“Para o artista, toda limitação é estimulante”
João Guimarães Rosa, entrevista à TV alemã, 1962
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A arquitetura é uma arte, mas o arquiteto é hoje – ao contrário do que ocorria até o século 19 – um profissional liberal como os outros. Assim, o arquiteto atua em um espaço restrito de possibilidades projetuais. Longe de ser livre, sem amarras ou condicionantes, a atividade profissional do arquiteto-urbanista aparece cercada de restrições que conformam projeto e plano. Restrições financeiras do contratante, restrições do próprio lote ou da gleba (dimensões, posição, geologia), restrições de tempo, do programa apresentado etc. O ótimo é inimigo do bom. O melhor projeto, em cada caso, se achará no espaço de interseção daqueles vários campos de restrições, que se sobrepõem uns aos outros formando um núcleo de excelência, que deve ser sempre buscado.
Portanto, o projeto mais adequado, em cada caso, será aquele que atenda todas aquelas restrições – inclusive as restrições legais impostas ao uso e ocupação do lote em nome do interesse público – e mesmo assim chegue em um resultado esteticamente “eloquente”. Como disse Lúcio Costa em texto muito conhecido, além da intenção plástica, “a arquitetura depende, necessariamente, da época da sua ocorrência, do meio físico e social a que pertence, da técnica decorrente dos materiais empregados e, finalmente, dos objetivos e dos recursos financeiros disponíveis para a realização da obra, ou seja, do programa proposto” (1). Faz, então, a afirmação essencial: “a arquitetura é, antes de mais nada, construção” (2). E este ato de construir, de lançar no solo a edificação, de ocupá-lo, é disciplinado e regrado por múltiplas normas jurídicas com a finalidade de compatibilizar-se o interesse do proprietário com o interesse coletivo.
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Tratando do direito no urbanismo, o jurista, político socialista e cineasta argentino Alcides Greca (1889-1956) escreve em lição antiga, mas muito atual:
“As concepções do urbanista somente podem realizar-se dentro das normas jurídicas e possibilidades financeiras que regem a vida dos Estados e, por conseqüência, dos municípios. Os planos mais belos e ousados não são factíveis quando se afastam da realidade. A fantasia pode levar a muito longe um urbanista, dotado de elevado temperamento artístico, porém o direito assinala o caminho e as finanças os recursos para atingir a meta. Como na imortal dupla de Cervantes, o maravilhoso, servido desta vez pelas artes e pelas ciências exatas, enche de formosos sonhos a mente do novo Quixote, mas a dura realidade do direito e das rendas públicas atuam como outro Sancho, pondo fim a seus ímpetos inovadores” (3).
O mesmo vale para o arquiteto em face do contratante particular de projeto edilício uma vez que o Direito vai regular a distribuição dos espaços internos do edifício (Direito da construção com áreas mínimas, pé direito etc.), as relações da edificação com a vizinhança (Direito de vizinhança) e, por fim, com a própria cidade (Direito Urbanístico). Sem o respeito a tais imposições, o projeto não obterá licença e, portanto, não poderá ser levantado fazendo com que os eventuais honorários pagos tenham até de ser devolvidos. Afinal, a obrigação assumida pelo arquiteto é de resultado (e não de meios, como a do médico, que não tem de salvar o paciente), ou seja, ele tem de chegar a um resultado útil e eficaz, obtendo as aprovações devidas.
Lecionando disciplinas jurídicas há anos na graduação em Arquitetura e Urbanismo da FCT/Unesp, não poucas vezes tive que – qual Sancho Pança - afirmar que o direito não permitia a solução proposta para desagrado e até desapontamento dos ouvintes. Por exemplo, a edificação às margens de uma ferrovia, a ocupação de área particular sem indenização, a extrapolação de índices urbanísticos acarretando excesso edilício etc. Mas esta é a criatividade exigida do arquiteto-urbanista: saber extrair a melhor solução para o caso dentro das restrições existentes; conceber e desenhar o projeto ótimo considerando todas as limitações impostas, fazendo boa arquitetura. Para isso ele deve ser formado na Universidade.
