Pandemia e crise
Desde os primeiros dias de janeiro de 2020 correu o planeta a notícia do surgimento na cidade de Wuhan, na China, uma metrópole de 9 milhões de habitantes, de um novo vírus do tipo corona, uma zoonose transmitida pelos morcegos em decorrência da perda de seu habitat. Capaz de provocar desde resfriados comuns, ou apresentar um comportamento assintomático, até síndromes respiratórias graves e letais, o novo vírus rapidamente se espalhou pelo planeta, apesar das medidas de isolamento adotadas pelas autoridades chinesas. Sua propagação em escala mundial foi rápida. Em 11 de março a Organização Mundial da Saúde reconheceu o estado pandêmico global. No dia 12 de março ocorreu a primeira morte em território brasileiro. Até o dia 31 de dezembro de 2020, ocorreram 84 milhões de casos em todo o planeta, com 1,8 milhões de mortes. No Brasil 7,7 milhões de casos e 194 mil mortes, 11% do total mundial. Essas estatísticas continuam em progressão.
Com a pandemia, veio a necessidade de isolamento social e paralisação de inúmeras atividades estratégicas para a economia. No Brasil, apenas o setor agropecuário apresentou um pequeno crescimento, dado as suas características de inserção em áreas de baixa densidade populacional. Os demais setores foram duramente castigados, como turismo, hotelaria, alimentação, prestação de serviços, indústria. No segundo trimestre de 2020, a queda do PIB foi de 9,7% em relação a igual período do ano anterior. O desemprego na última semana de agosto chegou a 14,3%, o que significa mais de quatorze milhões de desempregados (1). No restante do mundo a situação é semelhante, especialmente nos EUA e na zona do Euro. No primeiro, a queda do PIB no segundo trimestre foi de 9,1% na segunda 12,1%. Anualizadas essas taxas levam a uma projeção de queda do PIB superiores a 30%. A depender do desempenho da economia no 2º semestre do ano, podemos ter uma crise recessiva de proporções maiores que a de 1929.
A situação é muito grave, tanto do ponto de vista econômico, quanto ambiental, causa primária dessa crise global, para a qual ainda não há um desfecho claramente delineado. A vacinação que já começou em alguns países, não deverá erradicar de imediato a contaminação pelo novo corona vírus, que ainda deve perdurar por mais alguns anos. Infelizmente, o Brasil deve iniciar sua vacinação apenas em fevereiro ou março, o que custará mais alguns milhares de mortes, exclusivamente pela falta de planejamento e incúria governamental. Cerca de setecentos mil casos são registrados diariamente após quase dez meses de pandemia. Todavia, o que fica claro é que o número de infectados e mortes variam de país a país e correspondem a postura e as medidas adotadas pelos governantes. Enquanto EUA, Índia, Brasil, Europa, México e Colômbia, concentram a ampla maioria das ocorrências e da morbidade, países de vários continentes e realidades sócio econômicas distintas, como, Uruguai, Paraguai, Nova Zelândia, Austrália, Ruanda, Congo, apresentam estatísticas reduzidas. A China, país de origem da pandemia, adotou rigorosas medidas sanitárias e conseguiu frear a propagação.
Apesar dos inúmeros alertas das agências da ONU e de universidades e centros de pesquisa, vinculando as dimensões ambiental e econômica diretamente as mudanças climáticas, muitos países fecham os olhos e continuam com práticas negacionistas e velhas medidas predatórias. O Brasil é um deles. Ao abrigar as maiores reservas florestais e de água doce do mundo, o país tem responsabilidades proporcionais na comunidade internacional. Todavia, despreza essa relevância geopolítica e opta por atitudes que são prejudiciais à sua imagem e interesses comerciais, em nome de uma falsa autonomia. Infelizmente o que vemos é o sucateamento da política ambiental, a revogação da legislação protetiva, a redução da fiscalização, dos investimentos externos. Este ano foi marcado por intensos incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal, alguns com sérias suspeitas de origem criminosa, com intuito de ampliar áreas para pecuária e agricultura, com extensos danos a flora e a fauna. Estão sendo registradas em várias regiões e cidades, as temperaturas mais altas da última década. A cidade de Ouro Preto, patrimônio da humanidade, está seriamente ameaçada por incêndios em seu entorno.
