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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Este artigo retoma a reflexão proposta pelos membros da Internacional Situacionista sobre a construção coletiva da cidade no contexto de uma experiência realizada na favela Parque das Missões em Duque de Caxias RJ.

english
This work inscribes under Situationists International contributions in a context of an experience in Parque das Missões in Duque de Caxias RJ.

español
Este artículo retoma la reflexión propuesta por los miembros de la Internacional Situacionista sobre la construcción colectiva de la ciudad en el contexto de una experiencia realizada en la favela Parque das Missões en Duque de Caxias RJ.


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NICO, Maria Eugenia; GONÇALVES, Rafael Soares. Uma experiência psicogeográfica em Parque das Missões, Duque de Caxias. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 246.03, Vitruvius, nov. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.246/7954>.

Os quinze mapas mentais localizados no espaço geográfico da Itaipava
Acervo Maria Eugênia Nico, 2017

As cidades atuais manifestam uma forte fragmentação urbana e não apresentam canais efetivos de participação social nos processos decisórios das questões urbanas. O planejamento urbano sucumbiu à onda neoliberal de forma que, mais do que nunca, os interesses econômicos definem as formas de habitar e viver. Na prática das políticas públicas no estado do Rio de Janeiro, a participação não costuma ser incorporada nas etapas de proposição e desenvolvimento do projeto propriamente dito. Por causa disso, é preciso repensar formas alternativas que sejam transformadoras tanto da prática de pensar e materializar o espaço como do modelo de socialização dos indivíduos:

“Talvez seja mesmo utópico, mas acredito que a percepção do todo e das opções disponíveis nos fará buscar novas oportunidades e alternativas que poderão ser transformadoras, tanto para cada pessoa quanto para a comunidade, através de cidades feitas com à participação de todos em harmonia com a natureza” (1).

Em vista de refletir sobre a participação e o vínculo com a subjetividade própria do processo de produção do espaço, este artigo se propõe a retomar a reflexão proposta pelos membros da Internacional Situacionista no contexto de uma experiência realizada na favela Parque das Missões em Duque de Caxias RJ. Essa experiência foi analisada na dissertação de mestrado da primeira autora no programa de Engenharia Urbana e Ambiental da PUC Rio, sob orientação do coautor desse artigo. O presente artigo é fruto dessa reflexão.

 A técnica empregada na pesquisa de campo procurou compreender as diferentes experiências subjetivas dos moradores dessa favela como forma subsídio para intervenções mais participativas no local. O estudo de caso se realizou a partir de uma pesquisa participante em conjunto com a organização Teto (2) e pretendeu utilizar a experiência de mapas mentais como meio de expressão das diferentes percepções do espaço urbano e as distintas formas de apropriação da paisagem. Mediante a realização de desenhos acompanhados de entrevistas orais, buscou-se mecanismos alternativos de trabalhar a participação mediante a compreensão da cidade vivida a partir do encontro das diferentes subjetividades. Ou seja, a propósito de compreender as experiências a partir do diálogo, procuramos compreender as representações das vivências no território também mediante mecanismos gráficos. O trabalho de campo foi realizado entre os meses de outubro e dezembro.

Relataremos, primeiramente, as principais ideias da Internacional Situacionista para melhor refletirmos sobre a participação e a influência da subjetividade no urbanismo. Em um segundo momento, expressaremos os resultados empíricos do trabalho de campo.

1. O Urbanismo Unitário e a participação na produção do espaço

Enquanto críticos da cidade moderna e de caráter espetacular (3), os membros da Internacional Situacionista procuraram subverter a ordem estabelecida pelo movimento moderno para propor a criação de espaços urbanos lúdicos e uma ‘construção realmente coletiva da cidade’ (4). Desprezavam, dessa forma, as dimensões funcionais e estéticas, que estavam baseadas no monopólio dos urbanistas e planejadores em geral. Contra a separação moderna de funções (base da Carta de Atenas), definiram o Urbanismo Unitário como ‘a teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento’ (5). Deste modo, não propuseram novos modelos ou formas urbanas, porém experiências efêmeras de apreensão do espaço urbano (6). A partir do Urbanismo Unitário, formam uma crítica ao funcionalismo como expressão do avanço técnico e como mecanismo de eliminação de uma compreensão mais lúdica da experiência urbana:

“Não é o caso de nos contentarmos com ensaios empíricos de ambientes dos quais, por provocação maquinal se esperam surpresas. A orientação realmente experimental da atividade situacionista consiste em estabelecer, a partir de desejos reconhecidos com ou menos clareza, um campo de atividade temporária favorável a esses desejos” (7).

