programa que oferecia ingressos gratuitos para cinema e teatro aos moradores, facilitando o seu acesso a esses equipamentos culturais.
Verifica-se, também, o surgimento de coletivos de cunho político no período que se sucedeu ao PAC. Identificamos quatro grupos de moradores com essa característica. O coletivo Rocinha Resiste, por exemplo, promove debates sobre questões latentes na Rocinha e promoveu mobilizações de resposta a crises emergenciais como as fortes chuvas de fevereiro e abril de 2019, que resultaram em deslizamentos e mortes no bairro, e, recentemente, a pandemia do Covid-19 e a ameaça que ela apresenta aos moradores de favelas.
Participação comunitária e a percepção dos moradores
Desde o PAC Social a participação comunitária e o ativismo político aumentaram na Rocinha, como podemos observar pela seção anterior. Dentre as principais preocupações dos moradores, encontram-se as remoções, o saneamento, e os riscos decorrentes de chuvas quando ocorrem deslizamentos e desabamentos. Outras preocupações são as de ordem sanitária e de saúde, principalmente em relação à tuberculose, surto recente de sarampo, e dengue.
Nosso grupo de pesquisa começou a participar do coletivo Rocinha sem Fronteiras no segundo semestre de 2019. Este coletivo fundado em 2006 é bem ativo e reúne participantes de outros coletivos ou ONGs e lideranças comunitárias importantes, além de moradores bem antigos na Rocinha. Dentre os participantes encontram-se moradores de diferentes faixas etárias e escolaridade. Suas reuniões acontecem uma vez por mês, com uma pauta direcionada para algum assunto do momento, e a reunião é registrada em atas.
Desde setembro de 2019, o coletivo Rocinha Sem Fronteiras tem como pauta de suas reuniões o projeto Comunidade Cidade, anunciado pelo governador do estado em agosto do mesmo ano, porém lançado oficialmente apenas em janeiro de 2020. Acompanhamos e participamos dessas reuniões até fevereiro de 2020. Nesses encontros, ficou evidente a desconfiança com que muitos moradores encaram o projeto, o qual foi caracterizado como “obscuro” (13) devido à falta de acesso a informações concretas sobre ele, especialmente quanto às remoções anunciadas. Até a divulgação do caderno de apresentação em janeiro de 2020, não era possível o acesso ao projeto. Foram realizadas algumas apresentações em algumas localidades na Rocinha, mas não foram amplamente divulgadas e não eram abertas ao debate. Uma moradora expressou a sua preocupação com a seguinte fala: “O que se espera é um rolo compressor”. Ao criticar a falta de participação comunitária no projeto, muitos moradores compararam o Comunidade Cidade ao PAC UAP, afirmando que no PAC “Bem ou mal tinha espaço para discutir” e que “Se no passado, quando tinha participação, já era difícil, imagina agora que não se consegue nem o projeto”.
Este projeto tem previsão de R$ 2 bilhões em investimentos na Rocinha, com cinco eixos de atuação: saneamento, mobilidade, habitação, resíduos sólidos e equipamentos públicos (14). Na área de saneamento, estão previstas a construção de novas adutoras, redes de água, coletores tronco, redes de esgotamento sanitário, drenagem e pavimentação com abertura de 3.836m de vias carroçáveis, além de 2.871m de vias de pedestres e da recuperação de 6.408m de vias existentes.
A parte mais impactante e preocupante do projeto diz respeito à remoção de aproximadamente 7.400 famílias (em torno de 20 a 30.000 pessoas), somando as remoções de moradores de áreas de risco e as realocações decorrentes das obras. As 5000 famílias removidas de áreas de risco não receberão unidades habitacionais, apenas uma indenização da benfeitoria. Proprietários de estabelecimentos comerciais também receberão a indenização da benfeitoria, e inquilinos receberão auxílio habitacional por três meses (15). A falta de informações sobre quais seriam as casas demolidas e sobre o que aconteceria com essas pessoas agravou as preocupações dos moradores. Algumas pessoas que não costumavam frequentar as reuniões do RsF apareceram assustadas para saber mais informações. As principais dúvidas levantadas foram: quais seriam as famílias removidas, para onde seriam realocadas, como seria o processo de indenização e como acontece a indenização quando o morador é inquilino, e não proprietário do imóvel. Desde o final de janeiro de 2020, já se sabe que as 5.000 famílias removidas de áreas de risco não serão realocadas, receberão apenas uma indenização da benfeitoria do imóvel. Ainda não se sabe quais serão essas famílias. Alguns moradores também questionaram se essas famílias iriam pressionar o mercado imobiliário da Rocinha. É importante destacar, também, que a preocupação com a segurança das pessoas vivendo em áreas de risco foi levantada nas reuniões. O medo de que ocorram novas tragédias, como as relativas às chuvas de fevereiro e abril de 2019, ficou evidente nos debates.
