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architexts ISSN 1809-6298


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Análise do processo histórico de transformação rural/urbano do Poço da Panela e sua vizinhança, composta pelos bairros de Casa Forte, Monteiro e Apipucos, retratando o processo de transformação de área rural ligada aos núcleos de Recife e Olinda.


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BRANDÃO, Zeca; ARARIPE, Vitor. Do rural ao urbano. O caso do Poço da Panela e seus bairros vizinhos. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 252.00, Vitruvius, maio 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.252/8101>.

Introdução

Nesse artigo, iremos analisar o processo histórico de transformação rural/urbano do Poço da Panela e sua vizinhança, composta pelos bairros de Casa Forte, Monteiro e Apipucos. O estudo abordará a formação urbana desse território, retratando o processo de transformação de área rural ligada aos núcleos de Recife e Olinda, em uma das áreas de maior valorização imobiliária da capital pernambucana.

A análise será realizada através de dados coletados a partir de fontes secundarias, utilizando procedimentos e ferramentas próprias do campo dos estudos urbanos. Para isso iremos consultar autores que se debruçaram sobre diferentes etapas desse processo histórico, a partir de enfoques e finalidades diversas. O trabalho tem como parte fundamental a utilização de citações bibliográficas para ilustrar os elementos trazidos para a análise.

O estudo tem como objetivo, não só apresentar o contexto histórico da área, mas buscar compreender quais os principais elementos resultantes desse processo de formação. Principalmente, entender como esses elementos e especificidades locais incidem e condicionam as permanências e transformações dos dias de hoje. Além disso, pretende demonstrar que a forma com que esse processo histórico se deu, não só conformou o tecido urbano atual como estabeleceu uma série de condicionantes para transformações futuras.

Referências e eixos de análise

Com objetivo de apresentar um breve panorama desse longo processo histórico, que possa auxiliar na caracterização da área e das suas várias especificidades, uma série de estudos foram utilizados como referência, com destaque para três deles que apresentam uma reconstrução desse percurso através de diferentes perspectivas.

Um dos trabalhos consultados, de Luciana Santiago Costa, buscou reconstituir o processo de ocupação dessa parte da cidade, analisando os diferentes períodos a partir da paisagem predominante. Segundo Costa, esses períodos podem ser organizados em quatro momentos distintos: a paisagem natural, até o século 16; a paisagem dos engenhos, do século 16 ao século 18; a paisagem dos sítios e chácaras, no século 19; e a paisagem do edifício vertical, a partir do século 20 (1).

Um segundo estudo, de Sandra Augusta Leão Barros, mais voltado para o entendimento dos recortes territoriais e da definição de lugar, também destinado à área de estudo, propõe um outro percurso através da nomenclatura e da escala de análise utilizadas para trabalhar recortes e localidades específicas da cidade. O trabalho tem como estudo de caso os bairros do Poço da Panela e de Apipucos, ambos situados na margem esquerda do Rio Capibaribe e presente desde os primórdios da formação da cidade. Segundo Barros, as etapas de desenvolvimento urbano dessa região são retratadas na paisagem ao longo dos diferentes períodos históricos e podem ser facilmente identificadas através da escala e da nomenclatura utilizada na definição de suas estruturas espaciais: engenhos, freguesias e povoados, arrabaldes e finalmente bairros (2).

Já o livro Valores do Recife: o valor do solo na evolução da cidade, de Paulo Reynaldo Maia Alves, descreve o processo de ocupação do território e formação da cidade do Recife, apontando as condicionantes que se sobrepuseram ao longo do tempo e foram determinando o valor do solo nas diferentes áreas da cidade, elemento fundamental na indução dos vetores de desenvolvimento da capital. O livro também traz, em alguma medida, as contradições do processo de desenvolvimento de uma cidade territorialmente desigual, onde o acesso a propriedade fundiária sempre foi pouco democratizado e onde o conflito entre a expansão imobiliária e a garantia de locais de moradia fez com que os trabalhadores fossem obrigados a buscar seu lugar na cidade, principalmente através de ocupações de áreas sensíveis ambientalmente (3).

A partir de uma primeira leitura das referências, os elementos desse processo de transformação foram identificados e agrupados para fins de análise em três eixos: a) a estrutura fundiária; b) os usos e atividades; c) a infraestrutura urbana. Esses eixos representam elementos concretos através dos quais podemos analisar esse processo de transição, de um modo de vida e de um espaço rural para o urbano.

