Paulo Freire é de longe o educador mais importante do século 20. Com quase meio milhão de citações (1), é o único pensador do Sul global entre os cinquenta mais influentes da história recente. Seu livro mais conhecido – Pedagogia do oprimido – é o terceiro mais citado em todas as ciências sociais (2). Nas palavras de Cornel West,
“Paulo Freire é o intelectual orgânico exemplar do nosso tempo. Se Antonio Gramsci não tivesse cunhado esse termo, teríamos que inventá-lo para descrever o caráter revolucionário e o conteúdo moral da obra e da vida de Paulo Freire. É seguro dizer que sua obra clássica, Pedagogia do oprimido, foi um evento histórico mundial para teóricos e ativistas contra-hegemônicos em busca de novas formas de vincular a teoria social às narrativas da liberdade humana” (3).
É de se imaginar que a monumental obra de Paulo Freire tenha influenciado o campo do conhecimento da arquitetura e do urbanismo, afinal de contas somos em sua maioria desenhadores e educadores ao mesmo tempo. Mas não é exatamente o caso. Uma busca detalhada por Paulo Freire nos periódicos de arquitetura revela que o nosso campo não responde a sua obra na mesma magnitude que as humanidades em geral (4).
Mais intrigante ainda é a ausência de análises da dimensão espacial na obra do próprio Freire. São poucos e muito recentes os trabalhos que estudam as teorias pedagógicas de Freire pela variável do espaço (5), algo que vou elaborar mais adiante neste ensaio. Me arrisco a propor que Paulo Freire não tem entre os arquitetos e urbanistas a mesma penetração que alcançou em outros campos do conhecimento porque sua principal contribuição para o mundo das ideias passa por relativizar a hegemonia da abstração através da valorização da concretude, algo que fere de morte o mito do arquiteto moderno manipulador de espaços abstratos. Nas palavras do próprio Freire,
“A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens” (6).
A hegemonia da abstração
A abstração está tão enraizada em nossa história que antecede nossa espécie. O ancestral Homo erectus provavelmente merece o crédito por separar a ideia de fogo das queimadas acidentais de arbustos, desencadeando a supremacia dos hominídeos, tanto em termos de ferramenta bélica quanto em termos de expansão cerebral em decorrência da quebra de moléculas de proteína e energia antes da ingestão. Mais recentemente, Jean Piaget nos ensinou que a abstração se desenvolve nos processos de aprendizagem na primeira infância. Bebês humanos desenvolvem a capacidade de separar conceitos mentais dos fenômenos experimentados ainda no colo, antes mesmo de aprender a andar. No entanto, abstração também significa redução: selecionar algumas ideias a partir da experiência confusa do mundo para operar com mais eficiência. Michael Pollan nos lembra que este tipo de simplificação (plantar apenas uma espécie, procriar apenas com os iguais, manipular apenas algumas variáveis) não existe na natureza, que sempre opera com diversidade e complexidade (7). A história nos ensina que a abstração – e mais especificamente a abstração espacial – é uma das principais raízes da desigualdade social, racismo, esgotamento de recursos naturais e mudanças climáticas. O processo de modernização desencadeado pelos eventos de 1492 (a Reconquista espanhola e a primeira viagem de Colombo através do Atlântico) contou com graus cada vez mais elevados de abstração espacial (8).
Nos primeiros anos do século, Wilhem Worringer definiu a abstração como o oposto da empatia, no contexto do surgimento da arte de vanguarda. Para Worringer, ou você usa os processos superiores de abstração ou desenvolve empatia. Ecoando os escritos de René Descartes de três séculos antes, Worringer enfatizou que as emoções e o cuidado não pertencem aos domínios do conhecimento, justificando a exclusão destes e a hegemonia da abstração. Em resposta o que eu chamo de overdose de abstração, o século 20 nos deu duas críticas poderosas e alguns antídotos possíveis: Henry Lefebvre e Paulo Freire. Lefebvre era exatamente vinte anos mais velho que Freire, mas ambos elaboraram suas mais brilhantes teses nos anos 1960 e 1970 (9). Lefebvre questionou nossa confiança excessiva no espaço abstrato, discutindo as camadas ocultas do espaço vivido e do espaço representacional. Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido, explica como o sucesso de seu processo de alfabetização se baseou na substituição de palavras urbanas por exemplos concretos do cotidiano que os camponeses brasileiros não conheciam. Conhecimento relacional, exemplos concretos, espaços vividos e empatia constituem uma forma poderosa de avançar nosso relacionamento uns com os outros e com outros seres terrestres.