Igualmente centro das preocupações dos moradores é a previsão de construção de 18 edifícios de habitação de interesse social – HIS de até doze pavimentos, para realocar o segundo grupo, que equivale a 2400 famílias. Esses edifícios serão construídos em terrenos em diferentes localidades na Rocinha e nos seus limites com São Conrado e Gávea. Em 10 deles, haverá também comércio no térreo, somando um total de 341 unidades comerciais. O Residencial Emoções, localizado no limite entre a Rocinha e São Conrado, será o maior conjunto, com 344 unidades habitacionais, 13 unidades de loja e 95 vagas de estacionamento. Levantou-se a questão de que esses edifícios poderiam adensar a Rocinha de uma forma que ela não suporta. Também ficou evidente o receio dos altos custos de condomínio e manutenção nos novos prédios, considerando que estes exigiriam elevadores. Um dos participantes expressou sua preocupação com uma possível “remoção branca”, pois para a viabilização desses edifícios, seria necessário o aumento do gabarito permitido na Rocinha, o que contribuiria para uma especulação imobiliária e um processo de gentrificação. Esse receio fica evidente nas seguintes falas de moradores: “Vão tirar as pessoas que têm menos recursos e deixar as que têm mais” e “Daqui a pouco empresários compram dez barracos e começam a construir prédios”.
Por outro lado, ficou claro nas nossas entrevistas que os moradores querem melhorias para o bairro, principalmente saneamento. A falta de saneamento básico foi citada como o principal problema da Rocinha hoje, e foram feitas críticas a projetos anteriores que não realizaram estas obras. As críticas feitas ao Comunidade Cidade demonstram que os moradores não concordam com as propostas. Como apontou um morador: “O que queremos não é que não tenha obras, e sim que estas estejam de acordo com o que a comunidade precisa”. Outra questão levantada foi: como fazer as melhorias necessárias com o mínimo de impacto. Além disso, alguns moradores veem o projeto com desconfiança por não acreditarem mais em promessas de gestores públicos. E por fim, questionou-se as intenções do Governo do Estado com esse projeto: “Parece que o governo quer usar a Rocinha como vitrine enquanto faz barbaridades em outras favelas”.
Frente a todas essas questões, muitos moradores mostraram um anseio por ações concretas, como por exemplo: elaborar uma comissão para buscar na Lei de Transparência o projeto; retomar comissões de moradores; criar uma cartilha para divulgação do projeto aos moradores; apresentar contraproposta ao plano; e, reivindicar participação no projeto. A falta de acesso às informações sobre o projeto foram bastante discutidas, e a queixa sobre a participação de mais moradores nas reuniões do RsF, apesar de seu extenso trabalho de divulgação. Uma moradora, ao falar sobre a dificuldade de articulação entre os moradores, afirmou que: “A Rocinha tem várias bolhas e as bolhas não se misturam”.
A partir de uma análise da atuação do coletivo RsF, concluímos que a atuação do coletivo tem um caráter político, pois visa promover debates sobre os problemas da Rocinha, procurando incluir mais pessoas nas discussões, questionando projetos para a Rocinha e discutindo ações frente às situações. As reuniões são abertas, e membros de outros coletivos da Rocinha participam regularmente, demonstrando uma articulação entre esses grupos.
Considerações finais
Duas conclusões preliminares norteiam este trabalho. A primeira é de que, apesar de o PAC Social ter tido um formato institucionalizado e engessado da participação comunitária, este mecanismo incentivou um aumento do ativismo político e incentivou o aparecimento de novas ONGs e coletivos com uma ação política mais efetiva. E a segunda é que alguns temas têm maior poder de mobilização e de ação política na comunidade. O medo das remoções é talvez o maior catalisador de ações. E as questões de risco e saneamento são também igualmente importantes. Sendo assim, a realidade do cotidiano de risco e vulnerabilidade dos moradores alimenta a participação, e na percepção geral e que pauta os anseios dos moradores é a segurança de ter seu lugar de moradia preservado e condições de habitabilidade e infraestrutura adequadas.
Fica evidente também que as propostas constantes no Projeto Comunidade Cidade ameaçam o modo tradicional de vida e de moradia na favela, propondo tipologias de prédios típicos do mercado imobiliário e uma forma de habitar características de classes médias altas. Além disso, a proposta arquitetônica promove uma barreira visual de forma a esconder parte da favela. Assim, a favela reage e resiste cada vez mais, promovendo um tipo de insurgência, que já faz parte de sua história. Tratada como um território marginalizado, a Rocinha resiste ao longo de sua trajetória com um histórico de remoções, realocações e estratégias de pacificação que pretendem interferir no seu modo de viver e morar. As constantes ameaças de remoções, e os constantes riscos a que estão expostos a população, tais como violência, doenças, falta de saneamento, habitabilidade e segurança das moradias, pautam a participação comunitária na Rocinha. Podemos observar por meio do acompanhamento do coletivo Rocinha sem Fronteiras que a realidade das ações governamentais não se coaduna com os anseios e a percepção da população. Mesmo em um pequeno coletivo como o RsF, os participantes se queixam de que falta maior participação comunitária.
