Quando ingressei no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan, em 1983, além de Luís Saia (arquiteto que chefiou a repartição até o seu falecimento em 1975, e responsável pelas primeiras restaurações praticadas em São Paulo), outra pessoa constantemente lembrada era Hermann Graeser, o Germano, fotógrafo contratado em 1938 por Mário de Andrade.
Fui apresentado ao Germano através dessa fotografia da capela e convento jesuítico do Embú, feita em 1941, considerada a sua obra prima.
O objeto arquitetônico, consubstanciado nessa imagem, torna-se monumento nacional e expressão singular da arquitetura jesuítica colonial paulista pois apresenta elemento distintivo que as congêneres de Guararema e Itaquaquecetuba não possuíam: a torre. Essa foto está no Caderno de Obras do Monumento.
Aliás, eu quero já dizer aos alunos que pretendam atuar na área de restauração, que não deixem de ler os Cadernos de Obras feitos por Luís Saia. Entre as obras assim documentadas, vocês poderão observar em detalhes, os restauros do Sítio e Capela de Santo Antonio (em São Roque), da Capela Jesuítica de São Miguel, da Igreja e Mosteiro da Luz, do Sítio do Padre Ignácio (em Cotia), da Igreja e Convento franciscano de Itanhaém, entre outros restaurados nos primeiros anos de atuação do arquiteto à frente do Iphan de São Paulo. Tenho certeza que aprenderão muito. Vejam também as pastas dos monumentos, onde encontrarão mais fotos, levantamentos e documentos. E, se o interesse sobre restauro aumentar, leiam os artigos de Luís Saia, reunidos no livro Morada paulista e em outras publicações.
Como todos sabem, os órgãos de governo estão fechados, devido a pandemia de corona vírus. E eu precisando ilustrar essa comunicação procurei o meu ex-colega e amigo José Saia Neto, filho de Luís Saia, que me enviou essas fotos que vou apresentar a vocês das obras de restauração da Capela do Embu, desde a fase inicial de decapagem até o restauro propriamente dito, obra realizada entre 1939 e 1941.
Elas falam por si mesmas, e me poupa de explicar coisas que não é do meu perfeito domínio.
É importante lembrar que a restauração era novidade no país. Então Mário de Andrade resolveu noticiar no Suplemento d’O Estado de S. Paulo os restauros de duas capelas jesuíticas:
“Embu e São Miguel são obras já terminadas. Não é possível, numa simples notícia, descrever o enorme e delicadíssimo trabalho que implicam empreitadas como estas. O restaurador, além das pesquisas e da forte capacidade técnica, é obrigado a auscultar cada pedra, cada muro, cada reverso de caliça caída, para descobrir o segredo de um passado mais antigo, que a impiedade de reformas apenas utilitárias deformou. De fato, em São Miguel como em Embu, houve transformações muito grandes, só devidas a essa perquirição infatigável. Embu, graças a um documento descoberto num fundo de gaveta caipira, pôde recompor a sua torre. Perdeu aquele ar desconexo de chapéu de palha, que abobalhava a sua fachada, readquirindo uma graça, uma humildade macia, que o branco da cal e o azul intenso das janelas e portas ainda fazem mais encantadora” (1).
É muito bom contar com Mário de Andrade; ele escreve de um jeito que torna as coisas muito claras e encantadoramente convincentes.
Mesmo assim, eu me esforcei para entender o melhor que pude os trabalhos de restauração, tentando aproveitar a experiência e conhecimento dos restauradores formados por Luís Saia, entre os quais Antonio Luiz Dias de Andrade, que o substituiu após a sua morte na direção, e os arquitetos Antonio Gameiro e José Saia Neto.
Este último faleceu em 28 de junho último. Estava muito bem, feliz, pois encaminhava com os arquitetos Alberto Arruda, Jaime Calixto, Luís Magnani e Julio Moraes, os projetos de restauro do Sítio Mirim e do Convento franciscano de Itanhaém, e estava confiante de que seriam aprovados pelos órgãos de preservação. Uma semana antes de sua morte ele me mandou um e-mail com um trecho da introdução do projeto de Itanhaém onde menciona meu trabalho sobre o dito convento. Aconselhei-o a retirar meu nome para não atrapalhar na aprovação junto ao Iphan. Ele riu e reiterou o convite para irmos a Itanhaém — o que faríamos em breve.