No ideal situacionista, quando os habitantes passassem de simples espectadores a construtores, transformadores e vivenciadores de seus próprios espaços, começaria a construção de situações. Uma situação construída seria “um momento da vida, concreto e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos” (8). Embora afastados da realidade material das cidades, os situacionistas iriam criar uma metodologia e uma técnica para a criação do que imaginavam como ambiências momentâneas da vida. Já nas publicações de Potlach (9), começam a aparecer os primeiros conceitos de experimentações da arquitetura e da cidade atentos a subjetividade e sua vivencia criativa, tais como o conceito de situação e psicogeografia que logo serão essenciais ao pensamento urbano situacionista.

O interesse situacionista pelas questões urbanas foi efetivamente consequência da importância que outorgavam ao meio urbano, como terreno de ação a partir da proposição de uma arte integral, que estaria em relação direta com a cidade e com a vida urbana em geral (10). O principal aporte no campo do urbanismo apresentado por este grupo de artistas e intelectuais europeus foi o de repensar a construção das cidades, desde uma perspectiva meramente determinista a uma visão mais abrangente da cidade, não simplesmente em aspectos parcialmente formais, porém, também, sensoriais e afetivos. Retoma, nessa consideração, a ideia integradora de Henri Lefebvre: “enquanto as ciências descobrem determinismos parciais, a arte [e a filosofia também] mostra como nasce uma totalidade a partir de determinismos parciais” (11).

Dessa forma, a vinculação entre a arte e a técnica nos situacionistas teve suas variações e permitiu o surgimento de uma criação metodológica particular, mas sem efeitos práticos. Segundo Guizzo, “os situacionistas não produziram efetivamente um espaço material construído, mas produziram maneiras de experimentar, vivenciar e ocupar o espaço” (12). Já Jacques (13) assinala que a deriva (14) situacionista ‘não pretendia ser vista como uma atividade propriamente artística, mas sim como uma técnica situacionista para tentar desenvolver, na prática, a ideia de construção de situações através da psicogeografia’. Por sua vez, a psicogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos, através de derivas como objetivo de mapear os diversos comportamentos afetivos diante dessa ação básica do caminhar nas cidades. Essas duas técnicas juntas produziam cartografias que não correspondiam necessariamente ao traçado aparente do local, mas aos afetos e experiências produzidos a partir da experiência de percorrer a cidade.

“A brusca mudança de ambiência numa rua, numa distância de poucos metros; a divisão patente de uma cidade em zonas de climas psíquicos definidos; a linha de maior declive –sem relação como o desnível- que devem seguir os passeios a esmo; o aspecto atraente ou repulsivo de certos lugares, tudo isso parece deixado de lado. Pelo menos, nunca é percebido como dependente de causas que podem ser esclarecidas por uma análise mais profunda, e das quais se pode tirar partido. As pessoas sabem que existem bairros tristes e bairros agradáveis. Mas estão em geral convencidas de que as ruas elegantes dão um sentimento de satisfação e que as ruas pobres são deprimentes, sem levar em conta nenhum outro fator” (15).

A participação na produção do espaço

A diferença dos modelos propostos pelo urbanismo que projetavam modelos ideais à partir de uma orientação dogmática, a teoria crítica do urbanismo unitário parte da cidade presente sem um modelo definido ideal de cidade a ser construída (16), porém a partir da experiência empírica no território. No âmbito da política urbanística atual, parece ser que a participação se tornou inclusive um tema quase obrigatório, caso os projetistas ou os governantes queiram evitar a possibilidade de serem considerados autoritários ao realizarem projetos urbanos e arquitetônicos. Neste quadro, surge ainda um interrogatório sobre o possível uso demagógico desse termo. A participação, em muitos casos, está associada a termos como democracia, justiça, equidade, diferença, proximidade entre o habitante e seu ambiente, porém surgem questionamentos na hora de repensar o modo de desenhar um projeto ou programar uma política pública, tal como afirma Guizzo:

Quem participa passa a fazer parte de algo que já existe. A participação é o mesmo que a inclusão, adaptação ou a divisão de uma lógica existente, de um poder de decisão que já está estabelecido dentro de determinados termos. Há um modo existente de desenhar um projeto arquitetônico ou de pensar uma política pública e o que ocorre é uma inclusão de novos atores nesse modo, mas nunca, ou raramente, existe a possibilidade de repensar o próprio modo (17).

