Projeto de um acampamento de obras: uma utopia
Projeto de um acampamento de obras: uma utopia, permaneceu inédito até recentemente (1). O texto de autoria de Rodrigo Lefèvre foi apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo Arquitetura e Urbanismo de São Paulo – FAU USP em 1981 para a obtenção do título de mestre sob orientação de Nestor Goulart Reis Filho. Nesse texto Rodrigo Lefèvre ensaia a organização de um acampamento de obras que seria ao mesmo tempo uma escola de arquitetura e construção. Fundamenta-se na obra da antropóloga Eunice Durham e do educador Paulo Freire para formalizar uma proposta inovadora para a produção do espaço urbano nas regiões metropolitanas. O Acampamento Escola foi idealizado para operar em uma sociedade em transformação, com o objetivo-utopia de inverter o sentido político da inclusão dos migrantes no processo de aglomeração metropolitana e acumulação capitalista. O presente artigo discute essa operação realizada por Rodrigo Lefèvre (1938-1984) e fundamentada nos autores Eunice Durham e Paulo Freire. Demonstra como esses autores estão presentes na caracterização do migrante, de sua subjetividade e de sua cultura elementos centrais na pedagogia do Acampamento Escola e nas sua utopia de transformação social.
Lefèvre apresenta a era de transição que pretende contribuir, a problemática dos migrantes e a metodologia do Acampamento de Obras no segundo capítulo de Projeto de um acampamento de obras: uma utopia. Entre todos esses elementos é a metodologia que constitui a contribuição original e inovadora do autor. A metodologia foi sintetizada por um fluxograma de funcionamento do modelo proposto. Nesse fluxograma estão, os componentes e as etapas de funcionamento da nova estrutura social do Acampamento, bem como as suas funções e o papel dos agentes envolvidos – o migrante, o técnico e o Estado. O Acampamento seria instalado inicialmente na Região Metropolitana de São Paulo, mas Rodrigo Lefèvre explorou a possibilidade que esse acampamento, ao lado do novo profissional, também pudesse percorrer o país e reproduzir a metodologia aprendida, propagando assim a pedagogia, influenciada por Eunice Durham e Paulo Freire, em outras regiões metropolitanas do país, instituídas no país pela legislação de 1974.
O Acampamento de Obras baseia-se na integração entre técnicos (arquitetos e engenheiros) e operários (trabalhadores da construção), procurando principalmente conhecer quem eram esses operários para desenvolver a pedagogia do Acampamento Escola. Lefévre busca eliminar a opressão inerente à relação entre arquitetos e trabalhadores da construção que predomina no canteiro de obras convencional.
Baseado em Eunice Durham, Rodrigo Lefèvre percebeu que a opressão cultural começa na cidade, onde os migrantes são forçados a abandonar seus hábitos rurais e adquirir hábitos urbanos. Na cidade são explorados e inferiorizados pela ausência de uma formação técnica e qualificada. As condições precárias de trabalho dos operários da construção justificam-se nesse ciclo ideológico de opressão cultural e social legitimada pelo valor da qualificação técnica e profissional.
Rodrigo Lefèvre discutirá essas questões técnicas, sociais e culturais implicadas na produção da arquitetura fundamentado em uma ampla revisão bibliográfica que ele realiza nos capítulos três e quatro da dissertação Projeto de um acampamento de obras: uma utopia. Entre essas referências encontra-se a obra de Paulo Freire que é o autor com mais obras citadas na dissertação de Lefèvre e também um dos autores mais citados no corpo do texto, ficando atrás apenas de Eunice Duran, cuja obra A caminho da cidade oferece a Lefèvre a decifração do seu personagem principal, o migrante empregado na construção civil (2).
A metodologia do Acampamento de Obras
Rodrigo Lefèvre analisou os estudos acerca da migração rural aos centros urbanos brasileiros baseado em autores que realizavam estudos na área da Sociologia e Antropologia Urbana durante a década de 1970. Parte dos autores citados por Lefèvre eram pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap e posteriormente do Centro de Estudos da Cultura Contemporânea – Cedec criado em 1976.
