A obra de Vilanova Artigas é muito debatida no âmbito da historiografia da arquitetura brasileira. Por meio de teses, dissertações e artigos suas complexidades são exploradas, revelando miríades. Estudos sobre a arquitetura residencial são recorrentes, com destaque para as casas projetadas e/ou construídas. Entretanto, é possível ampliar o interesse por sua obra com a abordagem de um tema pouco explorado na obra de Artigas: os edifícios de apartamento. Trata-se de um programa a ser problematizado, trabalhando entre recortes e lacunas da historiografia para pensar sobre os valores da práxis projetual e o discurso do arquiteto, a fim de contribuir com novos entendimentos sobre sua obra (1).
Entende-se que os edifícios de apartamento correspondem a uma fração pequena de projetos numa produção da ordem de 651 projetos, oficialmente registrada. Entretanto, é justamente esta possibilidade de investigação que interessa trabalhar. Trata-se da abordagem de um conjunto formado por três edifícios que foram construídos e ainda se encontram em pleno uso: Edifício Louveira (1946), Jeanne (1953), João Moura (1958). E este conjunto se somam sete edifícios de apartamentos que foram projetados, mas não foram construídos.
Verticalização e o morar moderno
No Brasil, o processo de verticalização acompanha o ritmo de desenvolvimento urbano das cidades. Estudos mostram o edifício vertical como um fenômeno urbano revelador das transformações sociais e técnicas. O edifício vertical também pode ser tomado como um fato capaz de ilustrar o processo de transformação dos modos de vida nas cidades. Para tanto, contribuem a legislação urbana e o uso do elevador como elemento definidor do edifício. Somam-se a ainda as transformações das técnicas construtivas, com o concreto armado tomado como sistema construtivo predominante adotado na produção de edifícios verticais no Brasil.
No caso de São Paulo, os primeiros edifícios verticais surgem pontualmente na cidade no fim do século 19, construídos como investimentos privados por famílias da elite cafeeira, como forma de obtenção de lucros através de aluguéis. Até os anos 1920, estes edifícios que ficavam na região central, eram destinados a atividades terciárias, com linguagem arquitetônica eclética, considerados como um modelo de investimento que permitia a diversificação de capital das classes mais abastadas. O fenômeno da verticalização em massa, somente ocorreria a partir de 1930. As alterações de gabarito das edificações de acordo com a largura das vias, o uso do elevador elétrico e a produção nacional do concreto armado deram o impulso para o surgimento dos primeiros arranha-céus em São Paulo. Os edifícios Sampaio Moreira (1924: 14 andares) e o Martinelli (1929: 30 andares) rompem os limites do centro e constroem novos ares de modernidade para a cidade.
A partir dos anos 1940 haverá um grande volume de construção de edifícios e adensamento urbano de São Paulo. Com a incorporação maciça dos valores do american way of life, o morar em apartamento se torna mais atraente, mais moderno, mais urbano e atualizado do que a casa unifamiliar, suplantando a imagem negativa vinculada aos cortiços. Há uma transformação dos padrões de ocupação urbana, articulada com a transformação das tecnologias construtivas para edificar em maiores alturas, num momento histórico de grandes transformações dos padrões culturais, viabilizando mais construções de uma nova tipologia: o edifício de apartamentos.
O edifício de apartamento é um novo padrão de habitação de imóvel coletivo no século 20, que se contrapõe ao cortiço. Ao mesmo tempo, os apartamentos preservam a autonomia das unidades residenciais isoladas, possibilitando trocas e comercialização de tais unidades. O apartamento é uma solução de programa habitacional adaptada às demandas de mercado imobiliário e ajustado à comercialização das unidades autônomas dotadas de uma infraestrutura própria, sem comprometer o funcionamento de todo edifício. Somente nos anos 1950, o apartamento se consolida como um tipo de imóvel, quando passa a representar o morar moderno, adequado para diferentes camadas sociais.