Eixo 1 – estrutura fundiária

Durante os três primeiros séculos de ocupação, as margens do Capibaribe, em especial a margem esquerda, foram ocupadas por engenhos de açúcar. Essas estruturas produtivas demandavam grandes dimensões territoriais, articuladas a pequenas porções de áreas ocupadas com edificações relativas à atividade econômica desenvolvida e a moradia/abrigo da população envolvida.

“No Nordeste e especialmente em Pernambuco, a atividade econômica que vai estabelecer a morfologia e a dimensão desses recortes vai ser a cana-de-açúcar, os “engenhos”. Embora o tamanho de uma 21 sesmaria estivesse mais ou menos estabelecido, a localização dos equipamentos e a própria fundação do engenho em si levava muito em conta as características geofísicas do sítio, e daí o importantíssimo papel dos rios e cursos d’água. Interesses que vão se casar perfeitamente com o sítio geográfico recifense, todo recortado por rios e ainda não ocupado, havendo uma aglomeração apenas na ilha portuária, na desembocadura dos rios Capibaribe e Beberibe no oceano” (4).

Essa estrutura permaneceu praticamente inalterada enquanto o cultivo do açúcar se manteve como principal atividade econômica. A partir do declínio dessa atividade e da instalação de usinas e outras tecnologias de produção mais distantes, esses engenhos passaram a se subdividir em propriedades menores, como sítios e chácaras. Segundo Jose Luís Mota Menezes,

“Somente quando os engenhos passaram a ser de fogo morto, encerrando suas atividades, se deu início aos parcelamentos de tais propriedades rurais, levando a necessidade de uma nova organização urbana capaz de requerer outras formas de transporte, diante das alterações nas distâncias resultantes entre o centro do Recife e seus arrabaldes” (5).

Além dos sítios e chácaras, ao longo do tempo foram surgindo os núcleos mais densamente povoados, principalmente no entorno das antigas estruturas dos engenhos. Aos poucos esses arrabaldes foram se transformando em povoações, que por sua vez se transformariam em bairros num futuro próximo. Com o processo de urbanização avançando a partir de meados do século 19, essas áreas foram sendo conectadas aos caminhos de circulação da cidade, porém mantiveram sua paisagem predominantemente rural.

“As casas construídas no interior destes sítios eram soltas no terreno e no entorno havia muita área verde, com abundantes árvores. As primeiras casas construídas nos sítios tinham a sua fachada frontal voltada para o rio Capibaribe e eram servidas por um pequeno cais de embarque e desembarque. Estas residências possuíam em sua maioria varandas, jardins, pomares, fruteiras e pastagens, mantendo na área as características rurais. Esta paisagem se diferenciava muito do que se via no centro do Recife, onde predominavam os sobrados de forma contígua, colados uns aos outros” (6).

Paisagem de Recife, Rio Capibaribe, 1863, exemplo de tipologia da casa solta no lote
Pintura de Louis Schlappriz

Casario do Recife, exemplo de tipologia dos sobrados sem recuo no centro do Recife [Wikipedia Commons]

A partir do final do século 19 e início do século 20, a intensificação do processo de urbanização vai pressionando os sítios e chácaras a serem parcelados, alterando a estrutura fundiária mais uma vez e iniciando um processo mais intensivo de ocupação residencial, de uma área que até então era voltada para veraneio. A área vai sendo sucessivamente parcelada e ocupada, porém, com um padrão de lotes e de ocupação que mantinha generosas áreas verdes e jardins internos.

“Com os loteamentos dos sítios, inicia-se a instalação das residências e a relação entre os volumes plantados e construídos vai ser modificada, já que estas residências vão aos poucos, crescendo em quantidade passando a se destacar na paisagem. Com estes loteamentos, há uma mudança drástica com relação ao uso do solo já que as estruturas rurais vão perdendo suas características para estruturas tipicamente urbanas. Os quintais destas residências e os jardins representam os volumes plantados privados e são destinados a apenas uma família. Os quintais possivelmente são os únicos locais que guardam os vestígios das chácaras e de um passado rural” (7).