Logo na Introdução da dissertação de mestrado Lefèvre apresenta a magnitude do problema da migração para a cidade de São Paulo e a dificuldade do migrante em inserir-se no crescimento da cidade, iluminando principalmente questões a respeito da democracia, da cultura, e da qualidade de moradia e trabalho na Região Metropolitana de São Paulo. No capítulo seguinte, “Por que utopia?", ele apresenta seu modelo de sociedade principalmente naquilo que diz respeito ao Estado. Em sua concepção caberia ao Estado prover e subsidiar a estruturação e o estabelecimento de um modelo de transição social formalizado através de um Acampamento de Obras. No capítulo 2, o arquiteto apresenta seu fluxograma, que é como ele imagina o Acampamento de Obras (a sociedade de transição) e como ele seria implantado em etapas. Desde sua "entrada" que é a chegada do migrante na Região Metropolitana de São Paulo, a introdução à cidade, e como o migrante se tornaria parte da dinâmica social, estabelecendo uma relação de troca com os técnicos, arquitetos e engenheiros.
Existe uma maneira particular em como Lefèvre decide organizar os temas tratados neste trabalho. A ordem que escolhe para a narrativa é a de demonstrar o produto de sua reflexão que é a metodologia, apresentada logo no capítulo 2 – um fluxograma onde os blocos estabelecem o funcionamento da sociedade utópica proposta. Nos dois capítulos seguintes caracteriza os usuários do modelo através da revisão bibliográfica e finalmente conclui o texto com esquemas de casas em abóbadas realizadas em sua trajetória profissional.
O capítulo 3, "Processos de substituição; absorção e preservação da cultura do povo pela cultura de massa e cultura erudita", Rodrigo Lefèvre introduz pela primeira vez a autora Eunice Ribeiro Durham ao seu texto, citando-a no total de seis vezes; ou seja, seis mais que os demais autores mencionados neste capítulo apenas uma vez. Neste capítulo ele criticou a maneira como a cultura erudita anula a cultura do povo, oprimindo-a até que ela seja ou escondida ou aniquilada em função do modo de vida na cidade.
No capítulo 4, "Algumas características culturais dos migrantes", Rodrigo Lefèvre se propôs a identificar quem era a classe trabalhadora recém-chegada a São Paulo, baseou-se nos estudos da antropologia urbana e discutiu os resultados das pesquisas de Eunice Ribeiro Durham (1978), Michel Jules Thiébolt (1977) e Claudia Menezes (1976) sobre o movimento migratório campo-cidade (3).
Nos próximos capítulos, “Algumas características das atitudes dos técnicos” e “Algumas transformações na pedagogia”, o arquiteto retoma trabalhos anteriores (4). Rodrigo Lefèvre escreve o papel do técnico (arquitetos e engenheiros) na sociedade de transição. Para isso identifica e critica a prática profissional corrente e apresenta as práticas pedagógicas que poderiam transformar as relações sociais no Acampamento de Obras. É neste capítulo onde a obra de Paulo Freire é mais presente.
No capítulo 7, “O projeto de um acampamento de obras”, Lefèvre submeteu os desenhos de estruturas pré-fabricadas que desenvolveu, com base em sua obra construída e os utilizou como sistema construtivo adequado ao Acampamento de Obras. Estes desenhos, assim como o registro fotográfico realizado pelo próprio autor das residências que construiu na década de setenta são a parte mais citada da dissertação de Rodrigo Lefèvre, por autores que estudaram a sua contribuição como Pedro Fiori Arantes, Humberto Pio Guimarães e Miguel Antonio Buzzar (5).
A qualidade da arquitetura apresentada por Lefèvre no último capítulo de seu trabalho e a riqueza do material fotográfico no final do capítulo obliterou a importância da construção teórica e intelectual realizada por Lefèvre nos capítulos iniciais da dissertação.