Dados coletados pelos economista norte-americano Jeffrey Sachs, autor do livro A era do desenvolvimento sustentável, um dos formuladores dos “objetivos do milênio” da ONU, nos dão uma ideia da intensidade da transformação ambiental, pelo cálculo do Produto Interno Bruto Mundial – PIB, por um período de 190 anos. Em 1820, o PIB per capita anual de cada habitante do planeta era de U$ 651,00 (valores de 2010), e a população terrestre de cerca de um bilhão de pessoas (2). Em 2010 o PIB era de U$ 5942,00 per capita. São de 6,5 bilhões de pessoas a mais, consumindo nove vezes mais. Como todos os cálculos de PIB, esse igualmente não revela a desigualdade e a alta concentração de renda em alguns países especialmente do hemisfério Norte. Para se ter um referencial, o PIB per capita do Brasil em 2019, foi da ordem de U$ 8.541,42. O Índice de Desenvolvimento Humano – IDH em 2018, foi de 0,761, considerado alto e o país ocupa a 79ª posição em 189 países. A esmagadora maioria dos países com médio e baixo IDH estão na África e Ásia. Esses números apontam para a ocorrência de grandes calamidades ambientais, pois é óbvio que o consumo foi se intensificando ano a ano, na medida da globalização e da crescente concentração de renda.
A missão do Icomos é promover a conservação, a proteção, o uso e a valorização de monumentos, centros urbanos e sítios. No atual contexto, e dada a imbricação das dimensões econômica, social, ambiental e cultural, se faz necessário um amplo debate com o objetivo de definir estratégias, meios e objetivos, para a preservação do patrimônio mundial. O conceito de desenvolvimento sustentável, surge assim como uma alternativa a outros modelos que inexoravelmente nos levaram ao estágio atual de degradação ambiental e a uma pandemia que parece saída de filmes e livros de ficção. Todavia, a realidade sócio-político-econômica é complexa, e os interesses das diferentes nações conflitantes. Uma parte considerável dos países do hemisfério Norte, tem padrões de consumo muito elevados, em muitos casos trinta vezes superiores per capita, aos dos países pobres. E são refratários a controlá-los. Há uma assimetria norte-sul no que diz respeito à renda e ao consumo. Além disso, muitos países de baixo desenvolvimento humano, almejam com toda razão a melhoria da qualidade de vida. Todavia, não existem recursos naturais para universalizar os padrões de consumo das nações de elevado desenvolvimento humano. Esse é o paradoxo com que se defronta o mundo contemporâneo. Há que simultaneamente reduzir o consumo e distribuir riquezas entre as nações. Enfrentamos um crescente processo de redução do emprego e do trabalho, motivados por avanços tecnológicos e pela precarização dos vínculos trabalhistas. Vários setores da economia têm sido atingidos como o comércio em geral, bancos, serviços de táxis e de entregas, atingindo inclusive ícones do capitalismo, como Shopping Centers e edifícios corporativos e comerciais, templos do consumo. Caminha-se rapidamente para um elevado desemprego estrutural
Globalização e mudanças climáticas
As mudanças climáticas e ambientais decorrentes da ação do homem, foram gradualmente se intensificando a partir do final do século 18, com a revolução industrial. Até então, a quase totalidade da população consumia o que produzia, eram muito escassos os bens manufaturados ou supérfluos. De uma população de um bilhão de habitantes no início do século 19, estamos prestes a alcançar 8 bilhões. O fenômeno da globalização, iniciado no renascimento em decorrência das grandes navegações, foi paulatinamente se espalhando por todo o planeta. Um processo de ocupação e colonização mercantil, sob o signo da cruz e da espada. Povos e nações foram submetidos pela violência das armas e das doenças. Inicialmente, algumas potências europeias, Portugal, Espanha, França, Holanda, Inglaterra e Itália, comandaram a exploração de recursos minerais, agrícolas e industriais de suas colônias, utilizando-se da violência e do escravismo das populações autóctones e do africano, originando um fluxo permanente de drenagem e concentração de riquezas (3). Posteriormente outras nações como Alemanha, Rússia, EUA, Japão e mais recentemente a China, adentraram neste seleto grupo.