Apesar da centralidade de Lefebvre nas teorias de urbanismo, as disciplinas de design demoraram meio século para abraçar de verdade os processos relacionais e continuam a confiar na abstração espacial como um procedimento todo-poderoso, e há um bom motivo para isso. A ascensão da abstração é compartilhada com a ascensão da arquitetura como disciplina e qualquer sugestão de calibrar conceitos abstratos e não abstratos é percebida como uma ameaça. Abstração, como diz a definição, é a qualidade de lidar com ideias em vez de eventos, ou algo que existe apenas como ideia. A questão-chave aqui é quais fatos foram elevados ao reino das ideias e quais fatos foram descartados. A modernidade foi criada quando abandonamos qualquer conhecimento relacional e adotamos uma compreensão superficial (daquilo que ocorre na superfície) do espaço em que o homem (branco europeu) é removido e todos os seres não-humanos, não-brancos são reduzidos a objetos a serem traçados, e consequentemente controlados. Patricia Seed (10), Ricardo Padron (11) e Doreen Massey (12) nos explicam como se deu este processo cartográfico de abandono dos itinerários (onde o navegador está inserido na representação) para mapas onde o navegador se coloca fora do que é representado. A abstração espacial tem sido uma ferramenta de colonial idade e desigualdade desde que o sistema-mundo tomou forma no século 16, e a arquitetura está profundamente enraizada nesse processo. Usamos a abstração para separar nossos alunos de projeto de tudo que eles sabiam antes e envolvê-los em um novo conjunto de valores que chamamos arquitetônicos. Uma vez desvinculados de quaisquer relações espaciais anteriores, nossa pedagogia de atelier os ensina a dominar a abstração, quase sempre descartando qualquer contexto ou conteúdo do lugar para manipular apenas a geometria. Mapas não registram a vida da comunidade. Topografias não contam a história da terra. Planos e seções são narrativas arbitrárias que impõem comportamentos às pessoas. Esses é o poder da arquitetura como ferramenta de transformação que poderia ser usada para imaginar um mundo melhor, mas 95% das vezes é usada para reforçar o status quo. Se quisermos mitigar os desdobramentos geradores de desigualdade espacial embutidos no desenho, para continuar nos movendo em direção a processos mais inclusivos, precisamos entender a história da relação entre design e exclusão. As raízes históricas da abstração estão entrelaçadas com as raízes históricas do projeto arquitetônico (13).
O legado de Freire: vacina contra a epidemia de abstração
Publicadas pela primeira vez em 1968, as ideias de Freire foram desenvolvidas após duas décadas de prática no ensino fundamental e médio, primeiro ensinando português no ensino médio, depois como secretário de educação desenvolvendo programas para enfrentar a horrível taxa de 72% de analfabetismo em adultos de Pernambuco nos anos 1950. A resposta de Freire ao analfabetismo foi criar uma série de exercícios de leitura que usassem palavras escolhidas na rotina dos trabalhadores, como matiz, vaca, cana-de-açúcar, arroz e feijão. Refinando o método em sucessivas tentativas em todo o estado de Pernambuco, Freire alcançou notável sucesso ensinando trezentos trabalhadores da cana a ler nos 45 dias disponíveis entre o final da colheita e o início do replantio. Forçado ao exílio pelo Golpe Militar de 1964, Freire escreveu a Pedagogia do oprimido enquanto trabalhava no Chile para a Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas – FAO.
