No ensaio “Paisagem: Pesquisa pelo desenho do espaço” (1), inicialmente publicado em 1986, a arquiteta paisagista Miranda Martinelli Magnoli, se questionava sobre os principais desafios que o estudo e a pesquisa da paisagem enfrentariam, dada às transformações intensas nas décadas recentes no contexto latino-americano. Uma das seis questões complexas colocada pela autora seria: “Como lidar com a geração de hábitats, em cada tempo e espaço, relacionada a modelos de utilização de recursos (naturais e sociais) e a modelos de utilização do espaço estreitamente inter-relacionados?” (2). Talvez não haja pergunta tão pertinente nos debates contemporâneos acerca dos espaços livres e degradação ambiental nas cidades brasileiras.
A partir da década de 1960, a rápida e crescente urbanização no quadro nacional, em especial a paulistana, impôs uma série debates sobre possíveis soluções para mitigar os danos da intensa aglomeração populacional, em especial, com medidas de controle das mazelas ambientais. Do mesmo modo em que se avolumaram os modelos urbanísticos de como se deveriam ocupar e expandir os territórios, cresceram também os questionamentos da validade desses processos, que embora variassem em grau, em geral estavam embasados em uma estrutura exploratória e depredatória (3). Por isso, talvez, os urbanistas que abordam o problema ambiental, indiquem que a interrelação entre os “modelos de utilização de recursos naturais e sociais” são hoje centrais, dando-se enfoque especial as ações de combate à pobreza (4), sobretudo nas cidades latino-americanas. Maricato atribui a degradação do meio ambiente ao modelo generalizado de ocupação das cidades brasileiras, expandindo esse diagnóstico para as cidades formadas em meio ao subdesenvolvimento: “A questão ambiental no terceiro mundo não pode ser dissociada do processo de desenvolvimento da desigualdade e da exclusão social” (5).
Nesse sentido, é até compreensível que em dias atuais, dada a visibilidade da agenda ambiental, o sistema de áreas verdes tenha ênfase na sua função de salvaguarda das estruturas naturais e mitigação das mazelas do caos urbanos que aflige, sobretudo, os mais vulneráveis e pobres. Mesmo um único equipamento público, como o parque urbano, que ao longo da história foi criado por variadas motivações, como os de sociabilidade, estética, cultural e educacional, tem privilegiado seu papel ambiental nos últimos vinte anos. Se observarmos os marcos legais da política urbana paulistana, por exemplo, percebemos que o motivo para a criação do sistema de áreas verdes oscilou dentre as intenções de sociabilidade – recreação, lazer esportivo e ao ócio – e os ambientais – salubridade, higienismo, melhoria da qualidade de temperatura e do ar, drenagem etc., mas que as prerrogativas ambientais têm ganhado gradativamente mais ênfase.
Apesar de imperativa a preocupação de salvaguarda do patrimônio natural, é salutar apontar que a demanda ambiental não é a única função do Sistema de Áreas Verdes, nem sequer a mais importante. Nesse sentido, Leite defende que a questão de sociabilidade dos espaços livres urbanos não deve ser ofuscada pelas questões ecológicas e ambientais, embora essa seja a tônica do momento (6). Em concordância a essa visão, Magnoli diz que “o enfoque do espaço livre enquanto objeto de desenho só é relevante desde que analisado em face das atividades e necessidades do homem urbano” (7). É por causa dessa visão que o debate acerca dos espaços livres não se restringe a uma mera questão de quantidade – como índices de áreas verdes por habitante – mas deve ter uma reflexão importante sobre onde estão, sua articulação com o ambiente construído, em suas diversas escalas de abrangência na população urbana.
Está posta, portanto, a grande questão no debate desse artigo: como tem ocorrido a interrelação, ou até a sobreposição, do papel ambiental perante a sociabilidade na produção do Sistema de Áreas Verdes – SAV, em que teremos o recorte específico no parque público municipal paulistano, nas diversas escalas urbanas afetas a ele. Em um primeiro momento, será observada a emergência e consolidação do debate ambiental nas leis que vieram a ser referência para o provimento dos parques públicos em cenário brasileiro. Em segundo, será visto um levantamento das posturas projetuais presentes nos parques públicos, destacando-se as ações de entrada da temática ambiental na construção desses equipamentos em contexto paulistano. Em terceiro lugar, será analisado em que medida houve a incorporação da agenda ambiental nas propostas e se é possível identificar uma sobreposição desse tema às questões de sociabilidade.