Mapa com a localização aproximada dos engenhos de Casa Forte, Monteiro e Apipucos
Montagem do autor [Est. Geográfico Brasileiro Dreschler & Cia. Monumentos e Curiosidades da guerra Holandesa ]

Planta da Cidade do Recife e seus arredores
Digitalização Amélia Reynaldo [Prefeitura da Cidade do Recife, 1932]

Ao longo do século 20 a área passou por diferentes processos do ponto de vista fundiário e de sua ocupação. Na década de 1930 inicia-se com mais veemência o processo de parcelamento da área, que atinge o seu auge na década de 1940, quando ocorre um grande número de parcelamentos na região. Enquanto avançava o processo de parcelamento e a construção de residências unifamiliares na primeira metade do século, na segunda metade esse processo avança para desmembramentos em lotes ainda menores.

“Da década de 1960 em diante têm lugar os processos de desmembramento. Até a década de 1980, esses ocorrem mais por iniciativas particulares de seus proprietários que por atividades empresariais. Atendem muitas vezes a necessidade de divisão dos terrenos para herdeiros e descendentes; em outras, para a obtenção de recursos financeiros com a finalidade de responder aos custos das antigas casas, com a manutenção e às reformas que a vida moderna exigia, e ainda por não ser mais viável manter parcelas de grandes superfícies” (8).

A partir da década de 1990, esse processo de desmembramento, protagonizado até então pelos próprios proprietários, é substituído por um consistente movimento de remembramento, conduzido pelo mercado imobiliário e induzido por novas legislações urbanísticas fundamentadas no potencial construtivo dos terrenos. Essa nova lógica fundiária da região sustentou a grande verticalização que é possível constatar nos dias atuais, através de sucessivas legislações na época que passaram a flexibilizar e estabelecer critérios de ocupação distintos dos anteriores. Esse aumento do potencial construtivo sem muitas restrições, levou a cabo um processo de adensamento bastante acelerado, alterando radicalmente algumas partes desses bairros.

“Desta forma, a partir dos anos 70 e 80, registra-se uma transformação radical na paisagem com uma alteração nos volumes, espaços e funções existentes. A característica harmônica da paisagem começa a ser destruída, ainda que no início, de forma pontual, com novo elemento, o edifício vertical, que passa a se destacar na paisagem. Os primeiros edifícios verticais dos anos 70 apresentavam um baixo gabarito e mantinham uma relação com o entorno. Já a partir de meados dos anos 80 e anos 90, surgem edifícios mais altos, considerados verdadeiros arranha céus com novas formas de implantação, geralmente soltos no terreno, sem uma relação com a rua e desprezando o sítio primitivo” (9).

Praça de Casa Forte, processo de verticalização e a transformação da paisagem local
Foto divulgação [basilio.fundaj.gov.br]

Ao mesmo passo que algumas legislações incentivavam esse tipo de ocupação, outras tinham o intuito de preservar algumas áreas específicas, como o Plano de Preservação dos Sítios Históricos – PPSH. Representantes da sociedade civil, como associações de moradores, professores universitários e técnicos da área de preservação do meio ambiente e patrimônio histórico passaram a se mobilizar contra o processo de adensamento e verticalização excessivos, considerando que esse trazia consigo um conjunto de problemas urbanos que até então os moradores do bairro não tinham que conviver. Em meados dos anos de 1980, foi erguido um edifício residencial de dezessete pavimentos próximo do núcleo mais antigo e preservado do Poço da Panela, que revoltou os moradores locais.

“Começa, então, um movimento que se estende pela zona, especialmente pelos bairros de Casa Forte, Monteiro e Apipucos. A preocupação não se sentava só em questões estéticas ou simbólicas do conjunto antigo, mas também na transformação das condições de vida que sofreriam com aumento da densidade, no impacto sobre o meio ambiente (diminuição do verde, aumento da temperatura, poluição acústica, etc.), no tráfego, etc., e ainda na preservação de uma cidade plural, com características diversas. Com tais preocupações, a Associação Movimento Amigos de Casa Forte (AMA Casa Forte), somente registrada oficialmente em 1987, consegue atrair muitos moradores de toda a zona” (10).

A partir de então, é possível identificar claramente duas visões diferentes em relação àquela porção da cidade. Essas visões são expressas e podem ser vistas nas legislações urbanísticas, que passam a intercalar momentos de maior restrição ao mercado imobiliário e busca por dispositivos que garantam qualidade urbanística para novas edificações, com momentos em que as legislações cedem à pressão do setor imobiliário em explorar padrões de ocupação e parcelamento mais intensivos, maximizando a renda imobiliária do solo.