Por que isso? Porque além de colegas de trabalho nos tornamos amigos. Dele me vali muito porque teve a paciência de discorrer sobre inúmeros aspectos do trabalho restaurativo e discutir comigo complexas questões acerca das investigações e soluções adotadas nos restauros. Foi com seus ensinamentos e com a sua orientação que me aventurei a guiar minhas pesquisas para os monumentos restaurados que passei a fazer também para subsidiar obras, de restauro ou de conservação (como as da igreja e convento franciscano e Matriz de Itanhaém, em 1992). Mas dediquei-me com afinco aos monumentos restaurados nos anos iniciais do órgão de preservação, dentre outros os Sítios do Padre Ignácio e o de Santo Antonio e Capela, assim também o da capela jesuítica do Embu — restauros que foram objeto da Crítica Acadêmica, tendo esta última questionado a configuração frontal reconstituída, especialmente a torre.
Acreditando que só a pesquisa historiográfica poderia esclarecer em definitivo essa questão, pus-me a pesquisar. O que era uma aventura que, de início, nada assegurava porque incerta; e se por ventura tivesse sorte e encontrasse algum dado a respeito, esse poderia tanto corroborar a Crítica Acadêmica como, quem sabe, dar algum subsídio favorável ao restauro efetuado. São percalços do ofício que todavia valem enfrentar.
O caminho a ser percorrido pela investigação histórica no órgão de preservação, penso eu, deve ter como propósito documentar o momento criador do monumento, uma vez que o interesse público recai mormente sobre o momento de sua criação. Mas isso não basta. Deve estender a pesquisa aos tempos posteriores, quando o monumento pode sofrer (e geralmente sofre) um processo de desfiguração, de alterações na fisionomia primitiva. É preciso documentar o melhor possível, entender as razões porque ocorreram, se vitimado por acidentes naturais (que implicaram em reedificações dos elementos danificados ou destruídos) ou propositais, feitos com o intuito de substituir os elementos originais ou simplesmente ter acrescentado novos, com feitios e materiais dos estilos das épocas que sucederam — acréscimos que conferem ao monumento feição por vezes muito distinta. Razão porque perde Valor, tanto do ponto de vista histórico como e sobretudo do ponto de vista estético.
Essas intervenções, naturais ou propositais, reparadoras ou inovadoras, foram consideradas pelo Crítico de Arte Alöis Riegl como “ações perturbadoras de seu valor histórico”. Diz o historiador e crítico vienense:
“O valor histórico é tanto maior quanto mais puramente se revela o estado original e acabado do monumento, tal como se apresentava no momento de sua criação” (2).
E complementava:
“Para o valor histórico, as alterações e degradações parciais são perturbadoras” (3).
Desse modo, o trabalho do historiador é procurar identificar essas alterações que provocaram sua degradação, e documenta-las, oferecendo ao restaurador subsídios para suprimi-las, e deixar aflorar os vestígios do feitio original que nele ficaram gravados. Daí a importância do arquiteto de ele próprio estar no comando dessas operações de investigação no corpo do monumento, municiado com essas informações, efetuando prospecções que permitam desvelar esses vestígios que, por sua vez, evidenciem formas históricas anteriores, os materiais então utilizados, como que voltando no tempo até chegar ao feitio primitivo, com os materiais da época de sua edificação.
Há, porém, quem divirja. Os historicistas condenam a restauração arquitetônica. Porque veem a história do monumento de modo bem diferente.
Tudo o que aconteceu no monumento, ao contrário, eles valorizam — resultando daí uma posição diametralmente oposta ao do grande pensador vienense. Pois partem de perspectiva muito distinta. Ao invés de lastimarem a ocorrência das alterações que degradaram o monumento, valorizam-nas. Afirmam que tudo nele é história, as alterações, os acréscimos ou supressões, enfim todas as intervenções, pois constituem marcas e expressões de sua história. E postulam: devem ser conservadas!