Contexto do debate ambiental na formação das políticas públicas no cenário paulistano
A incorporação das demandas ambientais no contexto de formação de políticas públicas, sejam urbanas ou específicas à proteção do meio ambiente, é algo relativamente novo dentro do cenário histórico brasileiro. Doutor Antônio Herman Vasconcellos Benjamim, consegue identificar três momentos distintos da política ambiental nacional: a primeira, que integrou todo o período colonial, até o início da república, foi a fase da exploração desregrada, ou laissez-faire ambiental, onde não existia, com raras exceções, qualquer aparato jurídico para regular a apropriação dos elementos naturais; a segunda fase é a fragmentária, que embora tenha tido ações pontuais ainda na década de 1930 – como o primeiro código florestal e o código das águas – começa a se intensificar na década de 1960, formando um conjunto legal para frear a degradação ambiental em larga escala, embora as leis ainda tinham uma grande conotação utilitarista; a terceira fase seria a holística, inaugurada com o Plano Nacional do Meio Ambiente – PNMA (Lei n. 6.938/81), onde passa a haver marcos legais para proteger o ambiente de maneira integral, abrangente e mais sistêmica (8).
De fato, a década de 1960 foi um momento em que se vê uma intensificação de marcos reguladores no arcabouço legal ambiental, que impactariam a organização do espaço artificial e natural, tanto na zona rural, mas sobretudo na zona urbana. Destaca-se, nesse sentido, a revisão de Código Florestal de 1965 (Lei n. 4.771/65), que inaugura os primeiros instrumentos de preservação ambiental, em que assegura o valor social de áreas de fragilidade, mesmo em propriedade privada: as reservas legais e áreas de preservação permanente – APP. O impacto dessas referências não foi imediato, mas passaria a transformar a forma de se priorizar a criação de áreas verdes, com destaque a tipologia linear, que pretende proteger os córregos e fundos de vale, inclusive nos maiores centros urbanos. Em 1989, é publicada a primeira lei que institui a obrigatoriedade da APP urbana, de n. 7.803/1989, consolidado de vez os instrumentos jurídicos de proteção aos córregos nas cidades.
Na década de 1970, se cria, como resultado da participação brasileira na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Humano, em Estocolmo no ano de 1972, a Secretaria Especial do Meio Ambiente – Sema, pelo Decreto Federal 73.030/73, em que se estrutura o primeiro órgão central que trataria de regulações próprias a temática na escala nacional. Os Estados e municípios passariam a ter seus órgãos ambientais também formados, como foi o caso de São Paulo, que durante essa década atribui cada vez mais escopos ao Centro Tecnológico de Saneamento Básico – Ceteb, existente desde 1968 (Decreto n. 50.079). Não à toa, o Estado tem nessa década seus primeiros marcos de proteção a territórios ambientalmente frágeis e de mitigação à poluição: a Lei de Proteção aos Mananciais (n. 898/1975) e a Lei de Zoneamento Industrial Metropolitano (n. 1817/1978).
Nessa mesma década se consolida um marco jurídico urbanístico que também tem impactos ambientais sobre o espaço urbano, a Lei de Parcelamento e Loteamento do Solo (n. 6.766/79). Ela destina ao poder público 40% da área de cada empreendimento aprovado, sendo destes, 15% específicos para uma reserva de área verde pública. Sua publicação trouxe desdobramentos para regulações nos Estados e Municípios, tendo sido considerada na nova lei de parcelamento e uso do solo da cidade de São Paulo (n. 9.413/81), publicado dois anos após a lei federal.
A década de 1980 inaugura uma nova fase da forma de tratar a política ambiental com o Plano Nacional do Meio Ambiente – PNMA, por ser esse o primeiro documento que formula uma visão nacional de formação e gestão dessa política setorial, com a criação do Sistema Nacional do Meio Ambiente – Sisnama. Sete anos depois estava sendo promulgada a Constituição Federal Brasileira de 1988, que em seu artigo 225 indica que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (9). Nesse momento, se garante o equilíbrio ambiental como um direito constitucional, e se consolidam na maior lei da federação alguns instrumentos de impacto na organização do uso do solo, dentre eles os Espaços Territoriais Especialmente Protegidos – Etep’s.