Desse modo, reconsiderar o processo de produção do espaço urbano, examinando as estreitas relações entre a política e a configuração espacial urbana contemporânea, significa questionar, principalmente, os modelos de gestão e planejamento, baseados em uma concepção de desenvolvimento urbano sujeito a uma racionalidade econômica e à regulação através do uso de poder e da força do Estado. É preciso ressaltar que as forças estatais são normalmente mais propícias a defender os interesses do mercado do que da população.

Nesta perspectiva, a reflexão sobre a intervenção no espaço, como análise crítica que se comprometa com a abordagem de novas alternativas para as cidades contemporâneas e sua função social, não deve prescindir de um debate aprofundado no campo da prática profissional e da função de cada ator no processo de planejamento.

O questionamento aqui, portanto, consiste na postura política abordada pelo arquiteto e urbanista (18) diante da própria condição urbana e da crise da homogeneização e serialização do habitar na qual se encontram atualmente as cidades. Segundo Lefebvre, não existe um ideal técnico de moradia ou espaço urbano, mas sim uma necessidade de que esse espaço seja apropriado e vivido como obra e não como um mero produto (19). Parece-nos que está em jogo, quando evocamos a questão da produção reduzida do espaço, a potência transformadora do mesmo, não como modelador da realidade, porém como possibilidade dos habitantes das cidades de se reconhecerem e participarem ativamente na constituição do mesmo.

2. O estudo de caso: Parque das Missões

A proposta de aplicar uma metodologia, que incorporasse o conceito proposto pelos membros da Internacional Situacionista e compreendesse os diferentes fatores intervenientes nas vivências do espaço, conduziu a presente pesquisa para a execução de mapas mentais. Tais mapas refletem, a partir do conjunto de representações expressadas pelo desenho, aspectos sensoriais e afetivos de forma a obter uma compreensão sensível do espaço.

O estudo de caso foi realizado no bairro Parque das Missões em Duque de Caxias, na região metropolitana de Rio de Janeiro. A história da favela surge a partir da mudança de várias famílias, no ano 2000, nas margens do rio Meriti, ocupando o espaço livre entre o conjunto habitacional construído durante os governos Brizola (1991-1994) e Garotinho (1999-2002) para o reassentamento das famílias removidas pela construção da Via Expressa João Goulart (Linha Vermelha). O crescimento dessa ocupação se gerou de maneira linear, em paralelo ao curso de água desde a ponta próxima a baia de Guanabara até a Rodovia Washington Luís. Junto com a expansão também foram se consolidando as construções de alvenaria. A tipologia de construção foi, aliás, definindo as áreas mais precárias nos limites do bairro – denominadas de Itaipava e Colômbia.

A falta de integração urbana e a fragmentação da trama se vê refletida pelas margens do bairro entre as duas vias expressas e os rios em condições ambientais completamente desfavoráveis. Além disso, a precariedade habitacional, a ausência de infraestrutura urbana adequada e transporte deficiente junto com escassez de assistência médica e educacional, a ausência de áreas de lazer e a presença do narcotráficosão, como em grande parte das favelas do estado Rio de Janeiro, parte do cotidiano das famílias que moram na área. Nos aspectos Ambientais, a área se apresenta como uma zona de mangue degradado (20), enquanto a proximidade das casas com o Rio Meriti torna as moradias ainda, mais vulneráveis a riscos de enchentes e erosão, além de que no rio são despejados resíduos sólidos e esgoto.

O processo de consolidação do assentamento, até dezembro de 2016, foi representado pelas 166 moradias existentes numa superfície de aproximadamente 350m de comprimento por 50m de largura, das quais 54 são construções de alvenaria, enquanto que as 112 restantes são construções precárias de diferentes materiais, predominantemente madeira. Em termos de paisagem urbana, percebe-se variações entre as diferentes materialidades que conformam as diversas áreas e suas representações no espaço. A estruturação do tecido das vias de circulação se configuram em diferentes áreas, que se organizam em torno a uma via principal, denominada o caminho da Itaipava, que funciona como via de conexão entre o conjunto habitacional e a rodovia Washington Luís. Nessa via se localizam alguns escassos comércios, mercados, bares e igrejas, concentrando tanto a circulação como os espaços onde a vizinhança costuma se encontrar.