A migração interpretada por Rodrigo Lefèvre
A dissertação inicia tratando da transformação da cidade de São Paulo e da região metropolitana em consequência do crescimento populacional causado pela migração interna. Essa nova realidade urbana do país foi objeto de muito debate entre especialmente entre arquitetos e urbanista desde o Seminário de Habitação e Reforma Urbana de 1963, do qual Rodrigo Lefèvre participou. Havia também muitas perguntas a serem respondidas a respeito das condições de moradia e de trabalho desta nova população recém ingressada na cidade, o que foi um importante objeto de estudo dos pesquisadores do Centro Brasileiro de Planejamento.
Rodrigo Lefèvre estava interessado em construir uma proposta para essas perguntas como arquiteto, assim, sob orientação de Nestor Goulart, formulou o Projeto de acampamento de obra: uma utopia. Extrapolando os limites das análises socioeconômicas e antropológicas dos estudos que estavam sendo realizados. O arquiteto criou uma dimensão sócio-espacial. Como seria o ingresso desses migrantes em uma dimensão utópica da cidade de São Paulo onde o modo de "produção não é o capitalista, utilizando a autogestão e a autoconstrução de suas casas e bairros como base de um processo de formação de aprendizado de algumas atividades profissionais, aquelas ligadas à construção"? (6).
“No estado de São Paulo a população aumentou em 3.600.000 migrantes nos últimos dez anos! e 40% dos municípios do estado diminuíram de população nesses mesmos dez anos, principalmente da região centro oeste! Isso nos dá uma ideia da magnitude do problema, que é a concentração de populações, antes dedicada à produção agrícola, nos grandes centros urbanos. De 1950 até 1980, a Região Metropolitana de São Paulo passou a abrigar de 29% para 50% da população de todo o estado: possuía, em 1950, perto de 3 milhões de pessoas e possui hoje pouco mais de 12 milhões. Ou seja, na Região Metropolitana de São Paulo foram construídas "três cidades"de uma população de 3 milhões de pessoas cada uma, nos últimos trinta anos! Pode-se fazer a pergunta: quem construiu essas "três cidades"? Pelo menos 90% delas foram construídas por populações de baixa renda, na grande maioria, migrantes que, por necessidade de se proteger da violência que tem sido a vida urbana, a vida de mercado de trabalho e a vida no trabalho, principalmente nestes últimos anos, têm procurado solução para seus problemas fora do sistema de produção geral, agindo por conta e risco próprios, sozinhas, isoladas, sem quase nenhum traço das características do homem, que é um ser social” (7).
Na introdução o arquiteto já se apoia em muitos dos teóricos que fundamentam o texto. Também apresenta as suas indagações a respeito da migração e expansão da cidade de São Paulo. Os primeiros autores citados são Ermínia Maricato, Gabriel Bolaffi e, Lúcio Kowarick, no debate sobre democratização:
“A construção de um projeto democrático (n.a. – que inclua projetos de soluções efetivas dos problemas gerais da sociedade, em especial das populações efetivas dos problemas gerais dos problemas gerais da sociedade, em especial das populações de mais baixa renda) implica numa prática política que aposte na capacidade das classes ainda subalternas em modelar seu destino histórico e que abra caminhos, necessariamente conflituosos, desbastados por processos de participação e reivindicação vigorosos e autônomos em relação aos centros de poder” (8).
O modelo de transição foi idealizado para a transição do capitalismo para o socialismo. Nesta proposta utópica o Governo do Estado de São Paulo subsidiaria a transformação social. No primeiro capítulo da tese, “Por que utopia?”, ele apresentou o que entendia como Utopia e como foi aplicada na sua proposta:
“A proposta, em termos sucintos, consiste em pensar no que poderá ser, numa época de transição para uma estrutura nova de sociedade, mais humana do que a de hoje, a montagem de uma espécie de escola, onde cerca de 2 mil migrantes, organizados de forma descrita no capítulo seguinte, possam vir a produzir, durante alguns meses, o seu local de moradia, casa e bairro, sendo que para essa produção o Estado contribui com terra, material de construção, abrigo provisório e alimentação, métodos pedagógicos de alfabetização e de formação profissional” (9).