No início dos anos 1960 Paulo Freire observou que a chave para alfabetizar trabalhadores rurais em Pernambuco era utilizar conceitos e palavras do cotidiano deles. Termos como automóvel, conta bancária e hospital eram tão abstratos para os cortadores de cana que não funcionavam na hora de ensiná-los relacionar sons e sílabas, passos fundamentais no processo de leitura e escrita. Quando os educadores utilizavam palavras com enxada e boi, os lavradores conseguiam rapidamente quebrar os sons/sílabas para em seguida reorganizá-los na forma de boiada e xaxado, por exemplo. A genialidade de Freire reside em utilizar a concretude do contexto ao redor do aluno como base para construir as abstrações de sons/sílabas. Freire ancorou a abstração no cotidiano, e ao fazê-lo, empoderou os sujeitos a partir da sua própria realidade.
Neste ponto vale ressaltar a dimensão espacial da teoria freriana. Quanto mais próximo (espacialmente) da realidade do aluno, melhor a atuação do conceito/termo no processo de alfabetização. A proximidade e a concretude servem assim de vacina contra a hegemonia da abstração: pequenos fragmentos da realidade cotidiana inseridos no processo para que o corpo do aluno desenvolva familiaridade com sons, letras e ideias. Annie Murphy Paul nos lembra que:
“O cérebro humano não está bem equipado para lembrar uma massa de informações abstratas. Mas está perfeitamente sintonizado para relembrar detalhes associados a lugares que conhece – e com base nesse domínio natural do espaço físico, podemos mais do que dobrar nossa capacidade efetiva de memória. O pensamento abstrato pode ser difícil por si só, mas felizmente pode muitas vezes ser mapeado no pensamento espacial de uma forma ou de outra. Dessa forma, o pensamento espacial pode substituir e estruturar o pensamento abstrato” (14).
Não é difícil transferir esta experiência para os canteiros de obra e perceber que os pedreiros sabem construir, tanto que construíram, todos eles, suas próprias casas. Mas diante da autoridade abstrata do desenho, percebem-se incapazes e ignorantes. Como escreveu Freire na página 54 de Pedagogia do oprimido:
“De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua incapacidade. Falam de si como os que não sabem e do ‘doutor’ como o que sabe e a quem devem escutar” (15).
A arquitetura, como a conhecemos, nasceu da ideia de Leon Batista Alberti de design como algo separado da construção. Nas línguas latinas, o conceito de design é expresso pelas palavras proyecto, projeto, progetto, do latim projetare, que significa lançar para a frente. Antes de Alberti, a arquitetura selecionava o melhor design entre as experiências do passado. Depois de Alberti, a arquitetura se tornou prospectiva, aponta como devemos construir no futuro. Os conceitos intelectuais agora importavam mais do que a experiência de construção.
O canteiro de obras anterior a modernidade era oficina experiencial em que havia, é claro, uma hierarquia, mas que estimulava a troca de conhecimentos entre clientes, operários e mestres construtores, que logo seriam chamados de arquitetos. A crescente especialização dos processos de modernização criou uma separação drástica entre as partes do processo de construção, reforçando a narrativa que os arquitetos trabalham com a mente e todos os demais trabalham com o corpo, quebrando a possibilidade do próprio espaço em construção servir de referência para o pensamento crítico/relacional dos que ali trabalham.
É minha hipótese, neste contexto, que o engajamento com a realidade e os objetivos de empoderamento da Pedagogia do oprimido de Freire são potenciais antídotos para a hegemonia da abstração que rege o mundo, e especialmente o mundo do design, desde René Descartes (16).