A reflexão sobre a forma e a profundidade da participação nos processos de planejamento levou a articular essa construção com o trabalho na prática, como uma porta de abertura para a conscientização em relação aos espaços de vivência. Esse processo permitiu a consolidação de um espaço de voz e expressividade da população local. Assim, a aplicação do método de realização de mapas mentais deve ser considerada não como uma interrogação a qual supõe uma resposta fechada, mas que traz interpretações diversas e principalmente complexas, sendo um campo em permanente expansão para evocar questões que não tem resposta pronta, mas um caminho a ser elaborado.

Durante a pesquisa, foram realizadas quinze entrevistas, distribuídas na localidade em relação ao reconhecimento de quatro setores com características distintas, três pertencentes ao caminho principal (áreas 1,2 e 3) e o quarto estruturado (área 4) a partir de um beco que abre o caminho em direção ao Rio Meriti.

Distribuição das áreas delimitadas para a análise
Acervo Maria Eugênia Nico, 2017

Caminho da Itaipava
Acervo Maria Eugênia Nico, 2017

Espaços livres de acumulação de moveis em desuso
Acervo Maria Eugênia Nico, 2017

O universo amostral dos entrevistados foi realizado a partir da distribuição geográficadas moradias com o objetivo de distinguir as diferentes representações dos mapas mentais, segundo as características físicas e paisagísticas das práticas cotidianas das áreas anteriormente apresentadas. Nos desenhos na área de Itaipava, é possível distinguir algumas similitudes nas características dos desenhos de acordo com a sua localização no território.

De forma geral, na maior parte dos desenhos, é vista de imediato a clareza física do caminho de Itaipava, não sendo possível identificar essa mesma importância nos demais becos da favela. No entanto, enquanto os desenhos foram representados com expressividade, os relatos em relação às sensações das vivências no espaço público apresentavam um tom de desconforto, raiva e tristeza, sobretudo pela presença de atividades denarcotraficantes fortemente armados na área:

“Na verdade, se eu pudesse ir embora, eu iria, eu acho um lugar pesado, um lugar onde as pessoas têm inveja um do outro. Eu sei que não adianta falar que é um lugar que tem muita droga, porque isso aí está se poluindo em todo lugar […]. Até as crianças brigam, eu tenho vontade de ir embora daqui. Mas como não tenho como, eu vou ficar porque eu quero sair daqui com a cabeça alegre não baixa”.
Mariana, mulher, 39 anos, mora na Itaipava há 4 anos [mapa mental n. 1]

As contradições discursivas entre o diálogo e os desenhos questionam a clareza da forma física como reflexão sobre a paisagem urbana expressada pelos habitantes e a relação sobre os diferentes fatores que não são constituídos pela mesma, porém que influenciam nas vivências cotidianas também representadas no espaço urbano construído – como, por exemplo, a violência que controla os movimentos na favela e, consequentemente, geram sensações de insegurança, preocupação e incerteza. Enquanto se manifestam de uma forma bastante similar, os diferentes diálogos em relação ao lugar, refletem qualidades subjetivas individuais que estão associadas a história pessoal de cada entrevistado (22), estabelecendo diferentes modos de viver o espaço e diferentes formas de apreciação e interesse em transformá-lo.

A diferença entre as questões desenvolvidas no discurso oral e a realização concreta do desenho poderia, da mesma forma, ser um iniciante desta contradição. O fato do narcotráfico não aparecer com clareza nos desenhos poderia ser uma estratégia dos entrevistados, sobretudo aqueles que realizaram mapas mentais onde localizavam os diferentes elementos do espaço urbano, que, por medo de uma possível represália, evitaram identificar as bocas de fumo ou outros pontos relacionados com este tipo de atividade.