O capítulo 2, “O modelo de uma produção numa época de transição” apresenta o modelo em forma de fluxograma da organização do Acampamento descrevendo os componentes do modelo e as suas relações. Nesse capítulo que Rodrigo Lefèvre aborda pela primeira vez o livro de Eunice R. Durham (10), A caminho da cidade:
“O seu problema fundamental (no livro) é analisar as transformações que devem ocorrer no comportamento e na cultura das populações envolvidas na expansão de um sistema que, se de um lado aumenta a pobreza e desagrega a base tradicional de existência das populações economicamente marginais, de outro incorpora porcentagens crescentes dessa mesma população como mão de obra necessária ao seu próprio desenvolvimento [...] O que nos interessa investigar é a integração de trabalhadores rurais em sistemas urbano-industriais, na medida em que esse movimento representa o abandono de estruturas tradicionais e a incorporação em um sistema complexo e diferenciado [...] A migração rural-urbana também pode ser considerada como um fenômeno de mudança sociocultural que envolve a transformação dos padrões de comportamento vigentes nas comunidades rurais de onde provêm os migrantes. Esses padrões representam uma forma particular de ajustamento a um contexto geográfico sociocultural determinado e precisam ser substituídos por outros, que permitam uma adaptação satisfatória às condições urbanas de vida” (11).
Ao demonstrar como a migração aconteceu em São Paulo nas décadas que antecederam a publicação de sua tese de mestrado, o arquiteto apresentou muitos dados estatísticos, mas na página 239 (12) apresenta dados do Sistema Estadual de Análise de Dados – Seade e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que retirou da matéria sobre o censo de 1980 de autoria de Rubens Vaz da Costa publicada na Folha de São Paulo em 1981. Seu interesse nesses dados é mostrar o desequilíbrio espacial da cidade de São Paulo.
Lefèvre destaca também um outro aspecto desse desequilíbrio espacial que é a riqueza cultural da população migrante. Usa o estudo de Durham, À Caminho da Cidade, ao qual agrega as obras de Michel Jules Thiébolt (13) e Claudia Menezes (14), para evidenciar a presença de uma cultura popular autêntica e assim embasar o seu posicionamento. A proposta prevê, portanto, a conscientização dos técnicos (arquitetos e engenheiros) e o resgate da contribuição das diferentes formas de cultura do povo presente nos migrantes em seu modelo de transição. A chave da transformação cultural para consolidar a transição demográfica em uma forma social específica pode ser compreendida pela contribuição da obra de Eunice R. Durham (15) mas será a pedagogia de Paulo Freire que dará a essa cultura do migrante uma funcionalidade no processo de transformação social. Nesse capítulo Lefèvre reproduz trechos de Ação cultural para a liberdade e outros escritos de Freire, que esclarecem o papel do educador na metodologia de Lefèvre. Reproduzimos abaixo:
“Na sua prática libertadora, o educador deve ‘morrer’ enquanto educador exclu-sivo do aluno a fim de ‘renascer’ como aluno de seu aluno. Simultaneamente deve propor ao aluno que ‘morra’ enquanto aluno exclusivo do educador, a fim de ‘renascer’ como educador de seu educador. Se trata de um perpétuo ir e vir, um movimento humilde e criador que se impõe ao educador e ao aluno” (16).
O que o arquiteto pretendeu ao incorporar a defesa da conscientização da cultura popular baseada em Paulo Freire dentro do Acampamento? Supomos que isso foi além do reconhecimento da cultura popular-povo. Rodrigo Lefèvre parecia decidido dentro da sua utopia criar a dinâmica de uma nova cultura, que ele desenvolveria e defenderia no capítulo 3, “Processos de substituição; absorção e preservação da cultura do povo pela cultura de massa e cultura erudita”. Neste capítulo entende-se que a única maneira de uma sociedade funcionar em equilíbrio seria quando não existisse uma cultura dominando outra; e sim, uma troca entre elas. Não à toa, o arquiteto estabelece dentro do fluxograma, momentos onde migrantes e técnicos (arquitetos e engenheiros) aprendem uns com os outros, outro conceito que Paulo Freire construiu em sua obra e que Lefèvre absorveu incorporando-o em sua metodologia.