Raul Just Lores recupera a dinâmica econômica de consolidação do mercado imobiliário, afirmando que alguns dos edifícios marcantes de São Paulo surgiram justamente graças à atuação de um mercado imobiliário, com financiamento da classe média (2). Ele destaca a articulação entre profissionais de arquitetura, empresas e construtoras contratantes que miravam um público consumidor convencido que desejava comprar arquitetura moderna, que é apresentada pelos agentes imobiliários, como a linguagem que representa a euforia do pós-guerra. Por meio de apartamentos, a economia de São Paulo passa a seguir os padrões habitacionais de cidades como Nova York, Paris ou Tóquio, incluindo desde unidades com áreas entre 30 e 55m² até apartamentos maiores, com dependências de empregados etc. Copan, Conjunto Nacional, Bretagne, Paquita, Prudência e Louveira são exemplares destas transformações ao longo dos anos 1940 e 1950. É neste contexto que Artigas projetará os edifícios de apartamentos que interessam explorar.
Artigas e o edifício de apartamento
O edifício de apartamento é um programa de exceção dentro da extensa produção de Artigas, que é sempre celebrado pelas obras de caráter público, mas também pelas casas, em que são preponderantes o uso do concreto aparente e da verdade estrutural na construção da forma. Entretanto, outro conjunto de obras dentro da sua produção precisa ser problematizado a fim de revelar outras práticas de sua atuação profissional.
Nosso objetivo é justamente explorar este conjunto edifícios de apartamento que Artigas projetou, especulou ou pretendeu construir. Além da pesquisa historiográfica rotineira lastreada em Mindlim, Bruand, Segawa, Thomas e Ficher, para efeitos deste artigo foram realizadas buscas nos materiais disponíveis ao público nos acervos das bibliotecas universitárias da Universidade de São Paulo – USP, Mackenzie e Universidade de Brasília – UnB. Além de buscas realizadas em bases digitais, a pesquisa também se estendeu aos acervos particulares como o da professora Christina M. B. Jucá. Os resultados destas pesquisas mostraram que apesar da existência de material acerca do tema, em especial a documentação de projetos, não foram encontradas pesquisas que tratassem especificamente sobre esta produção do edifício de apartamentos dentro da obra do arquiteto, além do material produzido em 2015 por meio da dissertação Edifício Louveira (1946-1950). A questão do edifício de apartamento na obra de Vilanova Artigas.
A obra de Vilanova Artigas possui 651 projetos listados, considerando o acervo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP e o memorial elaborado pelo escritório do arquiteto em 1981, na qual são classificados como edifícios de apartamento um total de catorze projetos. Estes projetos correspondem a 2,15% da produção de Artigas. Se a este conjunto de edifícios de apartamento forem somados os seis Cecaps, a presença deste programa passa a representar 2,24% de sua produção total. Tais porcentagens evidenciam o baixo grau de relevância dos edifícios de apartamentos no conjunto das obras produzidas por Artigas, reiterando o interesse pelo tema e o seu lugar nas tramas historiográficas consolidadas. Por esta razão justifica-se a oportunidade de especular situações de projeto de exceção se mostram oportunas para problematizar as regras e as soluções de Vilanova Artigas para edifícios de apartamento.
Dentre os catorze registros oficiais classificados como edifício de apartamento foi possível ter acesso somente ao material referente a doze deles. Os projetos referenciados como pertencentes à Caetano de Paula (1941) e Agenor Lino de Matos (sem data) não foram analisados, pois apesar de estarem indexados apenas nos arquivos do escritório de Artigas, não possuem material gráfico que comprovem que se tratam mesmo de edifícios de apartamento. Outras duas subtrações se impõem neste conjunto de interesse pois, após a verificação da documentação, o Edifício Amaralina construído em 1969 no bairro dos Jardins foi desconsiderado por se tratar de obra do arquiteto Milton Schubisky, classificada equivocadamente na listagem da FAU USP como obra de Artigas. Já o projeto para Hirsch Schor e Waldemar Rays que está classificado como“edifício de apartamento é, de fato, uma casa localizada na Ilha Porchat, em Santos.