O acumulo de capitais permitiu a industrialização, etapa primordial da globalização e do modo de produção capitalista, como vemos na atualidade na maioria dos países, inseridos desigualmente no processo. Uns fornecem capital e tecnologia, outros apenas produtos primários e mão de obra. Já a partir da segunda metade do século 19, a degradação ambiental começa a surgir. Filósofos como Henry Thoreau, em sua obra Walden ou a vida nos bosques (4) a denunciam e propõe uma vida de integração e respeito à natureza. Friedrich Engels em seu livro O problema da habitação e das grandes cidades, relata as mazelas da metrópole londrina em 1872, à época a maior cidade do mundo:
“Os sacrifícios dispendidos para construir estas coisas de descobrem mais adiante. Só quando andamos vários dias pelas ruas principais, abrindo caminho a duras penas entre a multidão e a infinita fileira de carruagens, quando se há visitado os piores bairros da cidade e que nos damos conta do tamanho do sacrifício que os londrinos tiveram que fazer para realizar todas essas maravilhas da civilização que chegam as cidades. Centenas de esforços latentes foram anulados e oprimidos para que poucos se realizassem e se multiplicassem, aproveitando-se dos esforços de todos” (5).
De lá para a atualidade, os problemas, assimetrias e mazelas do modo de produção capitalista ocuparam todo o planeta. Apenas seis países entre os trinta primeiros no Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, situam-se fora da Europa e América do Norte. Mesmo as áreas desabitadas, como os polos, sofrem consequências com o degelo gradual. O consumo crescente e cada vez mais supérfluo, alimentado por uma falsa noção de progresso técnico e científico permanente, provocou a degradação ambiental em todo o planeta, destruindo o habitat natural de outras espécies, com consequências em escala global. Aumento da temperatura decorrente da emissão continua de gases de carbono de origem fóssil; elevação do nível dos oceanos; desertificação; mudança dos regimes hidrológicos e pluviométricos; destruição de florestas e reservas naturais; chuvas ácidas e até de plástico; pragas, doenças e epidemias. Pior, desigualdade, pobreza, fome, falta de acesso à educação e a saúde em grande parte dos países.
Diante desse quadro intenso já há 50 anos, alguns países passaram a promover a regulação de atividades, embora utilizando-se de uma matriz energética suja, como a de carbono, ou de elevado risco, como a nuclear. A gravidade da situação levou a ONU – Organização das Nações Unidas, a promover em 1972, a realização da 1ª Conferência Global sobre o Meio Ambiente. Em 1987, sob a presidência da ex-Primeira-Ministra da Suécia, Gro Harlem Brundtland, foi produzido o denominado Relatório Brundtland, que desde então tem sido o documento de referência, para as iniciativas da ONU. Nos anos de 1992, no Rio de Janeiro/Brasil, em 2002, em Johanesburgo, na África do Sul e novamente no Rio de Janeiro em 2012, os países membros se reuniram e estabeleceram uma estratégia global, que simultaneamente preservasse os recursos naturais e fosse eficaz no combate à pobreza e o subdesenvolvimento.