Posicionando-se contra o processo de segregação espacial que circunscrevia a cultura do povo e dos migrantes em bairros afastados, no capítulo 4, Lefèvre observou as condições de moradia dos migrantes e resgatou as diferentes interpretações sociológicas sobre o capitalismo e antropológicas sobre a cultura popular, para fundamentar a sua análise.
“Mas, aquela participação de técnicos de grau superior no modelo de uma pr”odução tem algumas finalidades: a primeira é colocar em discussão dentro do modelo os elementos da cultura burguesa em confronto com os elementos da cultura do povo trazidos pelos migrantes, com vistas a um outro dos produtos pretendidos que é a reformação dos técnicos de grau superior em busca de um conhecimento, de uma ciência, de uma tecnologia mais correta da construção da nova sociedade, finalidade primeira desta época de transição pensada; em segundo lugar, colocar à disposição do modelo os conhecimentos da cultura burguesa que possam vir a tornar a produção (dos vários produtos) eficiente em função dos objetivos adotados pelos participantes no modelo” (17).
O Acampamento de Obra fundamenta-se no reconhecimento cultural dos trabalhadores da construção civil. A proposta de Lefèvre não parte do seu imaginário ou de suas experiências próprias como arquiteto, mas são uma contribuição intelectual, original e inovadora para a produção da arquitetura e da cidade, fundamentada teoricamente na literatura produzida por de arquitetos, antropólogos, sociólogos e educadores como veremos a seguir.
Os fundamentos teóricos da pedagogia do Acampamento de Obras
O livro A caminho da cidade foi a obra mais citada por Lefèvre em Projeto de um acampamento de obras: uma utopia. Lançado em 1973 pela antropóloga Eunice R. Durham na coleção Debates, o livro baseia-se na pesquisa realizada entre os anos de 1959 e 1960 para o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais coordenado por Darcy Ribeiro. A autora entrevistou cerca de mil de migrantes moradores da cidade de São Paulo provindos de diferentes regiões do país.
No livro, a autora esclarece que a sua intenção foi "investigar a integração de trabalhadores rurais em sistemas urbano-industriais”. A pesquisa realizada por Eunice buscou entender os hábitos desses trabalhadores rurais no contexto urbano e sua transformação quando, em suas palavras, abandonaram o Brasil rural em direção ao urbano. A autora esclarece que sua pesquisa permite elucidar o equívoco da existência de dois brasis – o "subdesenvolvido" e o "desenvolvido". Apresentando ambos os processos como partes integrantes de um mesmo sistema (18).
Eunice R. Durham preocupou-se em caracterizá-los a partir de entrevistas que mostravam como os migrantes se adaptaram a uma cultura de trabalho nova, principalmente ao serem confrontados com a dinâmica trabalhista e dos sindicatos. As entrevistas obedeceram parâmetros, como faixa etária e gênero dos entrevistados para que as informações pudessem ser comparadas. A autora manteve-se fiel ao que lhe foi relatado por esses entrevistados, traçando assim os seus perfis, os seus padrões de comportamento e os ciclos que compuseram a inserção dessa população rural na sociedade urbana.
Rodrigo Lefèvre mergulhou nessa caracterização cultural do migrante, baseado principalmente na contribuição de Durham e também de outros autores que estudaram e relataram identidade cultural dessa população. O modelo de produção de um bairro de migrantes que é o Acampamento de Obras fundamenta-se na caracterização cultural desses indivíduos e tornando-os sujeitos políticos de sua inserção em uma sociedade de transição.
Em 1980, quando Rodrigo Lefèvre escreveu sua dissertação de mestrado, ele já era um profissional com duas décadas de experiência e estava acostumado a lidar com a mão de obra que era formada por esses migrantes. O Acampamento de Obras construiu teoricamente uma dimensão operativa nova em relação a experiência pregressa de Rodrigo Lefèvre.