Eixo 2 – usos e atividades

Um segundo eixo fundamental para entender as especificidades atuais da área de estudo, foi a forma com que se desenvolveram os usos e atividades durante a sua ocupação. Como já mencionado anteriormente, durante os primeiros séculos a margem esquerda do Capibaribe foi pouco ocupada, basicamente foi destinada às atividades açucareiras e abrigou as moradias da população envolvida com os engenhos. A configuração espacial da região como um todo se resumia à Vila de Olinda, localizada ao Norte e principal centralidade urbana do território, o Porto do Recife ao Leste, uma aldeia de pescadores, e um extenso canavial cortado pelo Rio Capibaribe ao Oeste. Como afirma Sandra Augusta Leão Barros,

“A composição urbana inicial (séculos 16 e 17) dividia-se entre a Vila de Olinda, de fato instituída como vila com o aparato jurídico e burocrático da capitania (no alto da colina), o centro portuário – um agrupamento de pescadores e comerciantes, em um enlameado de poças d’água, bancos de areia e mangue, e a planície recifense – um extenso canavial longínquo cujo melhor acesso era pelo rio. A oeste ou para trás dessa aldeia de pescadores ficavam espalhados os engenhos açucareiros, próximos aos cursos d’água e matas para seu abastecimento, nessa época, terras distantes em relação ao porto. O vale do Capibaribe vai logo despontar como um dos eixos de ocupação dessa extensa planície” (11).

No final do século 18, essa região passou a chamar a atenção da população da cidade que começou a ocupá-la. As terras dos antigos engenhos, ao serem transformadas em sítios e chácaras, atraem uma parte mais “abastada” da população e os imigrantes com poder aquisitivo, inicialmente para veraneio, mas posteriormente se instalando de forma definitiva.

O surgimento do povoado do Poço é significativo para ilustrar como essa alteração de predominância de um uso, que se caracterizava por cultivo extensivo e pouca ocupação, se deu a partir da inserção de um novo fator de atração das pessoas: a crença em propriedades terapêuticas dos banhos de rio na área e as recomendações médicas relativas aos benefícios do “ar puro” para a saúde.

Segundo Sandra Barros, tudo começou na virada do século 18 para o século 19, quando a cidade do Recife foi tomada por uma febre maligna que vitima um grande número de pessoas. Os banhos no rio Capibaribe se popularizaram e os locais mais recomendados pelos médicos foram o Poço da Panela, Monteiro e Apipucos. A esposa gravemente doente de um influente coronel da cidade é levada para o povoado do Poço, e faz uma promessa que, caso se curasse, construiria uma capela em homenagem a Nossa Senhora. Surge assim a capela Nossa Senhora da Saúde, transformando o povoado em paróquia e dando-lhe notoriedade (12).

A chegada do século 19, principalmente a partir da segunda metade, marca uma mudança significativa na região, que do ponto de vista dos usos e atividades se expressa na diversificação do que tinha sido uma área de monocultura de açúcar e vinha sendo ocupada progressivamente com residências de veraneio e algumas moradias de alto padrão. Com o estabelecimento desses moradores, inclusive muitos estrangeiros, surgem novos hábitos e costumes, que aos poucos transformam a vida cultural da região. Equipamentos até então inusitados como teatro, restaurante, hotel, sorveterias e lojas são incorporados ao ambiente construído.

A diversidade de usos, aliada a outras facilidades urbanas e a qualidade ambiental da área, contribuíram para a grande vitalidade do até então arrabalde. Com o processo de integração da malha urbana existente avançando, a área foi se consolidando como subúrbio de moradia da população de maior renda, mantendo parte de suas tradições e suas especificidades. Segundo Evaldo Cabral de Mello, o subúrbio, até então preterido pela população em favor das áreas centrais, passa a ser valorizado, atribuindo-se esse fato, em grande parte, aos estrangeiros, em especial os ingleses, que tanto apreciam a moradia no campo (13).