O protocolo de Kyoto de 1997 e o Acordo de Paris de 2017, estabeleceram normas, metas e procedimentos para o controle da emissão de gases e outras medidas, sendo o Brasil signatário de ambos, com uma meta ambiciosa: redução da emissão de gases em 37% até 2025. As atitudes de desregulamentação e leniência com queimadas, mineração e precariedade da fiscalização, indicam que a meta não será cumprida. O país tem sido influenciado pela postura norte-americana de não adesão ao acordo e de contestação das premissas que o orientam, negando que o aquecimento global é decorrente da emissão de gases, mas sim de alterações climáticas naturais.
Os princípios abaixo formulados no Relatório Brundtland são até a atualidade estruturadores da política ambiental proposta pela ONU:
“O desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades”.
“Um mundo onde a pobreza e a desigualdade são endêmicas estará sempre propenso a crises ecológicas, entre outras. O desenvolvimento sustentável requer que as sociedades atendam às necessidades humanas tanto pelo aumento do potencial produtivo como pela garantia de oportunidades iguais para todos”.
“Muitos de nós vivemos além dos recursos ecológicos, por exemplo, em nossos padrões de consumo de energia… No mínimo, o desenvolvimento sustentável não deve pôr em risco os sistemas naturais que sustentam a vida na Terra: a atmosfera, as águas, os solos e os seres vivos”.
“Na sua essência, o desenvolvimento sustentável é um processo de mudança no qual a exploração dos recursos, o direcionamento dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional estão em harmonia e reforçam o atual e futuro potencial para satisfazer as aspirações e necessidades humanas” (6).
O desenvolvimento sustentável surge, assim, como uma alternativa a outros modelos que inexoravelmente nos levaram ao estágio atual de degradação ambiental e a uma pandemia que parece saída de filmes e livros de ficção. Todavia, a realidade sócio econômica é bem mais complexa, e os interesses das diferentes nações conflitantes. Inicialmente em função da guerra fria e na atualidade, com viés menos ideológico, vivemos a disputa hegemônica que envolve recursos estratégicos como o petróleo e minérios raros como o nióbio, e naturalmente mercados para seus produtos.
A conceituação de desenvolvimento sustentável que a ONU adota é questionada por alguns estudiosos e pesquisadores, por não ser explícita no que diz respeito a redução do consumo. Hoje já seria muito difícil aprovar propositura dessa natureza. Imagine há três décadas atrás. O aumento da população, a degradação dos recursos hídricos e florestais, o aumento da temperatura global e a poluição do ar e da terra, determinam segundo esses estudiosos uma redução do consumo em todo planeta, especialmente no hemisfério norte. Aí chegamos a um impasse. Os modos de produção vigente em quase todo o mundo, baseiam-se na crença de um progresso material permanente e crescente. Sabemos que isso não é possível pois os recursos naturais são finitos e a população mundial continua a crescer, embora em muitos países da Europa e Américas o crescimento esteja estabilizado ou até em declínio. Em 2050, a população deverá atingir 9,7 bilhões de pessoas, em uma hipótese intermediária, 26% superior ao valor atual (7).Esse crescimento ocorrerá especialmente nos continentes africano e asiático, em países de baixo desenvolvimento humano, como Nigéria, Sudão, Angola, Congo, Paquistão. Estamos diante de um impasse que infelizmente veem sendo postergado, seja pelos governos nacionais, seja pelas instituições multilaterais do sistema ONU. Os estados nacionais não controlam as grandes corporações que, muitas vezes, são transnacionais e possuem um capital pulverizado.