Os arquitetos que formavam o Grupo Arquitetura Nova (Rodrigo Lefèvre, Sérgio Ferro e Flávio Império) discutiam o papel do projeto de arquitetura na transformação do operário em uma ferramenta a mais dentro do canteiro de obras. Usados e descartados quando não fossem mais necessários, transformando-se em um objeto e não em alguém. A contribuição de Eunice R. Durham permite a Lefèvre resgatar uma dimensão cultural e subjetiva do operário no canteiro de obras nesse debate travado com seus pares, principalmente com Sérgio Ferro.
Essa dimensão cultural e subjetiva do migrante trabalhador da construção civil será estratégica para o passo seguinte em direção à pedagogia do Acampamento de Obras incorporando dessa vez a contribuição da pedagogia de Paulo Freire, que junto com Durham são as principais referências citadas no texto Projeto de um acampamento de obras: uma utopia.
Nos capítulos 3 e 4, Rodrigo Lefèvre cita Educação como prática da liberdade; Ação cultural para a liberdade e outros escritos e Conscientização, de Paulo Freire (19). Os conceitos de libertação e conscientização que orientam a obra de Freire estão presentes na metodologia de Lefèvre como os elementos ativos da transformação das relações sociais no canteiro de obras para a nova "sociedade" que o arquiteto propôs a descrever em sua dissertação. Com mais obras citadas, o educador tornou-se uma de suas referências principais como Sérgio Ferro apontou em entrevista (20).
A "liberdade" citada por Freire é aquela que se estabelece assim que o indivíduo se reconhece dentro da sociedade como parte dela. Se torna capaz de tomar decisões próprias e conscientes e sem a influência de um "opressor". O "oprimido" deixa de imitar o opressor e assim evita que um novo ciclo de opressão se inicie, criando uma sociedade livre. Uma vez que o "oprimido" deixa de ser neutralizado pelo processo de opressão, sua cultura é reconhecida e integrada em uma nova dinâmica social no Acampamento de Obras. O diálogo entre o migrante e os arquitetos e engenheiros acontece de forma horizontal como troca entre dois lados equivalentes, transformando por um lado a prática da construção civil e por outro lado a realidade urbana de São Paulo em direção à utopia de uma sociedade de transição.
Por conta da sua força física de trabalho, pouca educação formal e pelo fato de aceitar qualquer oportunidade que tiver, não importa as condições, o operário se submete a situações onde ele está no fim da cadeia, sendo explorado, utilizado como uma forma de "meio" para a construção. A sua intelectualidade e conhecimentos são descartados por não serem tidos como "formais" ou "acadêmicos" e seu trabalho é alienado, recebendo apenas ordens e as cumprindo sem as questionar já que tudo que conhecem não é "relevante"; sendo também excluídos de qualquer processo de projeto.
Esses operários, no entanto, chegarem na cidade de São Paulo como migrantes, aprendiam a produzir suas residências com as condições que tinham. Essas moradias informais produto da cultura de subsistência do migrante na cidade eram como ele, invisíveis ao poder público.
Lefèvre identificou o oprimido de Paulo Freire no canteiro de obras. Esse oprimido era o migrante de Durham. Ao atribuir um papel para a cultura do migrante no Acampamento de Obras, Lefèvre está propondo uma quebra do ciclo de opressão no canteiro de obras. Cria assim no trabalho realizado pelo migrante no Acampamento de Obras uma prática de liberdade.
notas
1
LEFÈVRE, Rodrigo Brotero. Projeto de um acampamento de obra: uma utopia. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 1981.
2
DURHAM, Eunice R. A caminho da cidade. Coleção Debates, 2ª edição. São Paulo, Perspectiva, 1978.
3
Idem, ibidem; THIÉBLOT, Marcel Jules. Rondônia: um folclore de luta. São Paulo, Secretária da Cultura, Ciência e Tecnologia, Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1977; MENEZES, Cláudia. A mudança: análise da ideologia de um grupo de migrantes. Rio de Janeiro/Brasília, Imago/Instituto Nacional do livro, 1976.
4
LEFÈVRE, Rodrigo Brotero. O arquiteto assalariado. Módulo, n. 66, Rio de Janeiro, set. 1981; LEFÈVRE, Rodrigo Brotero. Notas de um estudo sobre objetivos do ensino da arquitetura e meios para atingi-los em trabalho de projeto. São Paulo, FAU USP, 1977.