Durante o século 20, a diversificação dos usos teve grande avanço na área, com predominância na segunda metade do século. Como retratado no eixo anterior, o processo de adensamento e verticalização durante esse período multiplicou o número de famílias que habitavam esses bairros, e terrenos onde moravam duas ou três famílias, passam a abrigar de 20 a 80 famílias. Com o crescimento exponencial do uso habitacional, a pulverização de novos usos também aumenta e a área passa a apresentar uma dinâmica urbana bastante intensa.

No final do século 20 surgem os primeiros empreendimentos comerciais de grande porte, atraídos pelo aumento da população nos anos recentes, como o Hiper Bompreço e o Shopping Plaza, ambos localizados no bairro de Casa Forte, configurando um novo polo de comércio e serviços na região. Esses empreendimentos contribuíram para a valorização imobiliária dos terrenos do entorno e potencializou sua ocupação mais intensiva. Segundo Silvana Monteiro de Farias,

“A substituição das características dessa área e também do Conjunto Urbano de Casa Forte e de seus bairros limítrofes — antes considerados como residenciais, apresentando uma estrutura espacial horizontal por uma estrutura mais densamente construída (verticalizada) e ocupada por uma classe média e alta, impulsionou a implantação do Plaza Shopping Casa Forte, inaugurado no ano de 1998. Esse fato incentivou, ainda mais, a consolidação de uma nova centralidade no Recife, conferindo um ritmo intenso de transformação daquele entorno e, consequentemente, das práticas socioespaciais dos seus habitantes” (14).

Apesar da grande transformação ocorrida na história recente da região, a permanência de certos usos, atividades, costumes e tradições ao longo do tempo confere a certas porções da área estudada diferentes graus de reconhecimento social de seu valor histórico. O bairro do Poço além de ter preservado o seu valor cultural, mantém uma predominância do uso residencial, com exceção dos imóveis lindeiros à avenida dezessete de agosto, principal eixo viário da região. Composto por habitações de alto padrão, tanto em condomínios verticais como em casas unifamiliares, o bairro possui também bolsões de pobreza, representados por duas Comunidades de Interesse Social – CIS (CIS – Rua do Chacon e CIS – Poço da Panela).

Eixo 3 – infraestrutura urbana

Por fim, o eixo de infraestrutura resgata os elementos que tiveram, e ainda hoje desempenham, papeis fundamentais na estruturação da ocupação urbana dessa porção da cidade. Esses elementos foram, em grande parte, os fatores de condução e de transformação que apresentamos nos eixos anteriores. Desde os elementos naturais que foram definindo as condições das primeiras ocupações e sendo utilizados de forma funcional para desempenhar determinadas atividades, até a introdução de novas tecnologias que moldaram e redesenharam o espaço urbano.

Como pudemos observar anteriormente, o rio Capibaribe oferecia condições de transporte, geração de energia, fonte de água para consumo, entre outros benefícios, desempenhando diversas funções e servindo como elemento central da estruturação desse território na primeira fase da ocupação. Como disseram Ana Carolina Guedes, Agni Garcia e Betania Maciel:

“Devido à necessidade de facilitar o transporte e uma fonte de energia para o funcionamento da moenda, o rio foi principal fator de influência da localização dos primeiros engenhos. Além disso, era necessário um solo apropriado para o plantio da cana de açúcar; ser próximo das matas para extração dos combustíveis e manter uma distância favorável dos índios a fim de evitar os ataques. Mais tarde esses fatores não tiveram tanta importância devido às novas tecnologias que surgiram no século XIX” (15).

Enquanto a ocupação se manteve rarefeita, o rio garantiu parte considerável do funcionamento mínimo, já que não haviam estradas que dessem boa qualidade de acesso, muito menos redes complexas de serviço e infraestrutura urbana. Com o encerramento das atividades dos engenhos e o processo de parcelamento já abordado, a necessidade de criação de novas formas de deslocamento aumenta. A abertura das novas estradas e os novos meios de transporte contribuem de forma decisiva para a aceleração da ocupação dessa área.

“Com o retalhamento das terras dos engenhos e o aparecimento de novos sítios, que nem sempre ficavam próximos ao rio surge a necessidade da criação de estradas suburbanas, para trazer as pessoas para as áreas localizadas longe do rio.

Surge assim, nesta área, em 1842, a estrada de Apipucos, que era o prolongamento da Estrada de Casa Forte. Esta estrada partia do Entroncamento, e passava por Casa Forte e Monteiro terminando em Apipucos” (16).