Após a análise da documentação indexada dos projetos é possível, portanto, totalizar um conjunto formado por dez projetos de edifícios de apartamentos produzidos por Artigas em sua trajetória profissional. Deste conjunto, destaca-se que quatro edifícios são obras construídas e que ainda estão em uso. Portanto, os demais permaneceram como propostas não realizadas. Artigas consolidou a construção de três, dentre estes quatro edifícios, justamente na cidade base de sua atuação: São Paulo. À exceção do edifico construído em 1963 em São Vicente, no litoral paulista, que está catalogado com o próprio arquiteto na qualidade de proprietário.
Doravante, interessa abordar este conjunto de dez edifícios, a fim de especular correlações formais, espaciais, construtivas, implantação, materialidade, aspectos funcionais etc., entre as propostas concebidas e os edifícios construídos. Neste processo, os três edifícios de apartamentos que foram construídos — Edifício Louveira (1946), Jeanne (1953), João Moura (1958) — serão potencializados para destacar as especificidades dos demais. Mais uma vez, as tensões entre exceção e regra se configuram como metáfora útil para ampliar a compreensão sobre as complexidades de Vilanova Artigas e suas arquiteturas.
Artigas e seus 10 edifícios de apartamentos
Para empreender a abordagem do conjunto de dez edifícios de apartamentos, construídos ou não por Artigas, cada um deles será tomado individualmente, de acordo com uma organização cronológica, seguindo o rol abaixo:
1941 – IAPC
1946 – Edifício José Mestres Alijostes
1950 – Edifício Louveira
1953 – Edifício Jeanne
1958 – Edifício João Moura
1962 – Edifício Europa
1963 – Edifício J.B.V. Artigas
1970 – Edifício Califórnia
1976 – Edifício Luís Antônio Naves Junqueira
s/d – Edifício William Maluf
IAPC, 1946
O edifício para o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários – IAPC foi projetado em 1946, no bairro de Santa Cecília, no cruzamento da rua São Vicente de Paula com a Alameda Barros. No acervo da FAU USP foram encontradas seis pranchas de desenhos em nanquim, sobre papel vegetal compostos por uma perspectiva, plantas dos pavimentos tipo, plantas dos apartamentos ampliadas, estudo de insolação, locação, quatro elevações e um corte. Este edifício é configurado por um volume articulado de duas alas em “L”, elevado sobre pilotis. Destaca-se que a conexão entre os dois corpos prismáticos é feita por um corredor aberto em todos os pavimentos, muito semelhante ao arranjo que foi aprimorado na fachada de serviço do edifício Louveira. O edifício possui sete pavimentos, e abrigando oito apartamentos por andar, totalizando 56 unidades. Tratam-se de unidades diferenciadas, sendo cinco unidades com dois quartos, uma unidade possui três quartos e as demais apresentam apenas um dormitório.
Esta variação das unidades habitacionais possibilita destacar a potencial variedade de perfis familiares que seriam atendidos pelo edifício. Neste projeto, Artigas explora a linguagem e os elementos que característicos da arquitetura moderna, tais como a estrutura independente, os planos de vidro, os pilares de seção cilíndrica e as empenas cegas. Seja pela relação formal ou material, este projeto se assemelha a outras obras do arquiteto e ao próprio Edifício Louveira (1946-1951).