Contexto dos anos 1960 na América Latina
Por quatorze anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, as nações latino-americanas se esforçaram para encontrar um lugar na nova ordem mundial. A proximidade dos Estados Unidos tornava mais difícil qualquer tentativa de desenvolvimento independente e a região parecia destinada a exportar matéria-prima e sofrer a instabilidade política das “repúblicas das bananas”. Em Santiago do Chile, a Comissão das Nações Unidas para o Desenvolvimento Econômico da América Latina – Cepal, trabalhava desde 1948 em análises e propostas para escapar desta dependência, conforme teorizado primeiro por Quijano (17) e quase duas décadas depois por Faletto e Cardoso. Em Bogotá, Colômbia, uma iniciativa voltada para o desenvolvimento habitacional foi criada em 1952 pela Organização dos Estados Americanos, o Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento Urbano – Cinva. O Cinva já trabalhava com autoajuda e construção incremental em 1958. Este cenário mudaria radicalmente no réveillon de 1959, quando o ditador Fulgencio Batista fugiu de La Habana, aceitando a vitória dos revolucionários cubanos liderados por Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara. O governo revolucionário cubano seria logo empurrado para os braços da União Soviética, puxando toda a região sob o manto da Guerra Fria. Em resposta, o governo de John Kennedy estabeleceu a Aliança para o Progresso, aumentando os gastos em consultoria e empréstimos de infraestrutura para aliviar os problemas urbanos da América Latina (18). Neste contexto, John Turner chegou a Lima, Peru em 1957, escreveu seu primeiro relatório sobre habitação em 1959 e publicou seu primeiro artigo acadêmico em 1963. Em seus oito anos no Peru, Turner deixou de ser um jovem arquiteto trabalhando para uma grande burocracia internacional no mundo em desenvolvimento para se tornar ser a principal referência em processos de autoajuda e construção incremental. Conforme discutido por Richard Harris (19), nenhum dos conceitos pelos quais Turner se tornou famoso foram suas criações. Algumas foram propostas por Jacob Crane (as favelas são a solução, não o problema), outras por Charles Stokes (as favelas da esperança). Muitos aspectos de sua análise de “barriadas” e “pueblos jovenes” no Peru foram propostos por José Matos Mar e Eduardo Neira. Todos eles estavam de acordo com o livro clássico de Jane Jacobs, Death and Life of Great American Cities de 1961 (20), no sentido de que a tabula-rasa modernista estava trazendo mais problemas que soluções. John Turner se tornou a referência mundial porque soube traduzir ideias econômicas e sociológicas em diagramas e ilustrações que ressoavam com arquitetos, e por ter as conexões para publicá-los em periódicos influentes. Um exemplo disso é o fato de os arquitetos citarem sempre a revista Architectural Design de 1963, editada por Turner e intitulada “Dwelling resources in South America”, não a longa lista de relatórios e documentos de políticas públicas escritos por ele e tantos outros.
No Brasil, Sergio Ferro, Rodrigo Lefevre e Flávio Império criaram o grupo Arquitetura Nova no início dos anos 1960, defendendo que arquitetos deveriam estar presentes no canteiro de obras, trabalhando ao lado de operários para superar a alienação trazida pela especialização capitalista (21). Seu trabalho foi interrompido pelo Golpe Militar de 1964 no Brasil que levou Lefevre e Ferro ao exílio, mas sua influência ainda é forte na São Paulo do século 21. No México, um grupo de professores e alunos lançou a revista Autogobierno em 1972, propondo mudar a forma como praticamos e ensinamos arquitetura em torno de seis pontos: conhecimento total; praxis; arquitetura para as pessoas; pedagogia do diálogo; autogoverno; e autocrítica. Durante oito anos realizaram ateliers nos quais a hierarquia entre professor/aluno e entre arquiteto/operário da construção era contestada (22). No Uruguai, a lei habitacional de 1968 criou um fundo de apoio a iniciativas de autoajuda, suor-equidade e em 1972 foi criada a Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda de Ayuda Mutua – Fucvam para coordenar cooperativas habitacionais em todo o país, construindo milhares de unidades para a classe trabalhadora uruguaia com base em um efetivo projeto participativo e processo de construção (23). Todos os itens acima desafiavam os métodos tradicionais de construção, mas ainda preservavam a maioria das decisões de projeto para o arquiteto treinado, algo que vai de encontro a tese principal da Pedagogia do oprimido quando Freire defende que “não seria possível à educação problematizadora realizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como também não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo” (24).