Exercício de simulação da localização dos engenhos Casa Forte, Monteiro e Apipucos, no século 16
Realização: Francisco Elihimas [Reprodução: COSTA, 2003]

Exercício de simulação da freguesia do Poço da Panela e seu principal acesso terrestre, entre os séculos 17 e 18
Realização: Francisco Elihimas [Reprodução: COSTA, 2003]

Exercício de simulação da localização e traçado urbano dos arrabaldes e povoados dessa região, no final do século 19
Realização: Francisco Elihimas [Reprodução: COSTA, 2003]

Com as estradas, surge o transporte coletivo. As primeiras diligências, conhecidas também como ônibus, surgem em meados do século 19 e intensificam o fluxo de visitantes que se dirigiam aos arrabaldes. O desenvolvimento dos transportes no final desse mesmo século contribui para criar as condições necessárias ao adensamento da área, assim como os demais serviços e infraestruturas públicas que foram qualificando a área e seu entorno, sempre sendo alvo preferencial de investimentos públicos por abrigar habitações de classe média alta do Recife. A melhoria da mobilidade local somada ao equilíbrio existente na época entre a densidade populacional e a infraestrutura urbana, propiciava uma excelente qualidade de vida aos moradores.

Se até parte do século 20 a área contava com infraestrutura e ambiência urbana considerável, essa condição foi perdendo qualidade ao longo do processo de ocupação mais intensiva e verticalizada. Isso ocorre tanto pelo adensamento não planejado, como pela predominância do automóvel individual como solução para os deslocamentos, determinando o desenho urbano da região. Como visto no eixo anterior, o processo de verticalização acelerado multiplicou o número de moradores, sobrecarregando a infraestrutura urbana da área, comprometendo o sistema viário e os serviços de água, lixo, esgotamento sanitário e de águas pluviais. A presença dos edifícios altos não só modificou drasticamente a paisagem urbana da região, como também repercutiu negativamente na qualidade de vida e nas práticas sociais da população.

Ainda em meados desse século, a cidade sofria com inundações relativamente constantes, tendo ocorrido nos anos de 1970 enchentes de proporções devastadoras, levando a necessidade de construir estruturas de represamento da água na bacia do Capibaribe. Essas construções deram fim as cheias, ocasionando uma grande repercussão na valorização imobiliária dos terrenos próximos ao rio. Além disso, a implantação dessas barragens possibilitou, tanto a remoção como a consolidação de uma série de comunidades de interesse social localizadas nas margens do rio.

“Depois da inundação de 1975, o governo federal resolveu implementar a construção de uma represa, concluída em 1978, no município de Carpina, a uns 70 quilômetros do Recife, para a contenção das águas do rio Capibaribe e a melhoria do curso dos rios, dentre tantas outras ações. Tais medidas já se reclamavam desde as inundações de 1966. Com a contenção das águas do rio Capibaribe, voltaram a valorizar-se as áreas que antes sofriam com inundações, especialmente as que já tinham uma boa infraestrutura, como os bairros dos Aflitos, Tamarineira, Casa Forte, Monteiro, Apipucos, etc. (17).

Ortofotocarta da Região Metropolitana do Recife, de 1975, com destaque para a alteração do curso do Capibaribe depois da implantação das obras de contenção de águas do rio [Governo do Estado de Pernambuco, Fundação de desenvolvimento da Região Metropolitana de Pe]

Ortofotocarta da Região Metropolitana do Recife, de 1986, com destaque para a alteração do curso do Capibaribe depois da implantação das obras de contenção de águas do rio [Governo do Estado de Pernambuco, Fundação de desenvolvimento da Região Metropolitana de Pe]

Tendo sido fundamental no processo de ocupação da região, o rio Capibaribe passou de um dos ativos paisagístico e infraestrutural mais importantes para um elemento negligenciado e desprezado no processo de urbanização da cidade. Como grande porção da cidade não é saneada, parte dos dejetos são jogados diretamente no rio, além do lixo e do assoreamento descontrolado. A cidade pouco a pouco foi virando as costas para o rio, que perdeu o seu nobre caráter social e se transformou numa grande área de serviço.