Edifício José Mestres Alijostes, 1946
A data de agosto de 1946 registrada do projeto para o edifício para José Mestres Alijostes —localizado na avenida Brigadeiro Luiz Antônio n. 478, na Bela Vista— corresponde a um momento importante na vida de Artigas, pois tal encomenda ocorre justamente um mês antes dantes dele embarcar para os Estados Unidos, onde permaneceria um ano usufruindo da bolsa de estudos da Fundação Guggenheim. A documentação referente ao projeto consta no acervo particular da professora Christina Jucá (FAU UnB). Trata-se de um conjunto singelo formado pelos diapositivos referentes a dois desenhos de perspectiva de espaços internos de ambientes domésticos. Nota-se que estes desenhos não possuem carimbo e nenhuma informação incontestável de que se tratam de apartamentos. Os desenhos ilustram ambientes de estar e convívio próprios do morar moderno, com surpreendente vazio decorrente do uso de mezanino e pé-direito duplo, articulados por uma escada helicoidal de forte carácter plástico. Vale destacar que o mesmo cliente encomendou outro projeto para o mesmo lote, em 1949. Mas tratava-se de posto de combustíveis! Entre uma proposta e outra resta assinalar que nada disso foi construído pois em visitas realizadas no endereço constata-se que o lote é ocupado por um edifício de autoria desconhecida.
Edifício Louveira, 1946-1950
A importância do Edifício Louveira é inquestionável na trajetória de Artigas. O edifício está inserido no processo de verticalização de São Paulo e foi uma encomenda dos herdeiros do jornal O Estado de S. Paulo. Situado junto da Praça Vilaboim, em Higienópolis, ele se destaca pela implantação inovadora de duas torres paralelas abertas para a praça. A solução apresentada promove uma articulação visual e espacial do terreno com a praça. Tal ocupação só era viável em zonas residenciais lindeiras ao centro em que a própria legislação exigia recuos mínimos do edifício em relação aos limites do lote, além de exigir o tratamento de todas as fachadas da edificação. Artigas possuía outras experiências de romper a ocupação tradicional do lote, como a sua primeira casa (1944), em franca exposição para a cidade. Para assegurar uma composição com empenas cegas, Artigas usa o estratagema de apresentar uma versão com janelas em todas as fachadas, contornando a legislação.
As soluções plásticas adotadas valorizam as cores e os materiais. Artigas usa azul, terra de Siena e amarelo nas fachadas, cujos tons denotam a influência do pintor Francisco Rebolo, que é autor do painel na entrada do bloco A, retratando uma paisagem rural do interior paulista, fazendo jus ao nome do edifício. O edifício tira proveito da declividade de 2,5m para implantar os dois blocos laminares paralelos e um espaço térreo francamente público, tratado com jardins e uma área para garagens. Esta declividade se configura numa oportunidade projetual importante para Artigas desenvolver o desenho de uma rampa que articula os edifícios ao espaço público, fato que será recorrente em sua trajetória.
Apesar de o Edifício Louveira utilizar pilotis e estruturas aparentes, internamente, a maneira de morar permaneceria bastante convencional. Os apartamentos do Edifício Louveira foram comercializados como “apartamentos de luxo”, com 160m2, dotado de “três amplos dormitórios” e “três salas conjugadas”. Além das “dependências completas para criados” foram ressaltados os armários embutidos e as facilidades técnicas do aquecimento central e garagem, tratando-se de uma “Arquitetura ultra moderna, com frente toda envidraçada e muita luz”. Artigas explorou a expressão plástica dos materiais construtivos, valorizou as empenas cegas e fez das esquadrias um elemento marcante, sendo reproduzidas em outros edifícios de apartamentos projetados por Artigas. Os desenhos encontrados referente aos projetos para o IAPC (1946) e Edifício Jeanne (1953) confirmam tais semelhanças.
Edifício Jeanne, 1951-1953
O próximo edifício de apartamentos projetado e construído por Artigas é o atual edifício Jeanne. Trata-se de encomenda feita por Ary Fachada, em 1951, para um edifício de uso misto, com unidades habitacionais, lojas e sala comercial. Vale destacar que se trata de outra exceção neste conjunto de edifícios de apartamento, pois esta estratégia muito convencional de ocupação dos lotes urbanos nos anos 1950, somente seria retomada por ele no projeto do edifício California, em 1970. O edifício de nove pavimentos se encontra num lote de esquina, no cruzamento das ruas Conselheiro Brotero e Francisco Estácio Fortes, em Santa Cecília. O edifício construído dificilmente seria atribuído a Artigas, pois sua expressão formal não representa a clareza estrutural, nem os atributos plásticos ou as qualidades formais da obra do arquiteto.