A permanência da abstração como forma de controle e exclusão
Percebe-se que qualquer iniciativa de design participativo, seja no Norte com Giancarlo De Carlo ou Raplh Erskine (25), ou no Sul com Arquitetura Nova ou Autogobierno, foi empurrada para as margens da historiografia da arquitetura e rotulada como radical, pois de fato ameaçou a ficção do poder do arquiteto para moldar o ambiente construído. O cerne da Pedagogia do oprimido de Freire é a educação problematizadora, onde as pessoas desenvolvem seu poder de perceber criticamente a forma de estar no mundo, passando a ver seu contexto não como uma realidade estática, mas como uma realidade em processo de transformação. O poder de transformar o mundo ao seu redor é a chave para ir além da mera alfabetização para uma práxis na qual as pessoas assumem seus destinos em suas próprias mãos. Neste sentido, o espaço contemporâneo mais freiriano é justamente a periferia auto-construída das grandes cidades do Sul Global. Na pedagogia de Freire, a proposição de problemas é mais importante do que a solução de problemas e acontece por meio de um processo de codificação e decodificação da realidade. Freire discute o processo de codificação/decodificação em termos do desenvolvimento e da análise do que ele chama de "temas generativos". Em essência, esses são temas da vida que são gerados a partir de "dimensões significativas da realidade contextual de um indivíduo" (26). Importante notar que Freire não descarta a abstração, assim como não descartaria as vantagens da cidade desenhada como água potável, esgotamento sanitário, transporte público, entre tantas outras. Todas estas conquistas da modernidade são resultado de processos abstratos de concepção e desenho. A chave está em estimular o empoderamento dos sujeitos menos beneficiados (ou mais colonizados) pela modernização.
Voltando à nossa discussão da arquitetura como uma disciplina de desenho abstrato e desencarnado, a aplicação da Pedagogia do oprimido aos desafios do ambiente construído implica que as pessoas elaborem seus próprios programas de necessidade e tomem decisões sobre o que, onde e como construir. Esse processo participativo, quando implementado, empurra o arquiteto para fora da posição central que pensamos ter. Como escreveu Giancarlo de Carlo, “a participação destrói os privilégios misteriosos da especialização, desvenda o segredo profissional, desnuda a incompetência, multiplica responsabilidades e as converte do privado em social” (27). Processos alternativos nos quais o arquiteto se afasta para desempenhar o papel de consultor ou cultivador foram sistematicamente marginalizados até muito recentemente (28). Em vez disso, as publicações de arquitetura valorizam apenas as experiências nas quais o arquiteto retém o poder de decisão, mesmo quando a participação, a autoajuda e a construção incremental estão no centro do processo.
No estado natal de Freire, Pernambuco, o arquiteto Acácio Gil Borsoi trabalhou na favela de Cajueiro Seco, desenvolvendo um sistema de painéis em madeira e barro que os trabalhadores podiam construir e montar por si próprios (29). O projeto de Borsoi foi uma tentativa de usar peças pré-fabricadas leves para melhorar a qualidade da construção com baixo custo e flexibilidade. Eles construíram algumas casas-piloto para mostrar a viabilidade da ideia e estavam prontos para entrar em produção quando o golpe militar de 1964 arquivou o projeto para sempre. Na década de 1980, o arquiteto João Filgueiras Lima tenta algo semelhante em concreto armado com sua Fábrica de Componentes, construindo diversos equipamentos como pontos de ônibus e passarelas de pedestres, mas nenhuma habitação além de alguns protótipos (30). A classe trabalhadora brasileira sente-se mais confortável usando o esquema DOM-INO de colunas e lajes com enchimento de tijolos de cerâmica, como qualquer um pode ver nas favelas contemporâneas (31). Diante da rápida urbanização e do consequente crescimento orgânico de favelas sem infraestrutura, os arquitetos latino-americanos continuaram experimentando os processos participativos como resposta possível.
Entre 2016 e 2018 um projeto de pesquisa liderado pela professora Ana Montoya na Colômbia – com este que vos escreve e Felipe Hernandez como consultores – documentou 138 estruturas construídas na América Latina no século 21 usando processos participativos tanto em seu projeto como em sua construção ou ambos. Alguns dos edifícios são bem conhecidos, como a Escuela Nueva Esperanza do Al Borde e os Espacios de Paz do Estudio Pico em Caracas, mas alguns são quase completamente desconhecidos como o Centro de Formação Campo Cidade para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, do coletivo Usina em São Paulo ou a Casa Ensamble Chacarrá desenhado pela Ruta 4 em Pereyra, Colômbia. Esta é, obviamente, uma lista provisória, montada para um projeto de pesquisa com prazos específicos e limitações de pessoal. O número de edifícios concluídos com processos participativos de design e construção na América Latina pode chegar aos milhares. Seria interessante verificar quantos destes projetos seguem a Pedagogia do oprimido de Freire, no sentido de que todo o poder de decisão fica com as pessoas e os arquitetos trabalham como consultores para o empreendimento. O Rural Studio de Samuel Mockbee no Alabama, por exemplo, é criticado por manter seus clientes em uma posição passiva durante todo o processo (32).