Dois projetos recentes ocupam um importante papel na retomada da relevância do rio Capibaribe no planejamento urbano da cidade: o Projeto de Navegabilidade, elaborado como estratégia de mobilidade para a Copa do Mundo, e o Parque Capibaribe, que transforma as margens do rio num grande parque público linear. Entretanto, as perspectivas de realização de ambos não são muito animadoras. O primeiro parece ter sido abandonado pelo poder público, mesmo após altos investimentos em projetos e algumas obras pontuais, enquanto o segundo, apesar de ter sido concebido há aproximadamente 8 anos, ainda não saiu do papel.

Considerações finais

Como pudemos observar, os três eixos apresentados se correlacionam no processo de ocupação e urbanização da área. Em linhas gerais, após a desativação dos engenhos e os sucessivos parcelamentos do solo, toda essa planície da margem esquerda do rio Capibaribe passou por um processo de consolidação urbana, inicialmente com freguesias, posteriormente arrabaldes e finalmente bairros. É ao longo desse processo que a área passa a ter um padrão de ocupação, de usos e modos de vida predominantemente urbano.

Porém é importante destacar que, mesmo com o avanço da urbanização, porções consideráveis do território conseguiram manter o seu padrão de ocupação tradicional, além de um conjunto de especificidades do modo de vida local e da sua qualidade urbana. Enquanto algumas dinâmicas impuseram grandes transformações a partes desse território, percebe-se a permanência de alguns dos elementos originais do processo histórico de formação da área até os dias de hoje. Mesmo tendo sido alvo de um forte movimento de valorização imobiliária e flexibilização urbanística, que possibilitou um adensamento construtivo e populacional exagerado em certos lotes e quadras, outros dispositivos legais conseguiram antagonizar esse processo e estabelecer um contraponto.

Inclusive, como citado anteriormente, as legislações urbanísticas para a área traduzem essa dinâmica entre momentos de flexibilização e avanço do setor imobiliário, e momentos de legislações mais rigorosas, preocupadas com a qualidade do meio ambiente e com a preservação do patrimônio histórico e cultural da área. Essa região talvez seja o maior campo de batalha entre as forças hegemônicas do mercado imobiliário e os movimentos de resistência a essa lógica de construção da cidade do Recife.

O peso dos fatores ambientais, socioeconômicos e histórico-culturais, encontrados na leitura desse território devem condicionar, como em qualquer território, o conjunto de legislações, planos e projetos específicos que busquem se debruçar sobre cada um desses aspectos. No caso particular dessa região, o processo de transformação do ambiente rural em ambiente urbano, caracterizando-se como uma espécie de tecido híbrido, requer uma atenção especial. Nesse sentido, a análise das principais transformações e permanências ocorridas ao longo do processo de ocupação da área, apresentada de forma sucinta nesse artigo, pode ajudar a estabelecer os principais condicionantes a ser considerados em futuras intervenções.

notas

1
COSTA, Luciana Santiago. Lugares em Casa Forte: onde residem as fortalezas dos lugares? Orientadora Edvânia Tôrres Aguiar Gomes. Dissertação de mestrado. Recife, Departamento de Ciências Geográficas UFPE, 2003 <https://bit.ly/34ynSlX>.

2
BARROS, Sandra Augusta Leão. Que recorte territorial podemos chamar de bairro? O caso de Apipucos e Poço da Panela no Recife. Revista de Urbanismo, n. 9, Santiago de Chile, FAU Universidad de Chile, mar. 2004 <https://bit.ly/3p8qalh>.

3
ALVES, Paulo Reynaldo Maia. Valores do Recife: o valor do sol na evolução da cidade. Recife, Luci Artes Gráficas, 2009.

4
BARROS, Sandra Augusta Leão. Op. cit., p. 72.

5
MENEZES, Jose Luís Mota. Mobilidade urbana no Recife e seus arredores. Recife, Cepe, 2015, p 104.

6
COSTA, Luciana Santiago. Op. cit., p. 74.

7
Idem, ibidem, p. 82.

8
ALVES, Paulo Reynaldo Maia. Op. cit., p. 77.

9
COSTA, Luciana Santiago. Op. cit., p. 94.

10
ALVES, Paulo Reynaldo Maia. Op. cit., p. 84.

11
BARROS, Sandra Augusta Leão. Op. cit., p. 72-73.

12
Idem, ibidem, p. 75.

13
Apud SOUTO MAIOR, Mário; SILVA, Leonardo Dantas (Org.). O Recife: quatro séculos de sua paisagem. Recife, Fundação Joaquim Nabuco/Massangana/Prefeitura da Cidade do Recife/Secretaria de Educação e Cultura, 1992, p. 197.