Quatro componentes são centrais para o êxito de uma política global de desenvolvimento sustentável:
- redução de consumo de bens em escala mundial e uma política de reciclagem e ampliação da vida útil de bens duráveis e de consumo. Entre outros nomes a famosa “obsolescência programada”. Tal tarefa não pode ser delegada apenas a iniciativa de indivíduos e famílias. Deve ser de responsabilidade de países, empresas e corporações internacionais. A redução de emissão de gases de carbono pactuadas no Acordo de Paris em 2017, peça central do acordo, foi denunciada pelos EUA responsável por 52% das emissões, levando ao fracasso anos de negociações e tratativas;
- o controle do crescimento demográfico, desafio que está diretamente associado a melhoria das condições de vida e ao respeito dos chamados direitos fundamentais ou “liberdades instrumentais” como assinala Amartya Sen (8). Direito ao trabalho com remuneração justa e as oportunidades econômicas; à saúde; à educação; à habitação e saneamento; às liberdades políticas, culturais, étnicas e religiosas;
- um intenso esforço de cooperação norte/sul, com a criação de fundos de financiamento de projetos de desenvolvimento econômico, social e de preservação ambiental, a cargo de países e de organizações multilaterais. Os recursos seriam destinados como forma de reparação à ocupação colonial e danos ambientais como a emissão de gases de carbono, mas em volumes bem mais significativos dos que hoje são praticados. Alguns países já reivindicam iniciativa semelhante, inclusive com a restituição de seu patrimônio cultural. Pode ser um importante instrumento para a implementação de políticas de controle demográfico e migratório;
- difusão e barateamento de tecnologias voltadas para a produção de alimentos, armazenamento e tratamento de água e efluentes, reflorestamento e preservação ambiental. É bom lembrar que em algumas realidades de escassos recursos, a sobrevivência dos agrupamentos humanos pode ser predatória ao habitat.
O que está se sugerindo não é tarefa fácil, dado a complexidade das relações econômicas internacionais. A crise mundial porque passamos é o reflexo das anomalias e impropriedades dos meios de utilização dos recursos naturais e de distribuição das riquezas e benefícios. Sua continuidade e a tendência da irreversibilidade em níveis razoáveis do crescimento demográfico, amplia consideravelmente os riscos de novas catástrofes ambientais, econômicas e conflitos armados. A tendência caso a pandemia seja superada, é de ampliação do consumo, para a reversão das perdas e retomada dos moldes tradicionais de crescimento econômico. O chamado “novo normal” onde o “locus” privilegiado das relações econômicas, sociais e culturais caminha para a virtualidade, traz grandes questionamentos quanto ao futuro das sociedades, das cidades e dos atuais meios de interação humana e produção do conhecimento. É um debate que está apenas começando.
Patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável (9)
A ação transformadora do homem sobre a natureza, sua fantasia, sua relação com o cosmos e a realidade é que produzem a cultura. Cada vez mais os conceitos de cultura e patrimônio cultural se ampliam e incorporam manifestações diversas dos diferentes agrupamentos humanos de uma sociedade. Seja em sua dimensão material, estendendo a ação preservacionista a um espectro maior de bens em várias escalas, como, por exemplo, - nas paisagens e itinerários culturais - seja em sua dimensão imaterial, cujos avanços foram notáveis, no registro, salvaguarda e difusão de saberes, celebrações, formas de expressão e lugares que constituem o cerne das culturas em suas diversas manifestações. Pode-se afirmar que, na atualidade, a preservação do patrimônio cultural não é apenas mais abrangente, ela reflete com maior intensidade a diversidade, as várias identidades formadoras das nações, povos e etnias. Especialmente aquelas que por estarem vinculadas a agrupamentos sociais restritos, muitas vezes marginalizados e de limitada expressão demográfica e econômica, apresentam riscos elevados de desaparecimento. Ressalte-se, ainda, que essa nova acepção do conceito de patrimônio cultural, expressa-se cada vez mais como um dos caminhos do desenvolvimento, em oposição a uma compreensão vigente nos anos 80, do século passado, de que eram processos antagônicos. Seu estabelecimento – ato discricionário embasado em critérios de valoração objetivos e subjetivos de uma determinada sociedade – determina parcela do legado cultural da humanidade às futuras gerações. Sua relação e impacto sobre a natureza são permanentes e se intensificam na medida do crescimento demográfico.