De acordo com Milaré o conceito dos Etep’s previstos na Constituição seriam apenas as de sentido estrito, as Unidades de Conservação, que embora tenham categorias existentes desde o primeiro Código Florestal de 1934, teve sua sistematização como uma ampla política nacional apenas com a publicação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC – Lei n. 9.985/2000). Contudo, em seu sentido amplo, convém também integrar às ETEP’s, as áreas cuja proteção tenha sido garantida tanto pela Lei de Parcelamento do Solo – com as Áreas de Proteção Especial previstas no art. 2 – como pelo Código Florestal – que segundo atualização aprovada na Lei 12.651/2012, seriam as reservas legais, áreas de proteção permanente e áreas de apicuns e salgados (10).
Outro marco jurídico decorrente da constituição na garantia de uma política ambiental em ambiente urbano foi o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/01), que em seu inciso 1º do artigo 2 diz que o objetivo da política urbana seria de dar a “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (11). O Estatuto da Cidade foi um marco de referência que subsidiou a adoção de conceito, como o da função social da propriedade ou da “cidade sustentável”, na formulação de políticas locais, e, especial na construção dos Planos Diretores Estratégicos. No ano seguinte a sua publicação, a câmara municipal de São Paulo aprovou seu Plano Diretor Estratégico (PDE – Lei n. 13.430/02) (12), que inovou em diversos sentidos a perspectiva ambiental de regulação do território, trazendo a estrutura hídrica como um elemento de estruturação das políticas locais no território.
Podemos salientar ainda no PDE 2002, a mudança da perspectiva ambiental nos marcos da política urbana, a observação dos tipos de áreas verdes públicas previstos na lei. Desde 1971, com a publicação do primeiro plano geral com efeito de lei no município, o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (Lei n. 7688/71) (13), as áreas verdes de propriedade públicas eram classificadas de acordo com sua função de apropriação e abrangência da população, como área de recreação infantil, parque de vizinhança, campo esportivo ou parque distrital. No PDE de 2002, as categorias do SAV foram modificadas, inclusive nos tipos de parques públicos, que passariam a ser três: urbano, linear ou natural. Nessa perspectiva, a classificação das áreas seria por sua função ambiental no ambiente urbano, em que destacamos o linear (artigo 106), que estaria dentro de um programa mais abrangente de recuperação ambiental dos cursos d’água e dos fundos de vale da cidade.
Nota-se então, que os últimos setenta anos da história recente brasileira teve um importante papel na consolidação das políticas ambientais, inclusive na incorporação de valores dessa temática em marcos legais e instrumentos da política urbana e que afetariam a forma de compor o espaço. Na construção do sistema de áreas verdes paulistanos, as APP’s, áreas de mananciais, Unidades de Conservação, foram incorporados como instrumentos do PDE de 2002, também no de 2014, e se tornaram referências para a formulação de diretrizes específicas para a criação de novas áreas.
Vale ainda salientar, que o percurso até aqui estipulado se restringiu na observação de marcos jurídicos, que embora indiquem transições simbólicas da visão da política urbana e ambiental e demarquem aspectos de legalidade e de ilegalidade, podem ter se restringido apenas na esfera do discurso. Já foi identificado por diversos autores, em que destacamos aqui o Villaça (14) o quanto os planos diretores na verdade foram mais uma expressão da ideologia da classe dominante do que necessariamente uma base para a construção das políticas públicas e ações efetivas do Estado. Ainda mais quando se observa que a maioria do espaço construído urbano foi constituído à revelia da regulamentação do Estado, em zonas de informalidade (15).
Contudo, o interesse será em prosseguir em compreender as características da ação do poder público, verificando no próximo tópico em que medida as perspectivas do debate ambiental, além de compor o arcabouço legal, também teriam sido incorporadas na construção de parques públicos, após a década de 1960, período esse em que se verificou uma maior participação da agenda ambiental no campo jurídico. Para essa análise não ser tão ampla, a avaliação será restrita ao provimento do município de São Paulo, e será tomado como base da análise os levantamentos já realizados pelo autor na ocasião de desenvolvimento da sua pesquisa de mestrado, em que analisa a produção entre os anos de 1968 a 2012, e que consta em recente publicação Os parques públicos paulistanos (16).