14
FARIAS, Silvana Monteiro de. O entorno dos Shopping Centers: do lugar ao espaço de deslocamentos: o caso do Complexo Comercial formado pelo Hiper Casa Forte e Plaza Shopping Casa Forte. Orientadora Norma Lacerda. Dissertação de mestrado. Recife, MDU UFPE, 2006, p. 43 <https://bit.ly/3fw38BQ>.

15
GUEDES, Ana Carolina; GARCIA, Agni; MACIEL, Betania. História e cultura dos engenhos dentro da cidade do Recife nas proximidades do rio Capibaribe. Revista Humanae, Edição Especial Seta 2015, Recife, 2015, p. 5 <https://bit.ly/3c0MSXe>.

16
COSTA, Luciana Santiago. Op. cit., p. 75.

17
ALVES, Paulo Reynaldo Maia. Op. cit., p. 83.

sobre os autores

José de Souza Brandão Neto (Zeca Brandão) é arquiteto e urbanista (Centro Universitário Bennett, 1980), com mestrado, doutorado e pós-doutorado pela Architectural Association School of Architecture de Londres (1988, 2004 e 2015), com segundo pós-doutorado pelo Proarq UFRJ (2018). Atualmente é professor associado da Universidade Federal de Pernambuco e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU), onde coordena o Laboratório de Arquitetura e Desenho Urbano (LADU). Autor dos livros The Role of Urban Design in Strategic Planning: the case of Rio de Janeiro (2009) e Núcleo Técnico de Operações Urbanas: estudos 2007-2010 (2012). Atua como arquiteto projetista e recebeu o 1º prêmio na 10ª Bienal Pan-americana de Arquitetura, categoria Desenho Urbano/Conjunto de Obras (Quito, 1996), e na 3ª Bienal Internacional de Arquitetura do Brasil na categoria Intervenção Urbana (Recife/1996). Exerceu o cargo de Secretário Executivo de Planejamento (2007-2010) e das Cidades (2011-2014), ambos no Governo do Estado de Pernambuco.

Vitor Araripe é arquiteto e urbanista, formado (UFPE, 2017). É sócio fundador e atualmente Diretor Executivo da Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade – CAUS, entidade que presta assessoria técnica em Arquitetura e Urbanismo para comunidades e movimentos sociais na Região Metropolitana de Recife. Também atua com consultoria em planejamento urbano, principalmente para o Poder Publico e para Organizações Não Governamentais (ONGs), na elaboração de estudos, planos e projetos urbanos. Atualmente é Conselheiro do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB/PE, está compondo o Conselho da Cidade do Recife pelo grupo Direitos Urbanos, o Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) do Recife pelo IAB/PE, compõe a Articulação Recife de Luta, o Fórum de Assessoria Técnica Popular do Nordeste e participa da comissão de organização do 3º Fórum Nacional do BrCidades.

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252.01 sustentabilidade

Cultura e desenvolvimento sustentável

Alternativa para superação da crise global

Luiz Philippe Torelly

252.02 legislação

Arquitetura e lei

Dom Quixote e Sancho Pança

José Roberto Fernandes Castilho

252.03 sustentabilidade e Covid-19

Desafios para arquitetos urbanistas na construção de uma cidade socialmente sustentável no pós-pandemia de Covid-19

Thaisa Sampaio Sarmento, Mariana L. Lopes Lôbo and Morgana Maria Pitta Duarte Cavalcante

252.04 meio ambiente e políticas públicas

A incorporação da pauta ambiental na produção dos parques públicos municipais de São Paulo

Matheus de Vasconcelos Casimiro

252.05 configuração espacial e saúde básica

Configuração espacial e saúde básica no contexto territorial do Bairro Cohab, Porto Velho RO

Roberto Carlos Oliveira de Andrade and Wilma Suely Batista Pereira

252.06 projeto e entorno

Um diálogo polifônico em Santiago de Compostela

Rovenir Bertola Duarte and Mirele Syriani Veluza

252.07 patrimônio cultural

Preservar não é (só) tombar

O (o)caso da rua da Carioca, Rio de Janeiro

Andréa da Rosa Sampaio and Gabriel Verinaud Soares

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