A importância da dimensão cultural e do avanço tecnológico no processo social e em uma visão crítica do desenvolvimento é recente como preconiza Celso Furtado (10). Ele propõe em sua obra que seja realizada uma abordagem sistêmica, estabelecendo uma relação de interdependência entre cultura e desenvolvimento. O subdesenvolvimento se deve além de fatores econômicos a aspectos culturais. Sua percepção ocorre com a constatação de que “a qualidade de vida nem sempre melhora com o avanço da riqueza material” (11). Embora expressivos segmentos alcancem significativos progressos em seu bem-estar, continuam prisioneiros de padrões culturais determinados por questões religiosas, etnocêntricas e geocêntricas, por exemplo. O que não deve ser confundido com o direito a diversidade e identidade, atitudes que podem preservar as características da vida tradicional de muitos povos e nações, estabelecendo um diálogo do passado com o futuro, sem que se converta em um obstáculo ao desenvolvimento sustentável.
Furtado e outros autores como Roberto Schwarz alertam quanto as especificidades da formação cultural brasileira, bastante singular no cenário mundial. O país foi colonizado como uma empresa agrícola, mineral e mercantil, baseado no escravismo do índio e do africano. Uma colônia de exploração e não de povoamento, o que só iria acontecer no século 19. O índio teve sua população inicial drasticamente reduzida por doenças e guerras e sua cultura desarticulada por uma miscigenação da mulher índia com o homem branco. Os escravizados africanos passam a partir de meados século 17, a compor a grande massa de trabalhadores na empresa colonial. As elites estiveram sempre ligadas ao cenário cultural e a dinâmica da sociedade europeia, mesmo após a independência de Portugal, como hoje continuam a vincular-se majoritariamente a produção cultural europeia e depois a norte americana. As camadas populares tinham até poucas décadas, acesso reduzido as escolas, universidades, bibliotecas, cinemas. Criaram sua própria cultura com predominância da herança africana, mas também com componentes das origens indígena e portuguesa, a depender da região do país.
A interrelação entre as duas esferas só se intensificam já no século 20, embora valores comuns e influências mútuas sempre tenham ocorrido. O sincretismo religioso, a culinária, a música, danças, folguedos e as fisionomias e biótipos dos brasileiros são seu testemunho. Importante destacar o papel do movimento modernista em ampliar pontos de interação com a cultura popular, por meio de figuras como Mário de Andrade, Villa-Lobos, Cândido Portinari, Emiliano Di Cavalcanti, Lima Barreto, Graciliano Ramos. Todavia, ao se analisar as expressões culturais patrimonializadas, percebe-se claramente que a dimensão material é vinculada a um estamento e a imaterial a outro. Embora ajam pontos de contato e interação, a própria separação dimensional estabelece o contraste. Ainda hoje a dinâmica cultural dita letrada e culta, permanece atrelada as culturas do hemisfério norte, em descompasso com nossos processos culturais, econômicos e sociais o que acaba por determinar segregação cultural e social. É o que Roberto Schwarz denominou apropriadamente de Ideias fora de lugar (12).
O caso brasileiro deve ser considerado para ilustrar a necessidade do caráter inevitável da globalização respeitar as especificidades das culturas locais e não ocidentais. Não é possível um único processo de desenvolvimento, mas possibilidades de escolhas qualitativas e quantitativas. Este nos parece o nexo fundamental para que a preservação e salvaguarda do patrimônio cultural estejam imbricadas ao desenvolvimento.