Mapa mental da Mariana
Acervo Maria Eugênia Nico, 2017

Mapa mental da Irene
Acervo Maria Eugênia Nico, 2017

Diversamente da área 1, onde as ilustrações expressaram vitalidade e dinamismo nas vias de circulação, a área 2 caracterizou-se pela predominância de desenhos que refletiam desconforto e reclamação pela ausência de infraestrutura adequada da favela. No diálogo com os entrevistados, relatavam os inconvenientes cotidianos em diferentes setores da favela e reclamavam por uma necessidade urgente de melhoras urbanísticas, que foram desenhadas nos mapas pelos entrevistados, enquanto explicavam cada um dos conflitos:

“Aqui, aqui ninguém se organiza para melhorar as coisas. Nas casas boas, lá do beco é melhor. Aqui tem monte de lixo, e muito animal. O valão está todo sujo, cheio de lixo. Olha aí a quantidade de buracos na rua e vê os fios ali? Lá no fundo do lado da pia tem um poste quase caindo”.
Fernando, homem, 35 anos, mora na Itaipava há 10 anos [mapa mental n. 8]

Mapa mental n. 8, Fernando
Acervo Maria Eugênia Nico, 2017

Os entrevistados da área três, enquanto reclamaram nas entrevistas do problema do lixo no espaço público e dos distúrbios causados pelas recorrentes chuvas, os seus desenhos não representavam tais questões. Contraditoriamente, alguns aspectos paisagísticos são representados positivamente junto com a presença de figuras humanas e de aspectos naturais (23):

“Não, não gosto não. Gosto do Parque das Missões, mas o local não. Não é bom para as crianças. Tem bicho dentro de casa. A gente coloca remédio, a gente faz a nossa parte para que não esteja sujo, mas o vizinho não faz. Então não adianta. Tem muito lixo. Tem um vizinho que quando vai lá deixa um monte de lixo na rua. Já tem ficado até sem dormir por causa dele, ficar olhando, vigiando”.
Bryan, homem, 32 anos. Mora na Itaipava há cinco anos [mapa mental n. 12]

Na área quatro, os entrevistados habitam em moradias localizadas no final das vias secundárias, próximo ao Rio Meriti. Apresentaram desenhos isolados, sempresença de casas vizinhas ao redor ou algum indício de figura natural ou humana. A narrativa da área possui uma relação muito forte com a representação do mapa mental. No caso da entrevista com Aline, por exemplo, no momento em que relatava seus desejos de melhorar o espaço urbano, ela representava nos desenhos as diferentes problemáticas que ia percebendo durante a entrevista. Relatava também a necessidade de maior participação dos vizinhos na busca de possíveis soluções sem considerar, durante a discussão, a responsabilidade dos organismos públicos:

“A única coisa que eu queria realmente era que melhorasse a rua, aqui o lugar que eu moro, tipo ai, tá vendo essa água escorrendo, tudo isso. Mas não adianta eu tentar se os outros não querem, entendeu?”
Alice, mulher, 43 anos, mora na Itaipava há 14 anos [mapa mental n. 14]

Entre as quinze entrevistas realizadas, existem várias que representaram nos desenhos com maior clareza o mapa da favela do que outras – por exemplo nos casos dos mapas n. 5, 7, 9 e 10. Estes entrevistados demostraram, pelos seus mapas mentais, possuir um sentido de orientação suficientemente definido quanto á clareza física do espaço urbano. No entanto, não houve um consenso dos elementos físicos reconhecíveis, nem das sensações que cada paisagem lhes poderia originar. O que se observou em alguns destes mapas mentais, os quais representaram a totalidade do conjunto habitacional, foi à clareza física dada pela ortogonalidade das ruas, mais fáceis de construir no mapa mental do que aquelas de traçado irregular, que caracterizam a área de Itaipava. Do mesmo modo, foram identificados alguns elementos de referência da imagem ambiental (24), que foram reiterados em mais de um desenho, como foi o caso da rua comercial da área Colômbia ou diferentes pontos de sociabilidade coletiva, como o posto de saúde, o campo de futebol e a praça pública.

Mapa Mental do Carlos
Acervo Maria Eugênia Nico, 2017

Contudo, as demandas por uma gestão efetivamente democrática por parte das políticas públicas em relação ao espaço urbano também foram apresentadas nos mapas mentais. A falta de infraestrutura elétrica, os postes de luz com risco de queda, o estado de precariedade das ruas, as inundações e enchentes recorrentes, a presença de lixo e poluição do rio, assim como a periódica invasão de diversos animais nas moradias foram sistematicamente evocados nas entrevistas:

“Melhorar a rua, aqui é para ter um nome porque até para comprar alguma coisa, encontrar com o pessoal a gente tem que ir na rua dois. Para ter nome, para arrumar, para dar uma organizada. E outra coisa, a fiação, a luz. Tirando isso, aqui é tudo ótimo [...]. Eu criei meus filhos aqui, eles nunca se envolveram com ninguém”.
Alice [mapa mental n. 14]

Paralelamente a este tipo de crítica, os entrevistados que tinham esta percepção sobre o espaço urbano foram aqueles que expressaram sensações recorrentes de medo, insegurança e vulnerabilidade a serem removidos do lugar. Eles destacaram, após a realização do mapa mental, que não possuem a propriedade dos terrenos, e até em várias oportunidades os ouvimos dizer que são ‘invasores’ da área. Neste caso, o pensamento sobre a incerteza do futuro parece impactar diretamente as possibilidades de melhoria do local.

“Eu gostaria, porque, porque isto aqui é invasão a gente sabe que não é nosso, né. Qualquer momento vem alguém despejar todo mundo, a gente está obrigada a sair porque a gente está no terreno dos outros. Isso aí bate na minha consciência. Mas é o que, eu não tenho as condições. Se eu tiver as condições, eu já tinha saído daqui [...] mas eu não tenho as condições, então, meu único jeito é ficar aqui. Mas eu gostaria sim, para melhorar bastante, mas já que a gente está morando aqui, a gente tem que procurar as melhores condições.
Fernando [mapa mental n. 8]

Na análise da participação dos moradores da favela em projetos comunitários, a partir das entrevistas, foi possível perceber que os moradores da área de Itaipava se encontram dispostos a participar na transformação do lugar.

“Não participo de nenhuma organização, às vezes e bom né, não tem nenhuma organização que trabalhe aqui. Associação de moradores tem, mas não tem nenhum que faça aqueles trabalhos que vocês fazem {a ONG Teto}. Gostaria de participar de algum projeto comunitário, é bom”.
Irene [mapa mental n. 2]

“Por qué? A gente já era para ter organizado tudo isto. Pelo tempo que eu moro aqui, se eu pudesse, eu teria melhorado bastante, entendeu?”
Lucia [mapa mental n. 11]

Através do estudo de caso e a pesquisa participante, percebemos, pela aplicação das entrevistas e a realização dos mapas mentais em Itaipava, que existe um desejo de voz e expressão muito intensa, assim como uma forte vontade de participar na transformação do espaço. Contudo, a falta de participação nos trabalhos coletivos e as atividades que realiza a organização Teto está influenciada pela falta de imaginação sobre esse espaço no futuro, o que não motiva os moradores a trabalhar ativamente na construção do mesmo. Por outro lado, a experiência em Itaipava conduz a rever a participação na busca de ferramentas, que assumam o poder de transformação da população mediante um processo gradual de estímulo ao trabalho coletivo. Tais iniciativas poderiam construir novas pautas reivindicatórias direcionadas aos poderes públicos de forma a suscitar transformações reais, com significado e participação.

Considerações finais

A pesquisa propôs experimentar um método de trabalho que permitisse uma aproximação das ideias situacionistas no contexto urbano da região metropolitana do Rio de Janeiro. Apresentando a experiência de uma prática urbanística que se aproxime ao conjunto de significações percebidas e vividas por aqueles que habitam o território, buscou-se sair da ideia do sistema que tende ‘a se fechar sobre si mesmo, a se impor, a iludir qualquer crítica‘ (25) nas propostas espaciais. A metodologia dos mapas mentais procurou identificar outras formas de representações dos moradores, na tentativa de uma compreensão mais sensível do espaço. Ao trabalhar com essa ferramenta, junto com a observação e a escuta, buscou-se articular melhor as experiências pessoais, as interações com os demais moradores e a percepção ambiental dos entrevistados.

Nas reflexões sobre os resultados, as contradições discursivas entre o diálogo e os desenhos questionam a relação dos diferentes fatores que não são constituídos pela forma física, porém que influenciam nas vivências cotidianas também representadas no espaço urbano construído. Por exemplo em alguns dos casos apresentados, os desenhos foram representados com expressividade, embora os relatos em relação às sensações das vivências no espaço público tenham apresentado outro tom, sobretudo de desconforto e reclamação, e mostrado diversas camadas de apreensão do espaço e não somente aquelas diretamente vinculadas com a materialidade. Tais relatos trazem profundos impactos nos processos de participação.