5
ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo, Editora 34, 2002; GUIMARÃES, Humberto Pio. Rodrigo Brotero Lefèvre: a construção da utopia. São Carlos, IAU USP, 2006; BUZZAR, Miguel Antonio. Rodrigo Brotero Lefèvre e a vanguarda da arquitetura no Brasil. São Paulo: Edição Sesc São Paulo, 2019.
6
LEFÈVRE, Rodrigo Brotero. Projeto de um acampamento de obra: uma utopia (op. cit.).
7
Idem, ibidem, p. 197-198; KOURY, Ana Paula (org.). Arquitetura moderna brasileira, uma crise em desenvolvimento. Textos de Rodrigo Lefèvre (1963-1981). São Paulo, Edusp/Fapesp, 2019.
8
KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. Apud LEFÈVRE, Rodrigo Brotero. Projeto de um acampamento de obra: uma utopia (op. cit.).
9
LEFÈVRE, Rodrigo Brotero. Projeto de um acampamento de obra: uma utopia (op. cit.)., p. 203.
10
Eunice Ribeiro Durham possui graduação em Ciências Sociais (1954), mestrado (1964) e doutorado (1967) em Ciência Social – Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, onde atualmente é professora titular. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Imigração Italiana, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino superior, universidade, avaliação, política educacional e América latina.
11
DURHAN, R. Eunice. Op. cit, p. 9.
12
KOURY, Ana Paula (org.). Op. cit.
13
Marcel Jules Thiéblot (1924 – ?) foi aluno de Rossini Tavares de Lima, na Escola de Folclore de São Paulo. Ele publicou livros bem documentados sobre folclore: Poaia, ipeca, ipecacuanha (Escola de Folclore, 1980, p. 19); Rondônia – um folclore de luta (Escola de Folclore, 1977); Os homens do sal no Brasil (Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1979). Segundo Rossini, Marcel Thiéblot, estudioso de nacionalidade francesa, tornou-se um dos maiores folcloristas do brasil. Cf. SOUSA, Rafael Vitor Barbosa. O Concurso Mário de Andrade de Monografias sobre o Folclore Nacional no panorama dos estudos folclóricos brasileiros (1946-1975). Dissertação de mestrado. São Paulo, IEB USP, 2016, p. 254.
14
Claudia Menezes possui pós-doutorado em Etnografia pelo Museu de Etnologia de Lisboa (1992), doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1985), mestrado em Antropologia Social pelo Museu Nacional (1972) e graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1968). Tem experiência na área de Antropologia e Ciência Política, atuando principalmente com os seguintes temas: museologia, etnologia indígena sul-americana, antropologia do direito, antropologia visual, meio-ambiente e desenvolvimento sustentável.
15
DURHAM, Eunice R. (op. cit.).
16
FREIRE, Paulo. O papel educativo das igrejas na América Latina. In FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1976.
17
LEFÈVRE, Rodrigo Brotero. Projeto de um acampamento de obra: uma utopia (op. cit.)., p. 250-251.
18
A crítica ao dualismo também presente na obra de Francisco de Oliveira, A crítica a razão dualista, foi citada apenas cinco vezes por Rodrigo Lefèvre. Ainda assim, quando autores discutem O acampamento de obras: uma utopia, tendem a potencializar esse autor mesmo quando comprovadamente outros estão mais presentes no texto do arquiteto (Durhan, Menezes, Thiebolt e Freire).
19
FREIRE, Paulo. Educação como prática da Liberdade. São Paulo, Paz e Terra, 1976; FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo, Cortez & Moraes, 1979.
20
FERRO, Sérgio. Depoimento a Ana Paula Koury (2006).
sobre as autoras
Ana Carolina Buim Azevedo Marques é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu, sob orientação da Profa. Dra. Ana Paula Koury e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes. Arquiteta e urbanista pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2017).
Ana Paula Koury é professora do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo (2008) do Mestrado Profissional em Engenharia Civil e dos curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas (2003) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie (2021). Pós doutora pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (2018).