A incorporação da pauta ambiental na produção dos parques públicos paulistanos
Os últimos três capítulos do trabalho de Casimiro (17) foi dedicado a indicação, análise e discussão de dados obtidos do levantamento dos projetos dos parques públicos municipais de São Paulo, em dois períodos distintos: o denominado “Período 3” (P3), entre os anos de 1968 e 1993, momento esse em que a produção dos parques públicos ficou à cargo do Departamento de Parques e Áreas Verdes – Depave; e o “Período 4” (P4), entre os anos de 1993 e 2012, cujo início foi marcado pelo ano em que se fundou a Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente – SVMA e o final foi delimitado com a conclusão do Plano dos 100 Parques, iniciativa da prefeitura que mais implantou novos parques públicos na história da cidade. No P3, a criação de nos parques urbanos se consolidou na gestão do Prefeito Miguel Colasuonno (1973-1975), e criou 22 novos parques até o ano de 1992. Em 1965 a cidade tinha 232 hectares de parques públicos, chegando a 1.567 hectares em 1993 (18). No P4, a política pública de provimento dos parques foi capitaneada pelo secretário Eduardo Jorge Martins Alves Sobrinho, na gestão José Serra / Gilberto Kassab (2005-2012), criando 57 novos parques urbanos e lineares, com mais 504 hectares de parques urbanos e lineares para a cidade (19).
A análise desse conjunto de parques, no total de 79 unidades foi justificada por dois critérios: a) seu período de criação; b) os casos que eram considerados completamente implantados, com a necessária abertura ao uso público. A análise dos projetos foi por meio de três eixos investigativos: o programa, o partido e as técnicas construtivas. Dentro de cada eixo, a partir da bibliografia específica sobre análise de projetos paisagísticos (20), se estipulou alguns blocos temáticos para itens a serem levantados. A partir disso, foi vista a porcentagem e a recorrência de determinada postura projetual, comparando-se as diretrizes propositivas do P3 com as do P4. Com isso, debateu-se as modificações e as constantes posturas que determinaram a feição dos parques públicos paulistanos. O resultado desse levantamento foi sistematizado em quadros sínteses.
O interesse é, à luz desses dados, retirar algumas análises sob posturas específicas da temática ambiental, na prática dos projetos dos parques públicos paulistanos. Com relação ao quadro “Síntese do levantamento do eixo investigativo do “programa”, com dados quantitativos por período”, relativo às posturas projetuais do programa, destacamos:
- Dos percursos propostos, é possível salientar dois que teriam por premissa o baixo impacto no sítio e a possibilidade de dar acesso públicos em terrenos de fragilidade ambiental: as trilhas e as passarelas elevadas. As trilhas são mais comuns no P3 e tem uma queda significativa no P4. Por outro lado, é no P4 que surge a possibilidade de construção de passarelas elevadas, chegando à indicação em quase 1/5 dos parques públicos realizados.
- Era comum em diversos parques paulistanos o represamento de cursos d’água para a construção de lagos, que auxiliariam na drenagem e tinham um apelo contemplativo. Essa postura passa a ser bem incomum no P4, onde se privilegiou manter a linha hídrica na sua conformação original. Por sua vez, no P4 houve a indicação de parques na orla das represas da zona Sul, sendo 12,3% das indicações do período.
- No P4 houve uma diminuição da ocupação de parques públicos por edifícios, mesmo dos mais essenciais como administração, galpão para a equipe de manejo e sanitários; além disso, também é perceptível uma redução da indicação de edifícios de outras políticas setoriais, como os programas culturais.
- Há uma preocupação crescente com relação a questão de drenagem e as áreas permeáveis, em que se alterou a fisionomia de equipamentos esportivos, como por exemplo, na escolha de se privilegiar campos permeáveis de grama ou areia em detrimento de quadras poliesportivas de cimento.
Com relação ao quadro “Síntese do levantamento do eixo investigativo do “partido”, com dados quantitativos por período”, relativo às posturas projetuais do partido, destacamos:
- O formato dos terrenos destinados aos parques públicos passou de nucleado para longilíneo. Apesar do surgimento dos parques da tipologia linear (que apesar do nome se referir a geometria, essa categoria de parque destaca os que teriam função de recuperação ambiental dos cursos d’água e fundos de vale), a pesquisa aponta que mesmo nos urbanos houve uma tendência a formatos longilíneos, enquanto nem todos os lineares tem esse formato. As áreas nucleadas e longilíneas teriam diferentes funções dentro do planejamento ambiental (21), onde o primeiro tipo privilegia o isolamento de estruturas mais sensíveis e o segundo o interesse de conexão de corredores ambientais. Entretanto, o formato do terreno não esteve associado a um planejamento de um trecho da cidade. Essas áreas foram convertidas em parques públicos mais por oportunidades de desapropriação, em que se adquiriu os terrenos que eram possíveis, sem interesse no mercado imobiliário, ainda desocupados, ou de baixo valor de aquisição.