Não existem formulas prontas para este imenso desafio que une todos os países cada vez mais interdependentes, mas que estabelece simultaneamente contradições, conflitos e paradoxos entre ricos e pobres. O compromisso sincrônico com as atuais gerações e diacrônico com as futuras, e a educação, são os esteios que podem permitir uma nova visão e mentalidade. Nesse processo como nos lembra Celso Furtado, “o ponto de partida terá que ser a percepção dos fins, dos objetivos que se propõem alcançar os indivíduos e a comunidade. Portanto, a dimensão cultural dessa política deverá prevalecer sobre todas as demais” (13). As atitudes cotidianas mesmo que pareçam insignificantes, tendem a se multiplicar e estabelecer novos padrões comportamentais. Ainda não nos apropriamos o suficiente da abrangência do conceito de sustentabilidade a ponto de confundi-lo com sustentação. Um projeto pode ser viável técnica e financeiramente, sem ser sustentável. Portanto, não pode existir preservação patrimonial sustentável, sem integração com as demais políticas públicas; o combate à pobreza e o desemprego; a educação, à saúde; o saneamento; o uso e ocupação do solo urbano e rural; a conservação da natureza e o respeito aos valores das populações originais.
A experiência de 167 países na gestão de 1121 bens incluídos na lista do Patrimônio Mundial, bem como a de cada um deles na gestão de seu próprio Patrimônio Cultural, precisam ser valorados e replicados de forma igualitária. O mapa mundi de distribuição dos bens Patrimônio Mundial, evidencia a relação do desenvolvimento econômico e social, com preservação do Patrimônio Cultural, ao exibir a concentração de bens na Europa, além de uma visão patrimonial eurocêntrica. Em oposição vemos que na lista de bens em situação de perigo, a maioria se concentra na África. Em matéria recente, a BBC apontou seis sítios patrimônio da humanidade que estão sendo atingidos por mudanças climáticas no continente africano, que vão da poluição atmosférica a elevação do nível dos oceanos e destruição de manguezais, entre outras causas (14). Assim, fica claro que ao adotarmos os princípios do desenvolvimento sustentável, nosso compromisso passa a ser não apenas o da preservação e salvaguarda, mas o da elevação dos padrões educacionais, da renda e do emprego, enfim, dos indicadores socioeconômicos em níveis recomendados pela ONU e suas agências (15).
Para que possamos atingir esse patamar, empreitada sabidamente árdua há que se estreitar e intensificar a cooperação internacional norte/sul e sul/sul, não apenas com assistência técnica, mas também com investimentos intergovernamentais e privados, com efetiva transferência de renda. Simultaneamente, a ampliação do círculo de agentes e atores institucionais e sociais é tarefa indispensável. Ao trabalho de organizações especializadas, técnicos e pesquisadores, é necessária a adesão e incorporação dos governos nacionais e locais, de organizações não governamentais e da população em geral, especialmente aquela que interage territorialmente com os sítios e monumentos, ou é protagonista de ações e manifestações da dimensão imaterial. Estas estão em muitos casos suscetíveis as mudanças econômicas e sociais, que modificam substancialmente seu cotidiano e em decorrência seu contexto cultural.
A preservação dinâmica do patrimônio cultural pode ser um importante “capital social” para a promoção de empregos e renda. Milhares de cidades e regiões ao longo do planeta que se utilizam desse legado, tem sido exitosas e obtido elevados padrões de desenvolvimento. Algumas, na atualidade são mesmo obrigadas a restringir o fluxo de visitantes para evitar que as atividades turísticas sejam predatórias. Infelizmente, a atual pandemia em decorrência da restrição de viagens de caráter local e internacional, tem determinado uma depressão econômica e elevados índices de desemprego.