Afinal, na arte – e em todas as artes –, a criatividade não basta. Um profissional da Arquitetura e Urbanismo que não trabalhe dentro daquelas limitações, considerando-as e respeitando-as, não terá condições de atuar no mercado. Talvez não seja nem mesmo arquiteto, mas só um bacharel. Vou tratar aqui de apenas uma limitação, que é a jurídica, na formação do arquiteto.
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Presentes, como disciplinas específicas em poucas graduações de Arquitetura, é preciso que se entenda do que tratam o Direito Urbanístico e o Direito da Arquitetura. São disciplinas fundamentais na formação profissional. O Direito da Arquitetura é um direito profissional e, portanto, vai estudar aspectos legais do exercício da profissão de arquiteto – é o arquiteto diante da profissão liberal que escolheu, que lhe implica direitos e responsabilidades. Já o Direito Urbanístico (4) foi sistematizado na Europa, há cerca de um século, a partir das reflexões feitas nos cursos de Arquitetura e Urbanismo, para enfocar as relações entre projeto edilício (público ou privado) e plano urbanístico (público). Ou entre a vinculação do espaço, definida publicamente, e o aproveitamento do solo pelo proprietário. Numa fórmula muito conhecida, trata-se da “face jurídica do urbanismo”, vazada em normas de diferentes níveis de governo que, em conjunto, formam ramo jurídico público muito pouco estudado e sistematizado (ficando, no mais das vezes, não obstante sua importância social, condenado ao limbo).
De modo mais analítico, o Direito Urbanístico será, em suma, o “conjunto de normas jurídicas reguladoras dos processos de ordenação do território e sua transformação física por intermédio da urbanização e da edificação”, segundo Ramón Parada (5).
Entenda-se, pois, do que tratam, exemplificativamente, aqueles ramos jurídicos com notória especificidade:
Direito Urbanístico: planejamento urbano; aproveitamento urbanístico do solo (uso, ocupação e parcelamento); licenças e autorizações etc.
Direito da Arquitetura: contratos, direitos autorais, sistema de fiscalização (CAU), ética, responsabilidades, crimes de arquitetura etc.
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Isto posto cabe constatar que é terrível ver como as graduações em Arquitetura e Urbanismo, no Brasil, descuram das preocupações jurídicas ou legais, o que se pode ver pela ausência nominal do Direito Urbanístico e do Direito profissional da Arquitetura na maioria das grades. Aqui há duas situações.
Há disciplinas jurídicas que aparecem muitas vezes com designações e propósitos equivocados: na Unesp Bauru, graduação pública paulista, há a disciplina “Legislação Urbana” com 30 h/a para tratar de planejamento urbano, parcelamento do solo, acessibilidade e habitação de interesse social. Como se fosse possível tratar disso tudo em 30 h/a, para além da mera informação rápida e rasteira, sem qualquer possibilidade temporal de discussão. Além disso, o nome é por completo inadequado porque remete, genericamente, ao “urbano” quando é certo que há normas aplicáveis ao urbano que não interessam, em absoluto, ao arquiteto como as que disciplinam a locação de imóveis urbanos ou o próprio trabalho urbano (em face do rural).
De outro lado, há casos piores nos quais a disciplina legal específica sequer aparece nominalmente na grade. Isto ocorre na FAU USP, a demonstrar que mesmo cursos maduros e consolidados podem apresentam problemas sérios. Talvez a matéria jurídica se distribua, difusamente, em diferentes disciplinas da grade da FAU, o que é de todo inadequado em primeiro lugar porque vai ser ministrada por arquitetos, que não têm formação na área (6). Expõem, imagino, a lei que, no nível local sobretudo, é via de regra confusa e de baixa qualidade. Ora, Direito e lei absolutamente não se confundem e o termo “legislação” só indica um conjunto de normas. O Direito não é o texto frio da lei – como somente leigos poderiam pensar –, mas interpretação, conceitos, princípios etc., que organizam os comandos legais num todo pretensamente coerente. O Direito é ciência de sistematização, insista-se, o que exige algo que está muito além da lei.