- Foi identificado também a recorrência de compartilhamento da gleba destinada a parques públicos com outros usos não vinculados à sua função, de propriedade pública ou privada. Menos de 9% dos parques criados no P4 foram implantados em toda a gleba, um decréscimo considerável do período anterior.
- Se verificou a possibilidade de criar zoneamentos para estipular restrições de acesso público a determinados trechos dentro do parque público, ainda mais com a deliberada prerrogativa ambiental. O curioso é que houve um decréscimo do período mais antigo para o mais recente, inclusive na adoção da perspectiva ambiental, o que denota pouco uso desse recurso como partido.
- Com relação a considerar as posturas de tratar os elementos já dados pelos sítios a serem implantados pelos parques públicos, o relevo foi elemento pouco alterado e pouco integrado aos partidos dos projetos; a atitude de se preservar maciços vegetados preexistentes é majoritária; e quase 1/3 dos terrenos destinados aos parques não tinham um curso d’água, e quando o tinha, há uma tendência ao isolamento do usuário com a estrutura hídrica, seja pelo acesso físico, visual ou auditivo.
Com relação ao quadro “Síntese do levantamento do eixo investigativo do ‘técnicas construtivas’, com dados quantitativos por período”, relativo às posturas projetuais das técnicas construtivas, destacamos:
- Redução do uso de materiais impermeáveis em pisos no P4, privilegiando alguns porosos, que hipoteticamente teriam um maior desempenho em garantir a permeabilidade de um terreno, mesmo quando coberto, como por exemplo, o caso do intertravado.
- Se mantém a indicação de materiais comuns aos projetos públicos no P3 para o P4, havendo pouca inovação quanto ao emprego de novos materiais, em decorrência da dificuldade estipulado pelo processo administrativo de contratação de obras (previsto na Lei Federal de Licitações – 8.6666/1993)
- Se privilegiam soluções com baixo custo, como a contenção natural de encostas e córregos (quando possível), mas, que do ponto de vista ambiental, seria menos agressiva ao ambiente. Contudo, se privilegia pouca intervenção nas áreas de fragilidade ambiental ou que demandem enriquecimento arbóreo, mesmo as regiões que demandariam uma ação mais estrutural para garantir da qualidade de uma estrutura natural.
- O que se nota com os apontamentos acima é que a incorporação das demandas ambientais nas proposições de construção de parques públicos não foi homogênea. Seja por força de leis, ou por posturas incorporados pelos autores dos projetos, as diretrizes propositivas foram alteradas em distintos graus, a depender da escala de ação do projeto paisagístico. Na escala local se viu a restrição de ocupação humana do espaço público (hierarquia e tipos de percursos, redução de equipamentos e edificações, e também na forma de compô-los e construí-los), a adoção de índices ambiental como indicadores projetuais (como área de permeabilidade), e a escolha de materiais, acabamentos e técnicas construtivas de acordo com seu desempenho de “sustentabilidade”. Já na escala regional, algumas funções defendidas pelo ambientalismo, tais como formato do terreno, conexão entre áreas verdes, qualificação de estruturais naturais na escala do distrito (microbacias hidrográficas e fundos de vale), já não foram tão contempladas. Veremos a seguir, em maior detalhe, essas diferenças da presença do discurso ambientalista, a depender da escala de abrangência do parque público.
A agenda ambiental no provimento dos parques públicos paulistanos: Inter-relações ou sobreposições?
A adoção das medidas ambientais não foi homogênea dependendo da escala em que tratamos a proposição do parque público. Por isso, faremos uso de Laurie (22), que diz que “arquitetura paisagística”, quando trabalhada sob a perspectiva projetual, pode ser dividida em três etapas: planejamento e estimativa da paisagem; ordenamento do território de ocupação antrópica; e projeto detalhado de paisagismo. Essas fases de trabalho estipuladas por ele também serão aqui consideradas para estabelecer a crítica acerca dos avanços e retrocessos que a política ambiental no provimento dos parques públicos.