Diferentemente do discurso sobre as relações de continuidade entre o edifício e a cidade, neste projeto prevalece a preocupação em operar o código de obras para garantir maior rentabilidade do empreendimento. Prova disso é o pavimento escalonado que arremata a volumetria e garante mais um pavimento a ser comercializado. Além de uma sala comercial e um apartamento localizados neste andar escalonado, o edifício possui treze unidades de apartamentos de um quarto. O pavimento-tipo possui dois apartamentos por andar, dotados de sala, dormitório, banheiro, cozinha e área de serviço. Já a planta do apartamento e da sala comercial do sétimo andar, tem configurações singulares, porém sempre mantendo as áreas molhadas alinhadas verticalmente com os outros pavimentos. O pavimento térreo e o andar intermediário deste edifício são destinados ao uso de duas unidades comerciais. Importante destacar que tais usos mistos implicam em desenhos para unidades residenciais mais compactas, o que também se mostra muito adequado com a dinâmica imobiliária de então. Para otimizar os investimentos na infraestrutura, todas as unidades são acessadas por um único hall, sem reforçar a convencional separação social/serviço.
Edifício João Moura, 1958
O edifício de apartamentos da rua João Moura n. 942, em Pinheiros, é o terceiro edifício construído de apartamentos na obra de Artigas. Destaca-se que o arquiteto contou com a contribuição do engenheiro Duílio Morone, que havia sido seu sócio entre 1937-1944, cuja empresa construtora foi encarregada pela construção. É notável a implantação dos volumes no terreno para tirar proveito da topografia. O edifício foi implantado em lote retangular, com um desnível de 9m entre o fundo e a frente, definindo uma situação em que Artigas trata as curvas de nível e encaixa o volume semienterrado da garagem, utilizando sua cobertura para abrigar as áreas de convívio. O corpo principal com oito andares, é disposto longitudinalmente ao terreno e deslocado para a direita do lote, demarcando a entrada principal. Os apartamentos possuem dois quartos e seu acesso se dá por um corredor lateral, ou seja, a mesma solução adotada nos edifícios do IAPC.
Seu registro aparece no segundo volume do memorial do arquiteto de 1981. Neste documento, a propriedade é atribuída a Dulce Ferreira de Souza Brasil. A documentação encontrada é formada por quatorze cópias heliográficas de tamanhos variáveis e revelam a existência de duas propostas semelhantes para o edifício. Em ambas as propostas a volumetria, o número de pavimentos, o layout dos apartamentos e a implantação são parecidos, com ligeiras alterações na composição volumétrica, redefinidas a partir do deslocamento de uma das caixas de circulação vertical para o exterior do volume. Outro aspecto relevante é o tratamento dado a fenestração das fachadas, alterando a solução de aberturas horizontais na fachada lindeira pelo uso de empena cega, ou seja, retomando a solução expressiva da empena cega usada no Louveira.
Edifício Europa, 1962
Embora apresente uma documentação escassa formada por apenas cinco pranchas heliográficas para um edifício de apartamentos na avenida 9 de julho, chama a atenção a denominação referente à pasta em que está catalogado. Em letras de caixa alta a etiqueta informa: “EDIFÍCIO RESIDÊNCIAL EUROPA, PARA OS SRS. J.B.V.ARTIGAS, R.LEVI, I.C.MELLO, A.S.PAESANI E E.K. DE MELLO...”. À primeira vista esta sequência de arquitetos faz pensar que se trata de projeto em coautoria. Entretanto, ao analisar a documentação constata-se que todos estes arquitetos são na verdade proprietários, ainda que apenas o nome de Artigas figure como autor da proposta.