Em termos de paisagem física, percebe-se variações entre as diferentes materialidades que conformam as diversas áreas e suas representações no espaço. No entanto não houve um consenso dos elementos físicos reconhecíveis, nem das sensações que cada paisagem poderia originar. Dentre os pontos que foram reiteradamente repetidos, destacam-se a clareza física do caminho de Itaipava, a ortogonalidade das ruas e diversos pontos de sociabilidade coletiva, como o posto de saúde, o campo de futebol e a praça pública. Por sua vez, em áreas afastadas, observa-se também desenhos isolados, sem presença de casas vizinhas ao redor ou algum indício de figura natural ou humana, marcando assim que alguns aspectos físicos se manifestam nas representações.

As demandas por uma gestão efetivamente democrática da cidade por parte das políticas públicas em relação ao espaço urbano também foram apresentadas nos mapas mentais. Constata-se um desejo de voz e expressão muito intensa, assim como uma forte vontade de participar na transformação do espaço, às vezes impedida pela falta de imaginação sobre esse espaço no futuro ou a vulnerabilidade a serem removidos do lugar.

Para pesquisas futuras, é recomendável a construção das representações espaciais mediante uma interação ainda mais ampla entre os diversos interlocutores. O trabalho seria ainda mais rico se ele fosse realizado dentro de um contexto de intervenção urbanística, em uma forma de pesquisa-ação, onde as representações estivessem vinculadas a processos decisórios participativos e efetivos. Junto com a realização de atividades de reflexão individuais, seria interessante a realização de mapas mentais coletivos em grupos focais, o que suscitaria maior debate na construção das prioridades coletivas.

É preciso, finalmente, repensar ferramentas, que retomem os objetivos dos situacionistas de apreender as situações do ambiente urbano, de modo a incluir de forma ativa os citadinos nas formas de produção do urbano. Trata-se, assim, de valorizar e estimular o trabalho coletivo para se construir novos vínculos e modos de intervenção no meio urbano a partir de processos que resultem em transformações efetivas. Pensar o espaço construído como processo e não meramente como intervenção pontual reforça o protagonismo dos habitantes nas cidades. O desafio consiste no comprometimento em não incluir os habitantes a uma prática de projeto já previamente construída, mas escutar, observar e, sobretudo criar ferramentas reflexivas, onde o processo de mudança física do espaço permita que os moradores não sejam passivos espectadores, mas se reconheçam também como participantes econstrutores da cidade onde vivem.

notas

1
HERZOG, Cecilia Polacow. Cidades para todos: (re) aprendendo a conviver com a natureza. Rio de Janeiro, Inverde, 2013, p. 75.

2
A Teto é uma organização internacional presente na América Latina e Caribe, que trabalha pela defesa dos direitos de pessoas que vivem em favelas muito precárias através de um processo de fortalecimento da comunidade e que estimule a organização e participação de moradores para a geração de soluções. Promove o envolvimento de diferentes atores da sociedade no desenvolvimento de soluções concretas para superar a pobreza e trabalha pela incidência em política, que promova as mudanças estruturais necessárias para que a diminuir a pobreza. A primeira autora trabalhou como voluntário do projeto da Teto de melhoria habitacional na favela Parque das Missões. Sobre a ONG, ver: <http://www.techo.org/paises/brasil/>.

3
Guy Debord, fundador da Internacional Situacionista é um fervente crítico das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção como uma acumulação de representações que substituem o que era diretamente vivido.

4
JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Apologia da Deriva: escritos Situacionistas sobre a Cidade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003, p. 19.

5
Idem, ibidem, p. 65.

6
Idem, ibidem.

7
As ideias da Internacional Situacionista foram apresentadas em doze números da publicação com o mesmo nome. Os temas tratados correspondiam as críticas do movimento ao urbanismo moderno e a cultura da época, experiências psicogeográficas como a de Ralph Rumney em Venezia ou Abdelhafid Khalib em Paris e propostas urbanas como a Nova Babilônia de Constant, a qual, por sinal, ocasionou várias contendas entre os membros por propor um modelo de cidade. PERINOLA, Mario. Los Situacionistas. Historia Critica de la última vanguardia del siglo XX. Madrid, EdicionesAcuarela, 2007; JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Op. cit., p. 62.