Em suma, a gestão do patrimônio cultural, independentemente de seu nível de reconhecimento – se mundial, regional, nacional ou local – só rompe seu isolamento e se harmoniza com o real sentido de desenvolvimento sustentável, se fizer parte da pauta e do esforço de planejamento governamental e das ações do poder público e da iniciativa privada. Cada vez mais, a dimensão cultural deverá se incorporar às outras dimensões do desenvolvimento, como a social, a ambiental e a econômica, relegando ao passado as soluções parciais, incapazes de proporcionar alternativas para uma realidade complexa e dialética. O Icomos, na qualidade de órgão assessor da Unesco na preservação do patrimônio mundial, referência permanente para instituições públicas e privadas, deve imprimir às suas instâncias de pesquisa e deliberação, uma dinâmica que agregue áreas temáticas afins, como por exemplo os comitês de economia, mudanças climáticas e de desenvolvimento sustentável. A compreensão das relações entre as atividades econômicas que impactam a natureza e são determinantes para as mudanças climáticas é fundamental para a definição de estratégias e alternativas para o enfrentamento de uma questão que envolve o futuro do planeta em duas ou três décadas. A atual pandemia é um alerta que não pode ser ignorado. Eric Hobsbawn um dos maiores historiadores e intelectuais a se debruçar sobre os acontecimentos e processos a partir da revolução industrial, no epílogo de seu livro A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991), assim se manifesta de maneira contundente:
“Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até esse ponto e – se os leitores partilham da tese deste livro – por quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. “E o preço do fracasso, ou seja, uma alternativa para uma mudança da sociedade é a escuridão” (16).
notas
1
CABRAL, Uberlância. Desemprego na pandemia atinge maior patamar da série na 4ª semana de agosto. Brasília, Agência IBGE, 18 set 2020 <https://bit.ly/3wN5hi3>.
2
SACHS, Jeffrey. A era do desenvolvimento sustentável. Lisboa, Conjuntura Actual, 2017. Do mesmo autor, ver: SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro, Garamond, 2002; SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável sustentado. Rio de Janeiro, Garamond, 2004.
3
Jared Diamond examina exemplos da insensatez humana com relação aos seus recursos naturais que acabam levando sociedades ao colapso. DIAMOND, Jared. Colapso. Rio de Janeiro, Record, 2005.
4
THOREAU, Henry D. Walden ou a vida nos bosques. São Paulo, Edipro, 2018.
5
ENGELS, Friedrich. El problema de la vivenda y de las grandes ciudades. Barcelona, Gustavo Gili, 1974, p. 95.
6
Trechos do Relatório Brundtland citados em: NAÇOES UNIDAS BRASIL. A ONU e o meio ambiente <https://bit.ly/3c27iPO>.
7
ALVES, José Eustáquio Diniz. A revisão 2019 das projeções populacionais da ONU para o século XXI. Juiz de Fora, Laboratório de Demografia e Estudos Populacionais UFJF, 18 jun. 2019 <https://bit.ly/3uF5lyV>.
8
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo. Companhia das Letras, 2010, p. 25.
9
Sobre o tema, ver: TORELLY, Luiz Philippe (Org.). Patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável. Brasília, Iphan, 2012.
10
FURTADO, Rosa Freire D’Aguiar (Org.) Celso Furtado e a dimensão cultural do desenvolvimento. Rio de Janeiro, E-papers, 2013.
11
FURTADO, Celso. O capitalismo global. São Paulo, Paz e Terra, 2000, p. 69. Do mesmo autor, ver: FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Rio de Janeiro, Contraponto, 2012; FURTADO, Celso. Em busca de um novo modelo. São Paulo, Paz e Terra, 2002.
12
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora de lugar. Ao vencedor as batatas. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000.
13
FURTADO, Celso. O capitalismo global (op. cit.), p. 70.
14
UCHOA, Pablo. Mudanças climáticas: 6 patrimônios culturais da África sob ameaça. Rio de Janeiro, G1, 04 out. 2020 <https://glo.bo/3fTSMe1>.
15
Sobre o tema, ver: VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro, Garamond, 2005.
16
HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 562.
sobre o autor
Luiz Philippe Torelly é arquiteto e urbanista graduado pela Universidade de Brasília. Especialista em Desenvolvimento Urbano e Patrimônio Cultural. É autor de Patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável e Memória e patrimônio: crônicas e outros escritos.