Outra surpresa decorrente da leitura das plantas é encontrar um programa destinado a ocupar apenas um apartamento por andar com áreas generosa para acomodar três suítes, amplas salas, além da cozinha e dependências de serviços. Para a composição de um pavimento tipo retangular o arquiteto lança os perfis estruturais para o exterior da planta, garantindo uma modulação constante de fachada, que poderia ser bastante oportuna para o uso de elementos caixilharia igualmente serializados. A solução de fachada não diferencia as funções internas do apartamento, garantindo unidade volumétrica ao mesmo tempo em que as funções de serviço, os espaços sociais e os ambientes íntimos não seriam percebidos a partir do exterior.
Edifício J.B.V. Artigas, 1963
Em abril de 1963, ao desenvolver o projeto para o edifício de apartamentos na cidade de São Vicente, no litoral paulista, Artigas assume o duplo papel de arquiteto e cliente. O projeto está localizado em um lote de formato triangular, na avenida do Flamengo, próximo a praia grande. Foram encontradas apenas duas folhas referentes ao projeto no acervo da FAU USP, do qual é possível assinalar que as folhas apresentam os desenhos de um edifício de dois andares sobre pilotis. O bloco abriga quatro kitchenettes —duas por andar— e o acesso aos apartamentos é feito por uma escada central que separa as unidades. A pesquisa constatou que foi encontrado no local um edifício construído com características semelhantes ao projeto sendo, entretanto, necessário averiguar outras fontes para ratificar ou não, tanto a autoria como a propriedade. Cabe apresentar uma indagação sobre a finalidade da construção de quatro kitchenettes em um lote próximo a praia, já que o arquiteto é apresentado como proprietário. Seria esta construção uma fonte de renda através da venda ou locação das unidades, ou seria uma segunda residência para a própria família?
Edifício Califórnia, 1970
Depois da oportunidade de projetar uma residência com grande potencial estrutural e formal, experimentando a associação de estrutura metálica com concreto para o amigo e militante anti-salazarista Manoel Antônio Mendes André, em 1966, Artigas receberá dele outra encomenda. Em maio de 1970 ele passa a projetar o edifício residencial Califórnia. Trata-se de um edifício para o número 171, da Rua Alves Guimarães, no Jardim América. A proximidade entre cliente e arquiteto comprovada por estas encomendas atesta a possibilidade de circulação social do arquiteto em meio aos intelectuais ou profissionais com alinhamento ideológico com suas próprias posturas.
A casa projetada e executada para Mendes André representa a competência de Artigas no domínio da expressão estrutural, bem como na construção da espacialidade de um morar moderno fluido em que a rampa desempenha um protagonismo no espaço doméstico, articulando os níveis da mesma maneira que ele projetaria espaços públicos. No caso do edifício California, o programa arquitetônico aparenta ter apenas a finalidade comercial, sem ser tomado como uma outra boa oportunidade de especulação projetual. No acervo da FAU USP há pouca informação sobre o projeto, contendo apenas uma planta baixa do pavimento tipo, onde se apresentava a circulação vertical —elevador e escada— ligada a um único apartamento com dimensões e distribuição semelhantes ao encontrado na planta do Edifício Jeanne (1953), o que confirmaria a hipótese de uso residencial do edifício.
Edifício Luís Antônio Naves Junqueira, 1976
Embora seja um edifício constante na listagem oficial do acervo da biblioteca da FAU USP e do escritório do próprio arquiteto, o material trabalhado foi obtido no arquivo da professora Christina Jucá. Trata-se de um conjunto formado por copias xerografadas de cinco desenhos com o logotipo do escritório, datadas de fevereiro de 1976. Os desenhos contêm plantas dos pavimentos térreo, primeiro andar, pavimento-tipo e elevação. Todos os desenhos são feitos a mão em escala 1:200, denotando o caráter especulativo do estágio da proposta. O edifício apresentado possui doze pavimentos, num lote semicircular localizado no Morumbi.