No entanto, é interessante também observar, que em tempos de normalidade democrática, com conselhos e formatos de participação comunitária em funcionamento, mesmo com várias limitações, a comunidade sente-se com voz e pode interferir nos projetos urbanos e alcançar seus anseios. A mudança do projeto que previa a construção do teleférico na Rocinha é um destes exemplos de resistência e ação comunitária efetiva.
Desta forma, mesmo com as limitações decorrentes do formato de participação proposto pelo PAC Social, verifica-se um aumento da confiança nas instituições e um início de urbanismo participativo, no qual a tomada de decisões não se dá de cima para baixo, e onde inicia-se o diálogo necessário e saudável entre técnicos, gestores públicos e moradores.
notas
1
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico. Brasil, 2010 <https://censo2010.ibge.gov.br/>.
2
IPP. Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. Portal Geo <https://bit.ly/3fYYZoG>.
3
A plataforma Memória Rocinha, desenvolvida pelo Museu Sankofa e pelo Instituto Moreira Salles, apresenta, entre outros materiais, uma linha do tempo contando com os principais acontecimentos e períodos de destaque da história da Rocinha. Memória Rocinha <https://memoriarocinha.com.br/linha-do-tempo/>.
4
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Ficha do Empreendimento PAC Rocinha. Brasília, Secretaria Nacional de Habitação, 5 fev. 2019.
5
OLIVEIRA, Bruno C. de S. Políticas públicas e participação social no PAC das favelas. In RODRIGUES, Rute Imanishi. Vida Social e Política nas favelas: pesquisas de campo no Complexo do Alemão. Rio de Janeiro, Ipea, 2016.
6
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Instruções Específicas para Desenvolvimento de Trabalho Social em Intervenções de Urbanização de Assentamentos Precários. Brasília, Secretaria Nacional de Habitação, 2007.
7
CUNHA, Juliana Blasi. “O projeto já chegou até nós pronto e não podemos mudar muita coisa!”: a metodologia participativa do PAC e a atuação das lideranças comunitárias no projeto de (re)urbanização de uma favela do Rio de Janeiro. Horizonte Antropologia, Porto Alegre, ano 24, n. 50, jan./abr. 2018, p. 117-144.
8
Para uma melhor compreensão do papel dos movimentos sociais e coletivos em geral ver: GOHN, M. da Gloria. Sociedade Civil no Brasil: movimentos sociais e ONGs. Meta Avaliação, Rio de Janeiro, v. 5, n. 14, mai./ ago. 2013, p. 238-253; HOLLANDA, Heloisa Buarque. Coletivos <http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/coletivos/>; MAZETTI, Henrique. Resistências criativas: os coletivos artísticos e ativistas no Brasil. In Lugar Comum, n. 25-26, Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, mai./dez. 2008, p. 105-120.
9
Muitas das ONGs que levantamos podem ser encontradas no Mapa Cultural da Rocinha, criado pelo jornal Fala Roça <https://bit.ly/3lwzImK>.
10
Em nosso levantamento foram contabilizadas seis creches comunitárias.
11
Foram levantadas dez ONGs fundadas por não-moradores da Rocinha que atuam na área de educação, atendendo a crianças e adolescentes.
12
Consideramos como assistencialistas as ONGs cuja atuação não apresenta como objetivo a participação e, de alguma maneira, o aumento da autonomia da população atendida, que é colocada em uma posição passiva em relação ao trabalho da ONG. Frequentemente, suas ações constituem em doações monetárias e oferta de serviços sociais básicos.
13
Termo utilizado por alguns participantes das reuniões para descrever o projeto.
14
GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Caderno de Apresentação do Programa Comunidade Cidade – Projeto Rocinha, 30 jan. 2020.
15
Idem, ibidem.
sobre os autores
Rachel Coutinho Marques da Silva é arquiteta (UFRJ, 1977), mestre (1984) e Ph.D. (1988) em Planejamento Urbano pela Cornell University. Pós-Doutorado pela London School of Economics (2008) e Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015). Professora associada do PPGArq DAU PUC Rio e professora titular aposentada da UFRJ. Publicou A cidade pelo Avesso: desafios do urbanismo contemporâneo (Viana Mosley/Prourb, 2006).
Tatiana Medeiros Veloso, graduanda do curso de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e bolsista Pibic pelo CNPq (2018-presente).