Os textos que me acompanham neste número especial de Vitruvius demonstram a força do pensamento freiriano passados cinquenta anos de suas primeiras publicações, e a marginalização destes conceitos no ensino de arquitetura e urbanismo. No momento em que finalmente propomos questões de gênero, raça, decolonização e desenvolvimento como forma de avaliar criticamente nossa arquitetura moderna e contemporânea, a obra de Freire se mostra fundamental. Entender um equilíbrio possível entre abstração e concretude que sirva para o empoderamento daqueles que sempre fizeram arquitetura com as próprias mãos me parece tarefa central. A obra de Paulo Freire é um antídoto ao excesso de abstração que gera uma arquitetura alienada e “bancária”, para usar expressão dele próprio.
notas
1
De acordo com o Google Scholar, acessado em 4 de agosto de 2021, Paulo Freire tem 481.906 citações. Para ter uma idéia do que significa este número, Noam Chomsky está um pouco atrás com 460 mil e Thedor Adorno tem pouco menos da metade com 230 mil citações.
2
GREEN, Elliott. What are the most-cited publications in the social sciences (according to Google Scholar)? LSE Impact Blog, Londres, 12 mai. 2016 <https://bit.ly/3DN3Zbq>.
3
WEST, Cornel. Preface. LEONARD, Peter; MCLAREN, Peter (org.). Paulo Freire: A Critical Encounter. London/New York, Routledge, 1992.
4
Em Vitruvius encontrei um texto que remete diretamente a Paulo Freire: RETTO JR., Adalberto; DAIBEM, Ana Maria Lombardi. Reeducar a esperança. Aproximações entre o legado de Paulo Freire e o processo de construção da cidade contemporânea. Arquitextos, São Paulo, ano 20, n. 236.00, Vitruvius, jan. 2020 <https://bit.ly/38N4DHt>; no Google Scholar aparecem os trabalhos de Paulo Rheingantz como "Por uma arquitetura da autonomia: bases para renovar a pedagogia do atelier de projeto de arquitetura". Revista Arqtexto, Propar UFRGS, Porto Alegre, 2005.
5
ZUCHETTI, Dinora Tereza; SEVERO, José Leonardo Rolim de Lima. As dimensões tempo e espaço em práticas de educação integral: implicações curriculares a partir do diálogo entre Paulo Freire e Darcy Ribeiro. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, v. 15, n. 2, Araraquara, 2020, p. 560–577; CRUZ, Claudete Robalos da. Paulo Freire e Milton Santos: fundamentos para uma pedagogia do espaço. Pelotas, PPGE UFPEL, 2014; MORALES, Patricia Pérez. Espaço-tempo e ancestralidade na educação ameríndia: desdobramentos de Paulo Freire na província de Chimborazo, Equador. Tese de doutorado. São Paulo, FE USP, 2008.
6
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Série Ecumenismo e Humanismo, v. 16. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, p. 81.
7
POLLAN, Michael. The Omnivore’s Dilemma: A Natural History of Four Meals. New York, Penguin Press, 2006.
8
PADRON, Ricardo. The Spacious Word: Cartography, Literature, and Empire in Early Modern Spain. Chicago, University of Chicago Press, 2004; MASSEY, Doreen B. For Space. London /Thousand Oaks, Sage, 2005; LARA, Fernando Luiz. American Mirror: the occupation of the “new world” and the rise of architecture as we know it. The Plan Journal, v. 5, n. 1, Bolonha, 2020, p. 71-88; LARA, Fernando Luiz. Abstraction is a Privilege. Platform Space, June 7, 2021 <https://bit.ly/3tnRo9M>.
9
FREIRE, Paulo. Op. cit.; LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford, Blackwell, 1974.