A proposta recupera um conjunto de soluções próprias do arquiteto, tais como o uso de rampa para o pedestre acessar o interior do edifício, uma solução de fachada ritmada por linhas horizontais que alternam a marcação de vigas e amplas janelas, lembrando a solução do Louveira. Contudo a unidade habitacional se diferencia pela generosa metragem quadrada e por um programa de necessidades bastante complexo, que inclui sala com quatro ambientes, quatro suítes, copa/cozinha e amplas dependências de serviços, incluindo dois quartos de empregada. Destaca-se a competente solução para a varanda e um solarium, qualificando os espaços sociais do apartamento.
Edifício William Maluf, s/d
O edifício projetado para o Sr. William Maluf não possui registro da data para sua elaboração. Os desenhos catalogados no acervo da FAU USP permitem inferir que se trata de uma proposta desenvolvida após 1946, devido a inscrição nas pranchas do nome de Carlos Cascaldi, que se tornara integrante do escritório de Artigas neste ano. Trata-se de um edifício residencial localizado em Higienópolis, na rua Maranhão, onde também se situa a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Foram encontradas duas propostas para os pavimentos residenciais. A primeira solução é um edifício com doze pavimentos, com um apartamento por andar, com quatro quartos e aproximadamente 450m2. Trata-se de uma solução análoga ao edifício projetado em 1976 para Luis Antônio Naves Junqueira.
A segunda solução, seria a de um edifício com nove pavimentos, possuindo dois apartamentos por andar, com três quartos, com a mesma área construída em cada pavimento. A proposta contendo um apartamento por andar se destaca pela distribuição das funções em setores para os ambientes sociais, espaços íntimos e dependências de serviço. A extensão maior que 14m para a sala de estar e as quatro suítes sinalizam o perfil dos moradores. Nota-se ainda a presença da setorização e especialização dos cômodos, tais como um jardim de inverno, um escritório, sala de jantar e sala de almoço, que será justamente o ambiente de conexão com as dependências de serviço, que também possuem um acesso direto com a área intima dos quartos, a fim de organizar os fluxos de empregados e moradores.
Artigas nas alturas
Na trajetória de Vilanova Artigas o tema do edifício de apartamentos se mantém ainda muito pouco explorado. Tal fato corrobora esta abordagem e desdobramentos futuros. Este artigo possibilita suplantar as lacunas historiográficas a fim de revelar complexidades do tema na obra de Artigas. Um dos entraves para especular mais sistematicamente as questões dos edifícios de apartamento são: a falta de documentação indexada, as inconsistências entre a indexação da FAU USP e o Memorial do próprio arquiteto de 1981, bem como informações desencontradas, ou mesmo a falta de material gráfico referentes aos projetos. Diferentemente do ocorre com as casas de Artigas, existem poucos registros sobre os projetos de apartamentos, justificando, em parte, o pouco interesse nesta parcela de obras que não é numericamente expressiva em sua trajetória.
Ao analisar este conjunto de dez edifícios de apartamentos é possível apontar aspectos que por ventura foram abordados para um ou outros edifícios separadamente, mas que não puderam ser cotejados simultaneamente. Nas abordagens sobre a obra de Artigas, o apartamento é tema de exceção, que é apresentado considerando apenas o edifício Louveira, preterindo todos os demais. Por ser o único edifício de apartamentos que aparece para tais especulações, fica patente que o edifício Louveira se torna a regra para analisar os domínios de Artigas sobre o tema, tornando os demais edifícios de apartamentos como exceção.
Os edifícios de apartamento são a exceção na obra de Artigas e o edifício Louveira é a regra para analisar os edifícios de apartamento na obra de Artigas. Neste jogo entre a regra e a exceção, vale destacar o caráter pragmático de Vilanova Artigas com relação aos edifícios de apartamentos. O conjunto destes edifícios possibilita deslocar a imagem do arquiteto que opera com ideais e pressupostos ideológicos fechados, para repensar uma atuação profissional atenta às práticas do ofício e à dinâmica de funcionamento econômico de um escritório de arquitetura.