Ademais disso, a lei muda, altera-se com o tempo, o que nem sempre é acompanhado por aqueles que não são operadores do Direito, que podem continuar insistindo em questões superadas e vencidas – até mesmo em instituições revogadas. Há um bom exemplo: em 2017 foi criado no Brasil o loteamento de acesso controlado (que substituiu o antigo “loteamento fechado”, com perfil diverso), o condomínio de lotes e o direito de laje, figuras que impactam decisivamente o fazer arquitetônico muito embora, ao que parece, as escolas não se tenham dado conta disso. Ainda se fala, e não poucas vezes, da praga do “loteamento fechado” quando o discurso deveria ser outro...
É curioso ver que consta na grade da FAU USP, como disciplina optativa, uma “Metodologia na elaboração de planos diretores municipais”. Se plano é documento técnico – elaborado mediante necessária participação popular (7) – que une metas e meios, cabe perguntar: quanto às metas, como estudar esta metodologia sem saber, antes, quais são as competências urbanísticas do Município, como expressas, em norma aberta, na Constituição Federal? E quanto aos meios, como tratar do tema sem examinar antes, detalhadamente, os instrumentos urbanísticos previstos no nosso Direito e que são listados (mais de trinta), de modo incompleto, no art. 4º do Estatuto da Cidade? Parece, de fato, uma temeridade, a não ser que se fique no plano das generalidades.
E mais curioso ainda é saber que na imensa grade da FAU USP aparece, também como optativa, “Arquitetura e cinema”, oferecida desde 2015. Cabe perguntar, de modo até ingênuo: “o que será mais importante ao aluno: conhecer e estudar as imposições legais ao seu exercício profissional ou analisar as relações entre Arquitetura e Cinema? Projetar sobre uma paisagem fílmica, da qual se desconhece qualquer condicionante real (porque o mundo do cinema é ficcional), constituiria exercício projetual válido?” A resposta a essas perguntas passa por outra, anterior: “formar arquitetos para fazer o quê?” Se a resposta for: formar arquitetos para serem artistas plásticos, críticos de arte ou historiadores de arte (que são finalidades plenamente legítimas), então, com certeza, o conhecimento jurídico será de pouca valia. Agora, se a resposta for outra: formar arquitetos para atuar, com responsabilidade, no mercado profissional, concebendo e executando projetos que transformem de modo harmonioso o meio urbano – o conhecimento jurídico será fundamental, inafastável e incontornável: será uma verdadeira conditio sine qua non (8).
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Nesse sentido, penso que se aplica perfeitamente ao arquiteto (e ao arquiteto no Brasil, hoje) aquilo que em livro clássico, publicado em 1966, disse Bruno Munari. O livro foi traduzido por A arte como ofício (Arte come mestiere) e nele o autor afirma de forma realista que o artista-estrela (“artista-divo”) precisa descer do pedestal e entender sua função social. Deve-se demolir o mito – ou a aura – do arquiteto como diletante (um “diletante de ambientes”, como diria Ribeiro Couto), ou seja, alguém distante dos problemas da vida real porque vive numa realidade paralela, imaginada ou sonhada.
E Munari acrescenta: “É preciso que o artista abandone qualquer espécie de romantismo e se torne um homem ativo entre os outros homens, informado sobre as técnicas atuais, sobre os materiais, e sobre seus métodos de trabalho e que, sem abandonar o seu inato senso estético, responda com humildade e competência às demandas que os próximos lhes possam fazer” (9). Embora dirigido ao designer, a recomendação mostra-se perfeitamente aplicável ao profissional da arquitetura.
“Fabricante” de obras, o arquiteto é, afinal, um profissional liberal como os demais (advogado, médico, engenheiro, etc.), embasando sua atividade no art. 5º/XIII da Constituição Federal. Exerce um ofício que não é livre porque exige: a) formação acadêmica; b) registro na corporação profissional, o que significa estar submetido a regras de conduta, tanto éticas quanto técnicas quanto legais.
E, portanto, tal como os outros profissionais, dispõe apenas de autonomia de ação, o que não significa liberdade absoluta, que não têm. Nenhum profissional liberal tem. Autonomia é a capacidade de agir dentro de um círculo pré-estabelecido de limitações. O arquiteto (e, digo, o arquiteto que projeta) tem seu campo de autodeterminação estabelecido pela lei, pelas normas profissionais, pela ética, pelo estado da arte da sua profissão. Ele não é livre para projetar o que entenda por bem sob pena de não ter projeto algum levantado, permanecendo todos somente naquele mundo imaginário das abstrações.