Planejamento da paisagem
A escala do planejamento da paisagem foi a que se notou a menor participação da pauta ambiental, pois há uma deficiência comum na etapa da escolha do terreno em que se intervirá para ser um parque público: há limitação para a escolha do formato do terreno, inclusive sem relação da geometria do parques com sua tipologia; não se tem clareza das estruturas naturais prioritárias a se preservar; e também não se consegue implantar de forma exclusiva um parque público em uma gleba urbana, uma vez que se verifica de modo recorrente o compartilhamento de terrenos de parques com outros usos não atrelados à proteção ambiental. O que se nota é que a Prefeitura não escolhe as áreas para os parques públicos a partir de uma pauta do interesse coletivo de proteção do meio ambiente, mas acabam sendo áreas de menor interesse de outros atores da produção do espaço urbano, até mesmo pelo menosprezo destes às estruturas de fragilidade ambiental: matas, nascentes, várzeas e relevo acidentado.
Soma-se a essa percepção a análise de dois dados estabelecidos por Casimiro (23): o primeiro, seria a origem fundiária dos parques, que indica que o poder público tem pouca capacidade de escolha dos terrenos, pois 42% dos parques do P3 e P4 se tornaram públicos em decorrência da Lei de Loteamento; 10% já eram áreas públicas; 2% foram doações, 3% pagamento de dívida e 11% por acerto com Estado ou Federação. Apenas 27% foram selecionadas pelo instrumento da desapropriação, o único em que a Prefeitura poderia de fato pautar a preferência pelo terreno. Em segundo lugar, a prefeitura tem dificuldades na distribuição dos parques de forma equânime no território: 53% dos parques da Zona Norte estão na subprefeitura de Pirituba; 40% da zona Sul estão na Capela do Socorro. Enquanto São Miguel Paulista ou Casa Verde sequer tem um parque público.
Assim, é possível dizer que na escala do planejamento da paisagem, a localização, distribuição e características dos parques públicos são feitos ao acaso, sem uma pauta efetiva do poder público. Assim, a pauta ambiental não conseguiu na etapa do provimento nortear a escolha das áreas de acordo com a reserva de áreas com atributos ao bem comum do equilíbrio ambiental urbano. Por isso, podemos afirmar que parte da incapacidade da prefeitura prover a recuperação dos fundos de vale, por exemplo, reside na sua impotência quanto a priorizar áreas que ela mesma converte em parque público.
Ordenamento do território de ocupação antrópica
É possível observar em diversas indicações da escala do ordenamento do território a adoção de posturas que privilegiam a pauta ambiental: ordenação da circulação de pessoas para não afetar áreas de fragilidade ambiental; priorizar a permeabilidade do solo com redução de áreas pavimentadas e edificações; a preservação de maciços arbóreos, quando existentes; preservação e isolamento do curso d’água em sua condição natural, com restrição da ocupação da área de várzea, sobretudo na faixa da área de preservação permanente. Na escala mais local, se percebe que várias medidas que priorizam a preservação das estruturas naturais foram bem adotadas.
Entretanto, nota-se também, como as medidas de preservação suplantaram as de convívio social. Casimiro (24) indica como a pauta ambiental chegou a transferir o interesse em oferecer o lazer coletivo para a preservação ambiental, em especial visto no eixo do programa. A maior exemplificação disso pode ser observada na comparação de dois casos: o parque Alfredo Volpi, projetado na década de 1970, propiciava o usuário ter contato com o curso d’água, tinha trechos contemplativos em meio a mata e espaços específicos para a realização da educação ambiental, e por meio de uma hierarquia de percursos permitia a distribuição dos usuários em todo o terreno que era coberto de vegetação de Mata Atlântica. Por sua vez o Jardim Herculano, projetado em 2009, embora tivesse um terreno com mais de 80 mil m², por estar em área de manancial, com diversas nascentes e cursos d’água, seu projeto só criou uma área de visitação de 15 mil m², isolando do acesso público as nascentes e cursos d’água, e prevendo uma sala fechada para aulas de educação ambiental aos visitantes. Esses casos exemplificam a tendência da alteração de postura verificado em vários casos no percurso dessas décadas estudadas, e que enfatizam como a pauta ambiental suplantou ao do uso público.
Detalhes do Projeto da Arquitetura da Paisagem
Nessa escala específica tivemos um equilíbrio na adoção de medidas da pauta ambiental. Por um lado, se prevaleceu a escolha de materiais que supostamente teriam um papel ambiental, como pisos permeáveis, e também a intenção de pouca alteração de trechos naturais como matas, relevos acidentados e cursos d’água. Contudo, por outro lado, apesar de se ter algumas experimentações pontuais com a inovação de materiais, a escolha de acabamentos variou pouco, prevalecendo elementos comuns a projetos públicos de outros espaços públicos: praças, ruas e vielas.