10
SEED, Patricia. Ceremonies of Possession in Europe’s Conquest of the New World, 1492-1640. Cambridge/New York, Cambridge University Press, 1995.
11
PADRON, Ricardo. Op. cit.
12
MASSEY, Doreen B. Op. cit.
13
LARA, Fernando Luiz. Abstraction is a Privilege (op. cit.).
14
PAUL, Annie Murphy. The Extended Mind: The Power of Thinking Outside the Brain. Boston, Mariner Books, 2021, p. 143.
15
FREIRE, Paulo. Op. cit., p. 54.
16
LARA, Fernando Luiz. Abstraction is a Privilege (op. cit.).
17
VEGLIÒ, Simone. Postcolonizing Planetary Urbanization: Aníbal Quijano and an Alternative Genealogy of the Urban. International Journal of Urban and Regional Research, 45/4, 2021.
18
ZOUMANAS, Thomas. Containing Castro. Promoting homeownership in Peru, 1956–61. Diplomatic History, n. 10, 1986, p. 161-181; GYGER, Helen. Improvised Cities: Architecture, Urbanization, and Innovation in Peru. Pittsburg, University of Pittsburgh Press, 2019.
19
HARRIS, Richard. A double irony: the originality and influence of John FC Turner. Habitat International, v. 27, n. 2, 2003, p. 245-269.
20
JACOBS, Jane. Death and Life of Great American Cities. New York, Random House, 1961.
21
KOURY, Ana Paula. Grupo Arquitetura Nova. Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro. Coleção Olhar Arquitetônico, v. 1. São Paulo, Romano Guerra/Edusp, 2003.
22
MONTES, J. Víctor Arias. Arquitectura autogobierno 40 anos. Archipiélago, n. 76, 2012, p. 58-60.
23
GONZÁLEZ, Gustavo; NAHOUM, Benjamín. Escritos sobre los sin tierra Urbanos: causas, propuestas y luchas populares, Durazno, Ediciones Trilce, 2011.
24
FREIRE, Paulo. Op. cit., p. 78.
25
DE CARLO, Giancarlo. An Architecture of Participation. Perspecta, n. 17, 1980, p. 74-79; VALL, Natasha. Social engineering and participation in Anglo-Swedish housing 1945–1976: Ralph Erskine's vernacular plan. Planning Perspectives, v. 28, n. 2, 2013, p. 223-245.
26
AU, Wayne. Epistemology of the Oppressed: The Dialectics of Paulo Freire's Theory of Knowledge. Journal for Critical Education Policy Studies, v. 5, n. 2 , 2007.
27
DE CARLO, Giancarlo. Op. cit., p. 79.
28
GROAT, Linda. The Architect as Artist or Scientist? A modest proposal for the Architect-as-Cultivator. Culture-meaning-architecture: Critical reflections on the work of Amos Rapoport. London, Routledge, 2000, p. 127-150.
29
INGLEZ DE SOUZA, Diego Beja. Reconstruindo Cajueiro Seco: arquitetura, política social e cultura popular em Pernambuco (1960-64). Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2010.
30
MARQUES, André. Lelé: Dialogues with Neutra and Prouvé. São Paulo/Austin, Romano Guerra/Nhamerica Press LLC, 2020.
31
LARA, Fernando Luiz. Modernism made vernacular: The Brazilian case. Journal of Architectural Education, v. 63, n. 1, 2009, p. 41-50.
32
DEL REAL, Patricio. “Ye Shall Receive” The Rural Studio and the Gift of Architecture. Journal of Architectural Education, v. 62, n. 4, 2009, p. 122-126.
sobre o autor
Fernando Luiz Lara é o Roessner Professor of Architecture na Universidade do Texas em Austin, onde atuou como Presidente do Centro Brasil do Instituto Lozano Long de Estudos Latino-Americanos (2012-2015) e como diretor do Programa de Doutorado em Arquitetura (2018_). Seus livros mais recentes são Excepcionalidad del Modernismo Brasileño (Romano Guerra/Nhamerica, 2019) e Arquitetura Moderna na América Latina (Texas Press, 2015, com Luis Carranza). Também é editor da série Pensamentos da América Latina com Romano Guerra/Nhamerica, com seis títulos publicados desde 2017.