8
JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Op. cit., p. 21

9
Potlach foram as publicações realizadas pelos membros da Internacional Letrista (IL) antes da formação da Internacional Situacionista (IS). O último número de Potlach, o n. 30, já foi publicado depois do fim da IL e do início da IS.

10
JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Op. cit.

11
LEFEBVRE, Henri. O direito a cidade. São Paulo, Centauro, 2001, p. 116.

12
GUIZZO, Iazana. Micropolíticas urbanas: uma aposta na cidade expressiva. Rio de Janeiro, UFF ICHF, 2008, p. 67.

13
JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Op. cit., p. 22.

14
A Teoria da Deriva, publicada por Debord, apresenta esta técnica de passagem rápida por ambiências variadas a partir da afirmação de um comportamento lúdico-construtivo oposto ás noções tradicionais, segundo Debord, de viagem e de passeio. JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Op. cit., p. 87.

15
DEBORD, Guy apud JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Op. cit., p. 39.

16
O mais próximo projeto de concretar o pensamento urbano situacionista foi a proposta utópica de Nova Babilônia idealizada por Constant, a qual implicou o afastamento deste do grupo.

17
GUIZZO, Iazana. Op. cit., p. 24.

18
Segundo Guizzo, o problema parece ser entre a onipotência do moderno e o niilismo do contemporâneo. Nos tempos áureos do movimento moderno, pensava-se dentro do urbanismo que a pratica profissional tinha todo o poder de transformação da sociedade nos seus espaços, e hoje sente-se que o que restou da prática arquitetônica e urbanística é uma simples prestação de serviço sem crítica, sem pensamento. GUIZZO, Iazana. Op. cit.

19
LEFEBVRE, Henri. Op. cit.

20
Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – Nima PUC Rio, 2009.

21
Em todos os casos, os nomes dos entrevistados foram modificados e não foi dada a localização exata de suas casas para guardar o anonimato os entrevistados.

22
Principalmente os entrevistados que mostraram desconforto com o lugar relatavam histórias do cotidiano influenciadas pela violência seja doméstica ou causada pelo tráfico, o qual exigia deles uma atenção maior e preocupação. Em outros casos, os quais serão apresentados mais adiante, as brigas por questões da acumulação do lixo ou invasão de animais são referências para mostrar o desconforto em relação ao local.

23
O autor deste desenho mora numa área espaçosa da favela. Contrariamente aos becos estreitos da favela, esta área é utilizada como lugar de reunião improvisada pelos moradores e raramente encontra-se sem presença de pessoas.

24
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo, Martin Fontes, 2011.

25
Idem, ibidem.

sobre os autores

Maria Eugênia Nico é arquiteta pela Facultad de Arquitectura y Urbanismo de la UNLP. Mestre em engenharia Urbana e Ambiental pela PUC Rio. Coordenadora Geral de Gestão Comunitária em Techo La Plata.

Rafael Soares Gonçalves é advogado e historiador. Doutor em História e Civilização pela Universidade de Paris VII, e pós-doutor pela EHESS. Professor do Departamento de Serviço Social da PUC Rio e pesquisador Faperj (Jovem Cientista do Nosso Estado), e CNPQ (PQ2).

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246.00 regionalismo e gênero

Da habitação popular à paisagem do Nordeste

Uma reflexão sobre regionalismo e gênero

Guilah Naslavsky and Ana Rita Sá Carneiro

246.01 personagem

Flávio Villaça

Uma trajetória dedicada ao planejamento urbano brasileiro

Sergio Luís Abrahão and Silvana Maria Zioni

246.02 ativismo comunitário

Participação comunitária e projeto urbano em favelas

A realidade e a percepção dos moradores na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro

Rachel Coutinho Marques da Silva and Tatiana Medeiros Veloso

246.04 moradia popular

Relatos de uma viagem

Hutongs de Pequim e lilongs de Xangai

Heitor Frúgoli Jr.

246.05

Sobre o desenhar

Uma revisão crítica, metodológica e experimental do estudo do desenho pelo desenhar

Artur Simões Rozestraten

246.06 arquitetura moderna

Os edifícios de apartamentos de Vilanova Artigas

Especulações entre a exceção e a regra

Thiago Turchi and Eduardo Pierrotti Rossetti

246.07 teoria do restauro

A questão do uso e do reuso em alguns juízos teórico-críticos sobre o restauro

Ana Veronica Cook Fernandes and Rodrigo Espinha Baeta

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