Desde 1933, data da primeira regulamentação da profissão no Brasil, a figura do arquiteto vista como puro “artista” (tal qual um pintor ou escultor, por exemplo), como “gênio incompreendido” ou como “visionário” – à la Étienne-Louis Boullée (1728-1799) – não tem mais nenhum sentido ou cabimento: ele só pode fazer aquilo que as normas legais e técnicas lhe autorizem. O arquiteto não se coloca tal como um pintor diante da tela porque a cidade, diferentemente, constitui uma complexa e densa teia de relações sociais que precisam ser consideradas, em cada projeto. Não é uma tabula rasa. Quando se diz que a cidade é um texto, isto é apenas uma metáfora de que se valem autores importantes como Walter Benjamin e Roland Barthes. E se a cidade é um texto, o arquiteto tem que entender sua sintaxe.
Mesmo a cenografia – e as demais arquiteturas de obras efêmeras como quiosques ou feiras, instalações com caráter transitório – têm de obedecer às normas técnicas de segurança, além das normas profissionais (com RRT), o que as aproxima da disciplina legal das obras permanentes, “de pedra e cal”, lançadas sobre o solo.
Discutindo as relações entre poesia e pensamento abstrato, conta Paul Valéry que um dia Degas – pintor que às vezes fazia versos – disse a Mallarmé: “Sua profissão é infernal. Não consigo fazer o que quero e, no entanto, estou cheio de ideias...” E Mallarmé lhe respondeu: “Absolutamente não é com ideias, meu caro Degas, que se fazem os versos. É com palavras” (10). Da mesma forma, a arquitetura é feita, não somente com ideias, mas com ideias que, no mundo real, movimentam os materiais empregados para consecução do projeto, palpáveis e impalpáveis, tais como sol, sombra, luz, superfícies, volumes, cores, vegetação, bambu, madeira, pedra etc. Como diz Tobias Barreto, a cidade tem “ossos de pedra e cal” enquanto em suas veias corre o fluído da liberdade (À vista do Recife, 1862), onde está a criação. Estas coisas têm de andar juntas.
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Nada obstante a notória importância do tema, um rápido levantamento das disciplinas jurídicas ou legais nas matrizes curriculares das graduações públicas em Arquitetura e Urbanismo no Estado de São Paulo, mostra bem como há total indefinição acerca de um modelo adequado. Assim, temos:
FAU USP: não há nenhuma disciplina jurídica específica na grade mas índices urbanísticos, por exemplo, é tema tratado em “Planejamento urbano: Introdução” (11);
IAU São Carlos USP: “Arquitetura e urbanismo, ética e sociedade”, 75 h/a, obrigatória;
Unesp Bauru: “Legislação urbana”, 30 h/a, obrigatória; e “Ética e legislação profissional”, 30h/a, obrigatória;
Unesp Prudente: “Direito Urbanístico”, 60h/a, obrigatória; e “Arquitetura e ética na sociedade”, 60h/a, obrigatória;
Unicamp: não há disciplina específica, mas no programa da disciplina “Metodologia de projeto XI: sistemas arquitetônicos”, aparece o tópico “legislação, ética e prática profissional” misturado com temas como “conceitos e teorias da arquitetura contemporânea”.
Esse levantamento rápido – porque não ingressou nos programas e que é provisório porque as grades são modificadas no transcorrer do tempo – mostra que o Direito da Arquitetura (com diversos nomes) é mais freqüente do que o Direito Urbanístico nas graduações brasileiras. O Direito da Arquitetura, que inclui o tratamento da questão contratual e ética, aparece em três graduações, enquanto o Direito Urbanístico em apenas duas (as da Unesp, mesmo assim com a carga horária diminuta em Bauru, como vimos). De outro lado, o tema da legislação profissional pode aparecer perdido e deslocado, como na Unicamp, dentro de sistemas arquitetônicos (!).