O Louveira é o caso mais emblemático, mas o seu contexto de encomenda e produção nem sempre é equivalente aos demais edifícios projetados ou construídos. Neste conjunto de dez edifícios, Artigas aparece como autor e cliente, ao mesmo tempo em que se detecta a rede social de influência e trânsito do arquiteto, possibilitando encomendas e novos projetos. Devido ao interesse social, os edifícios para a Cecap conformam um universo de contraponto ao Edifício Louveira. Tal contraponto se deve, em parte, pela falta de reconhecimento dos demais edifícios de apartamentos que exploram ao máximo os potenciais construtivos que a legislação autoriza, desenhando projetos de apartamentos absolutamente distantes do padrão de interesse social, mais condizentes com suas posturas ideológicas, afinal, tratam-se de apartamentos, digamos, “burgueses”.
Ao longo dos estudos dos dez edifícios de apartamentos foram constatadas questões recorrentes que podem auxiliar a construção de um parâmetro interno de compreensão de Artigas como arquiteto de edifícios de apartamento. Assim, como as casas de Artigas possuem um léxico, um apresso e uma valorização já consagradas pela historiografia, é preciso reconhecer esta outra perspectiva de sua produção, evidenciando uma complexidade que não deve se restringir a um pequeno conjunto de obras. Para abordar os edifícios de apartamentos de Artigas, um conjunto de questões que incidem sobre este problema de projeto, tais como: 1. a relação com o lote; 2. o enfrentamento da topografia; 3. o tratamento da legislação; 4. a soluções para a caixilharia; 5. o tratamento das superfícies parietais; 6. a rampa como dispositivo de articulação edifício/cidade; 7. a materialidade; 8. as obras de arte integradas; 9. a relação arquiteto/ cliente e 10. a relação estrutura e forma.
A consolidação do edifício de apartamentos na cidade de São Paulo tem seu apogeu entre os anos 1940 e 1960, que é justamente o momento em que os quatro edifícios de apartamentos construídos por Artigas são realizados. Ao mesmo tempo em que projeta apartamentos compactos, Artigas também desenvolve edifícios com apartamentos de grande dimensão, atendendo as diversas necessidades do mercado imobiliário. Ou seja, Artigas está a par e integrado à dinâmica econômica da construção civil. Portanto, ele se mostra um profissional bastante pragmático, fazendo dos edifícios de apartamento um potencial front de atuação projetual, ao mesmo tempo em que mantém o rigor de seus procedimentos projetuais, independente do orçamento ou da escala do programa. Entende-se que os edifícios de apartamento são um tema oportuno na obra de Artigas, que dá bases para correlacionar os valores da práxis projetual e seu discurso. Os projetos para os edifícios de apartamento de Artigas ratificam sua extraordinária competência e atuação profissional, ao mesmo tempo em que relativizam a imagem atávica de um arquiteto idealista.
notas
NE – Este artigo é uma versão revista do artigo homônimo que foi apresentado no 13º. Seminário Docomomo Brasil. ROSSETTI, Eduardo Pierrotti; TURCHI, Thiago Pacheco. Os edifícios de apartamentos de Vilanova Artigas: especulações entre a exceção e a regra. Anais do 13º Seminário Docomomo Brasil. Salvador, FAU UFBA, 2019.
1
TURCHI, Thiago. Artigas e o Edifico Louveira. Edifícios residenciais e a verticalização de São Paulo na obra de Vilanova Artigas. Dissertação de mestrado. Brasília, FAU UnB, 2015.
2
LORES, Raul Juste. São Paulo nas alturas: a revolução modernista da arquitetura e do mercado imobiliário nos anos 1950 e 1960. São Paulo, Três Estrelas, 2017.
sobre os autores
Thiago Pacheco Turchi é arquiteto e urbanista, professor da Universidade Católica de Brasília e doutorando no Programa de Pós Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.
Eduardo Pierrotti Rossetti é arquiteto e urbanista. Professor e pesquisador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.