Casimiro (25) aponta que a pouca inovação na escolha, de certa forma se deve a questão da obra pública seguir as indicações da Lei de Licitações (n. 8.666/93), e que depende da escolha de materiais e de equipamentos que já tenha uma ampla adesão de mercado. Em alguns setores houve alterações mais significativas, como a adoção de iluminação com lâmpadas LED, mas o detalhamento de pisos, acabamentos e equipamentos prevaleceu a tradição da prefeitura, em especial do Depave, que inclusive tem um caderno de detalhes bem desenvolvido. Alguns casos mais “inovadores”, como o caso do parque Prefeito Mário Covas, em que se adotou técnicas “modistas” da suposta sustentabilidade, não se mostraram efetivamente sustentáveis a longo prazo, pois tem equipamentos com peças de difícil reposição um alto custo de manutenção. No geral, prevaleceu a adoção de técnicas tradicionais, de fácil manutenção e com maior durabilidade.
Considerações Finais
O presente artigo se propôs a debater a interrelação de funções inerentes à construção de um parque público, dando destaque na sobreposição ou contraposição da função ambiental perante a sociabilidade, com diferentes nuances de acordo com a escala de análise do projeto paisagístico. Verificou-se que a pauta ambiental foi gradativamente incorporada no campo jurídico da política urbana, prevendo diferentes instrumentos de proteção do patrimônio natural no espaço urbano. De modo geral, a legislação preconizou limitações de acesso e apropriação das pessoas de determinados elementos do meio ambiente considerados mais frágeis. Contudo, tais pressupostos tem um papel controverso nos projetos do parque público, que embora seja composto majoritariamente por estruturas naturais que podem ser preservados, também tem a premissa de ser um espaço público urbano, com o provimento de livre acesso coletivo.
Esse artigo ressaltou também que a perspectiva da defesa ambiental que se consolidou na legislação urbana foi incorporada de forma desigual nos projetos paisagísticos dos parques públicos, dependendo de sua escala de análise. Por um lado, na escala regional a questão ambiental não pauta o planejamento de um abrangente sistema de áreas verdes. Por outro lado, na escala do ordenamento local do território, há uma suplantação das premissas ambientais frente as diretrizes de sociabilidade na construção de um equipamento cujo acesso e apropriação coletiva deve ser indiscutível. Essa verificação aponta ainda uma ineficiência da legislação ambiental e urbana em prover condições do poder público pautar o ordenamento do espaço para prever uma política abrangente de proteção do meio ambiente e de salvaguarda da qualidade de vida.
O que se nota é que o desafio indicado pela Miranda Magnoli na citação desse primeiro parágrafo do artigo ainda é uma indagação não respondida no cenário contemporâneo: Como podemos criar espaços que atendam ao mesmo tempo uma interrelação das demandas ambientais e de sociabilidade? Cremos que a pauta ambiental deve ter merecida atenção pelos urbanistas e paisagistas que enfrentam o desafio de propor soluções aos problemas das cidades brasileiras. Contudo, é necessário aprofundar dois debates na interrelação dessa função com as demais que pautam a produção do sistema de áreas verdes. Primeiro, como seria possível desenvolver instrumentos inovadores que deem ao poder público uma maior capacidade na escolha de áreas de salvaguarda do “bem de uso comum” e um “meio ambiente equilibrado”, invertendo a lógica atual do provimento do sistema de áreas verdes? Segundo, como integrar medidas projetuais que equilibrem a proteção ambiental com a observância da sociabilidade, aspecto este que atribui o sentido “público” ao parque, entendendo que o espaço público é, em primeiro lugar, o espaço do exercício da cidadania e da democracia em ambiente urbano?
Nos últimos trinta anos tem sido crescente trabalhos que rumam no interesse desse debate, sobretudo em com uma posição crítica da suplantação da pauta ambiental aos interesses da esfera pública. Destacamos aqui os trabalhos de Diegues e Alex (26), cuja abordagem esse artigo também se alinha, que denunciam os malefícios para a ordem social que tem ocorrido sob justificativa da preservação ambiental, tanto na escala das unidades de conservação, como das praças. O caminho da mediação talvez resida na reflexão no sentido oposto: após analisar os resultados gerados pelos projetos dos equipamentos públicos, com deficiências principalmente na escala do planejamento regional, seria pensar em uma revisão do arcabouço jurídico, em busca de instrumentos que possam garantir o equilíbrio da preservação, mas também o amplo exercício da cidadania nos espaços públicos, nas suas mais variadas escalas e abrangências.
notas
1
MAGNOLI, Miranda. Paisagem: pesquisa sobre o desenho do espaço. Paisagem e Ambiente, n. 21, 30 jun. 2006 <https://bit.ly/2PNEx1j>.