Vejamos outros cursos. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a grade indica três disciplinas jurídicas, todas optativas e com 30 h/a: “Legislação edilícia”, “Legislação ambiental” e “Legislação urbana”. Esta última tem programa ainda mais abrangente que a disciplina de nome similar da Unesp Bauru porque inclui: “Os Regulamentos-Leis de parcelamento da Terra, zoneamento, edificações e construções e de licenciamento e fiscalização. O tombamento e a preservação histórica. A administração municipal, seus princípios e deveres. O orçamento municipal”. Tudo isso em 30h/a (e cabe observar a impropriedade, a atecnia absoluta: “regulamentos-leis”, o que seria isso?).
Pois há coisa pior. Na Universidade Federal de Minas Gerais, há uma disciplina optativa chamada “Legislação urbana e ambiental”, com 30 h/a, que se propõe, simplesmente, a fazer uma “avaliação crítica da legislação urbanística e ambiental nos níveis municipais, estaduais e federais” (sic). Ora, não se avalia senão aquilo que se conhece. Portanto, a questão é saber se possível sequer conhecer as normas jurídicas urbanísticas e ambientais dos três níveis de governo em 30 h/a, o que parece claramente, inequivocamente, impossível, perdendo a disciplina todo o sentido.
Já na Universidade Federal de Santa Maria, em outro extremo, há quatro disciplinas, todas obrigatórias, que tratam com exclusividade ou não de matéria legal. No entanto, haverá notória sobreposição de temas. São elas: “Sociedade e direito da cidade” – 45 h/a; “Legislação e normas” – 30 h/a; “Atuação profissional” – 30 h/a e ainda os instrumentos do Estatuto da Cidade são estudados em “Planejamento municipal” – 75 h/a. Nesse caso, além do sombreamento, uma disciplina chamada genericamente de “Legislação e normas” não indica com clareza qual é seu conteúdo real - que é, no caso, a legislação urbanística, ambiental e edilícia, além das normas técnicas. Da mesma forma, “Atuação profissional” (?!) não parece designação correta para cuidar da regulamentação profissional (Direito da Arquitetura).
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde não há Direito Urbanístico, aparecem na grade duas disciplinas chamadas “Legislação e exercício profissional na Arquitetura”, ambas com 30 h/a, uma obrigatória e outra – intitulada “Tópicos especiais em legislação e exercício profissional” – optativa (não seria mais conveniente uma disciplina só com 60 h/a?). Considerando o universo dos cursos privados, há muitos outros nomes de disciplinas jurídicas como “Ética profissional e legislação” (aqui o “profissional” qualifica a ética), “Ética e legislação profissional” (aqui, melhor, o “profissional” qualifica a legislação), “Legislação e prática profissional”, “Legislação aplicada à Arquitetura”, envolvendo tanto a legislação urbanística quanto a profissional etc.
Os problemas de forma e de conteúdo, de fato, são muitos e decorrem da inexistência de um modelo a ser replicado pelas graduações, devendo ser fortemente rejeitado o modelo digamos “difuso” da FAU USP – o pior de todos nesta questão específica – pelos motivos acima apontados, a saber: falta de visão sistêmica do fenômeno jurídico e falta de docentes com formação na área. Dele derivaria (falo no condicional) uma visão de criação arquitetônica sem qualquer limitação, o que não existe no mundo real.
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Na apresentação da 3ª edição do livro O arquiteto e a lei – elementos de direito da arquitetura (12), propus que a matéria jurídica fosse distribuída em quatro semestres, nas graduações em Arquitetura. Indo do geral para o particular, em um primeiro período haveria o Direito Urbanístico – cuidando das relações do edifício com a cidade –; no segundo, Direito de vizinhança – estudando as relações da ocupação do solo com os vizinhos, preocupação antiga que já está em Vitruvius (13) –; no terceiro, Direito de construir – analisando o código de obras (como o do Rio de Janeiro, Código de Obras Simplificado, de 2019) e as normas técnicas da construção –; e no quarto, o Direito da Arquitetura. Penso que o futuro arquiteto só teria a ganhar se tivesse o panorama geral das normas legais e técnicas assim descortinado, o que contribuiria muito para o eixo principal do curso que é a aprendizagem do projeto.