2
Idem, ibidem, p. 228.
3
Idem, ibidem, p. 229.
4
A temática da pobreza e da desigualdade foi incorporada no centro dos debates liderados pela Organização das Nações Unidas – ONU acerca do meio ambiente, em especial a partir da Conferência do Meio Ambiente de Joanesburgo, na África do Sul, em 2002, cujo tema da erradicação da pobreza passou a ser desenvolvido como estratégia para tratar a degradação ambiental e alcançar o desenvolvimento sustentável.
5
MARICATO, Ermínia. Meio Ambiente e Reforma Urbana. São Paulo, 1994, p. 2 <https://bit.ly/3vDfFbO>.
6
LEITE, Maria Ângela Faggin Pereira. Um sistema de espaços livres para São Paulo. Revista Estudos Avançados, v. 25, n. 71, São Paulo, 2011, p. 159 <https://bit.ly/2RlYLQe>.
7
MAGNOLI, MIRANDA. O parque no desenho urbano. Paisagem e Ambiente, n. 21, 30 jun. 2006, p. 202 <https://bit.ly/2RqXwyV>.
8
BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, v. 2, n. 5, Porto Alegre, ago. 2014, p. 4-5 <https://bit.ly/3tcL2IJ>.
9
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, Presidência da República, 2016 <https://bit.ly/3gXPh8j>.
10
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. 7ª Edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 905.
11
BRASIL Lei Federal n. 10.257 de 10 de julho de 2001. Dispõe sobre as diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília, Congresso Nacional, 2001.
12
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Lei Municipal 13.430 de 13 de setembro de 2002. Institui o Plano Diretor Estratégico e o Sistema de Planejamento e Gestão do Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo. São Paulo, Prefeitura do Município de São Paulo, 2002.
13
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Lei Municipal n. 7.688, de 30 de dezembro de 1971. Dispõe sobre instituição do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado do Município de São Paulo – PDDI-SP, e dá outras providências. São Paulo, Câmara Municipal de São Paulo, 1971 <https://bit.ly/2keyzXm>.
14
VILLACA, Flavio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In SCHIFFER, Sueli Ramos, DEÁK, Csaba (org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp, 2010.
15
MARICATO, Ermínia. Op. cit., p. 4.
16
CASIMIRO, Matheus de Vasconcelos. Os parques públicos paulistanos: a invenção e reinvenção dos casos municipais. São Paulo, Appris, 2019.
17
Idem, ibidem.
18
Idem, ibidem, p. 167.
19
Idem, ibidem, p. 195.
20
Destacamos aqui o uso das referências bibliográficas: LAURIE, Michael. Introducción a la arquitectura del paisaje. Barcelona, Gustavo Gili, 1982; LYNCH, Kevin; HACK, Gary. Site Planning. 6ª Edição. Cambridge, The MIT Press, 1989; VIEIRA, Maria Elena Merege. Arquitetura de exteriores. São Paulo, Pleiade, 2010.
21
Essa diferença é debatida por personagens adeptos aos conceitos de “infraestrutura verde” e da “ecologia da paisagem”, em que destacamos: Benedict, Mark A.; McMahon, Edward T. Green Infrastructure – Linking Landscapes and Communities. Island Press, Washington, 2006; CORMIER, Nathaniel; PELLEGRINO, Paulo Renato. Infra-estrutura verde: uma estratégia paisagística para a água urbana. Paisagem e Ambiente, n. 25, p. 11.
22
LAURIE, Michael. Op. cit., p. 24-25
23
CASIMIRO, Matheus de Vasconcelos. Op. cit., p. 93.
24
Idem, ibidem, p. 366.
25
Idem, ibidem, p. 350.
26
DIEGUES, Antônio Carlos Sant’Ana. O mito moderno da natureza Intocada. 6ª Edição. São Paulo: Hucitex Nupaub, 2008; ALEX, Sun. Convívio e exclusão no espaço público: questões de projeto da praça. São Paulo: Editora Senac, 2011.
sobre o autor
Matheus de Vasconcelos Casimiro é doutorando pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre (2018) e graduado (2011) pela mesma instituição. Autor do livro Os parques públicos paulistanos (Appris, 2019).