E ainda se poderia pensar em disciplinas obrigatórias, de um semestre, que analisassem normas de planejamento fundamentais como são os planos diretores. O Plano Diretor Estratégico de São Paulo, por exemplo (Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014), seria tema relevante para estudo aprofundado e integrado da política urbana paulistana. Isto seria importante não só para o Município de São Paulo, mas para todos os municípios paulistas e mesmo outros porquanto ele faz escolhas e institui instrumentos urbanísticos que poderiam ser multiplicados pelo Brasil. Assim também operações urbanas consorciadas específicas, que exigem plano particularizado aprovado por lei (art. 33 do Estatuto da Cidade).
No entanto, as graduações ainda não descobriram as potencialidades desses “estudos de caso” (à moda da Universidade americana), que ultrapassam aspectos meramente teóricos e permitem a análise da efetividade transformadora das medidas tomadas. Lembre-se que, segundo o art. 33/§ 1º do Estatuto, as operações urbanas visam “alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental”. No núcleo de conhecimentos profissionais, o estudo verticalizado de uma delas (a do Porto Maravilha, no Rio, por exemplo, criada pela Lei Complementar municipal nº 101/09) permitiria que se verificasse o que foi proposto, os instrumentos previstos, os recursos, e, depois, o que foi alcançado de fato, ou seja, se a operação foi exitosa ou não.
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Embora tema indispensável (o que de Vitruvius até Guadet se reconhece), constata-se que o quadro do conhecimento jurídico nas graduações em Arquitetura, no Brasil, é grave e preocupante, porque, sendo falho, impacta negativamente a formação. Nada obstante, apesar de os alunos não estudarem adequadamente as imposições jurídicas à sua atividade profissional na graduação, isto será deles cobrado posteriormente, no exercício profissional, porquanto a lei do CAU, de 2010, qualifica como infração disciplinar o fato de deixar o arquiteto de “observar as normas legais e técnicas pertinentes na execução de atividades de arquitetura e urbanismo” (art. 18/IX). Quando a lei diz normais legais quer indicar norma jurídica válida e eficaz, “cuja execução é garantida por sanção externa e institucionalizada” (Norberto Bobbio) – o que pressupõe um complexo harmônico de normas.
Assim, do ponto de vista da sanção, em 2019, o CAU/SP cancelou o registro profissional de arquiteta que violou os incisos IV (“delegar a quem não seja arquiteto e urbanista a execução de atividade privativa de arquiteto e urbanista”) e X (“ser desidioso na execução do trabalho contratado”) do mesmo dispositivo legal (art. 18), que fixa algumas infrações disciplinares apuradas e punidas pela corporação. Desde a criação do órgão, foi o segundo caso de cancelamento do registro – pena mais grave que o conselho pode aplicar – apenas no CAU/SP.
No exercício profissional, o arquiteto terá de observar normas legais que não estudou, que desconhece, que lhe são até, eventualmente, estranhas – apesar de serem balizas essenciais ao seu ofício. Daí porque florescem escritórios que se dedicam a colocar projetos arquitetônicos dentro da lei, ajustando, adaptando, conformando projetos alheios, o que significa uma capitis deminutio para qualquer profissional que tem, por presunção, o dever de competência. Além disso, nestes casos, o resultado será, possivelmente, criação integrada numa coautoria entre o arquiteto original e aquele que fez as adaptações devidas, necessárias para obtenção da licença. Ou seja, nem os direitos autorais exclusivos sobre a obra o arquiteto que concebeu o projeto em desconformidade com a lei terá.
Portanto, em total contradição, a matéria do Direito Urbanístico e do Direito da Arquitetura não é tratada na graduação – ou é pouco tratada ou tratada de forma assistemática durante a formação – mas depois certamente será exigida do futuro profissional sob pena de falta disciplinar. Como entender isso? Como compreender essa ausência do Direito nas matrizes da Arquitetura, em disciplinas específicas que lhes deem sentido e sistematicidade? Talvez a melhor explicação esteja mesmo com Alcides Greca, antes citado: o Direito é Sancho Pança e, para o Quixote, é melhor, mais confortável, achar que os moinhos de vento são gigantes a serem batidos... Diante do tombo do cavaleiro, diz Sancho, em cena clássica: “Valha-me Deus! Eu não disse a vossa mercê que olhasse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e só o podia ignorar quem tivesse outros na cabeça?” (14).
notas
1
COSTA, Lúcio. Considerações sobre a arte contemporânea. Registro de uma vivência. 2ª edição. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 246. O texto “Considerações sobre a arte contemporânea” apareceu originalmente como opúsculo da série Os cadernos de cultura, do Ministério da Educação e Saúde, em 1952.
2
“Considerações sobre a arte contemporânea” em Registro de uma vivência, p. 246. Esta última frase completa diz: “Arquitetura é, antes de mais nada, construção; mas construção concebida com o propósito primordial de ordenar o espaço para determinada finalidade e visando a determinada intenção”.
3
GRECA, Alcides. Derecho y ciência de la Administracion Municipal. Santa Fé, Imprenta de la Universidad, 1937, p. 70.
4
A origem do Direito Urbanístico, bem como do planejamento urbano, liga-se à devastação das cidades europeias pela Primeira e Segunda Guerras Mundiais e posterior necessidade de reconstrução delas, com a reordenação dos espaços habitáveis.
5
PARADA, Ramón. Derecho Urbanístico General, de 2007. Apud CASTILHO, José Roberto Fernandes. Disciplina urbanística da propriedade – o lote e seu destino. 3ª edição. São Paulo, Pillares, 2010, p. 22. Nesse livro, indico outras definições valiosas.
6
E nem se diga que o aluno poderia fazer a disciplina na Faculdade de Direito da USP, quando oferecida. Isto não é solução porque é totalmente diferente ministrar disciplina jurídica para quem já está imerso no mundo das normas e para quem não está. A estratégia docente tem de ser totalmente diversa para que haja algum aproveitamento.
7
Ainda recentemente, em setembro de 2019, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo decretou a inconstitucionalidade de leis urbanísticas de Osasco exatamente por falta de estudos técnicos e participação popular (ADI 2101166-80-2019.8.26.0000).
8
As Diretrizes Curriculares Nacionais do MEC, para a Arquitetura (Resolução CNE/CES nº 2/10) dizem exatamente, no art. 3º/§ 2º, que ”o curso deverá estabelecer ações pedagógicas visando ao desenvolvimento de condutas e atitudes com responsabilidade técnica e social e terá por princípios: I - a qualidade de vida dos habitantes dos assentamentos humanos e a qualidade material do ambiente construído e sua durabilidade; II - o uso da tecnologia em respeito às necessidades sociais, culturais, estéticas e econômicas das comunidades; III - o equilíbrio ecológico e o desenvolvimento sustentável do ambiente natural e construído; IV - a valorização e a preservação da arquitetura, do urbanismo e da paisagem como patrimônio e responsabilidade coletiva”.
9
MUNARI, Bruno. A arte como ofício. Tradução Wanda Ramos. 4ª edição. Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 19. Original: MUNARI, Bruno. Arte come mestieri. Bari, Laterza, 1966.
10
VALÉRY, Paul. Variedades. Organização de João Alexandre Barbosa. Tradução de Maiza Martins Siqueira. São Paulo, Iluminuras, 2007, p. 199-200.
11
No material de classe dessa disciplina – disponível na internet – aparecem conceitos muito estranhos. Assim, coeficiente de aproveitamento é índice definido como “a quantidade de vezes que área do terreno foi, ou pode ser, construída”. Ora, como todo o Direito Urbanístico sabe (e está na Lei nº 6766/79, art. 2º/§ 4º), em terreno não se pode edificar. Só se edifica em terreno transformado em lote. De outro modo, a definição refere a situações distintas, a saber: CA utilizado e CA potencial.
12
CASTILHO, José Roberto Fernandes. O arquiteto e a lei – elementos de direito da arquitetura. 3ª edição. São Paulo, Pillares, 2017.
13
Sobre o tema, ver: CASTILHO, José Roberto Fernandes. O arquiteto e as regras do direito em Vitrúvio. In CASTILHO, José Roberto Fernandes. A cidade entre o direito e a história. São Paulo, Pillares, 2019, p. 13-43.
14
CERVANTES, Miguel de. D. Quixote I. Tradução e notas de Sérgio Molina. São Paulo, Editora 34, 2017.
sobre o autor
José Roberto Fernandes Castilho é professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura na FCT/Unesp.