Para que? pergunto, se elas mutilam e deformam o monumento? Marcas que fazem o monumento perder o Valor histórico, como bem disse o crítico vienense!
Por vezes os historicistas cedem, mas exigem que o restauro seja feito com materiais e técnicas atuais para evitar o “falso histórico”, deixando visível a intervenção moderna. Mas, poxa, o uso de material moderno foi aplicado desde sempre nas restaurações; impossível fazê-las de outra maneira!
Assim, me ocorre pensar: e se perdêssemos o nariz! como ocorreu ao major russo Platon Kovaliov, em 1836. Coisa mais absurda! Acordou sem o nariz que foi parar no pão que Prascóvia Óssipovna assou para o marido, o barbeiro Ivan Iákovlievitch que, vejam, fazia sangrias também! O major Kovaliov ficou com uma cara muito esquisita. O lugar do nariz ficou liso como uma broa. Como não podia passar sem essa parte tão visível do corpo, deu queixa à polícia. A Medicina não possuía então os meios para recompor seu nariz. E se não fosse encontrado, teria que se conformar com qualquer coisa, pôr em seu lugar um botão de colete ou uma rolha por mais incompatível que fosse com o feitio de seu rosto! Mas a polícia o encontrou e foi bater a sua casa: — “Foi o senhor que se dignou a perder o nariz?” (4).
Do ponto de vista estético, podemos estabelecer, penso eu, analogia entre o rosto humano e a fachada de edifícios. Qualquer dano ou alteração indesejada causam desarranjos às suas configurações. Imaginem, por exemplo, uma mulher que perca os dentes incisivos. Ao sorrir, mostra duas janelinhas. A beleza dessa mulher sofre um enorme abalo. Ora, há de restaura-los com materiais (porcelana, resina ou outro) que restituam sua aparência, que a partir desse momento não será mais a mesma porque sofreu uma intervenção reparadora. Mas importa que a beleza da mulher foi restaurada para a sua e a felicidade de todos que a querem bem. Assim também deve ocorrer com os monumentos; uma antiga sede de fazenda, com vinte venezianas, que o cupim dê cabo de duas delas. Devemos restaurá-las, não é? E de madeira ou material de aparência igual. Mas há historicistas que as querem de alumínio?!
Da mesma forma vamos supor que o Museu do Ipiranga perca, por acidente, uma de suas colunas duplas da entrada do edifício; e para evitar o “falso histórico” as substituíssemos por uma parelha de colunas de concreto liso?!
Para se evitar o falso histórico se cometeria uma aberração!
Ora posicionamentos como esses não só diferem da postulação do crítico vienense como também a de outro crítico, o italiano Cesare Brandi (5), que, embora condene o falso histórico, chamou atenção para um aspecto importantíssimo do monumento, o da sua artisticidade, característica de sua criação. Se o monumento é alterado, altera-se a sua artisticidade. Propugna então pela sua restauração, de modo a restabelecer a sua integridade artística perdida e com material que, embora moderno, seja análogo ao original, oferecendo ao observador a percepção da configuração original recomposta, ou seja, restituindo-lhe sua artisticidade.
Encontro também em outro pensador, Walter Benjamin, o conceito de autenticidade ou da quintessência que vem de encontro ao da artisticidade de Brandi: Diz o filósofo alemão:
“A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo aquilo que nela é transmissível desde a origem, de sua duração material até seu testemunho histórico” (6).
Mas quando ela é afetada, prossegue Benjamim,
“Na medida em que este [o testemunho histórico] se funda naquela [na autenticidade] ... quando a duração material se subtrai aos homens, também o testemunho histórico da coisa é abalado” (7).
O que quis ele dizer com essas palavras? Que o que importa é a autenticidade, sem a qual o valor histórico é abalado, ou seja, ao perder sua expressão real, material, debilita-se a sua significação histórica. É esse o sentido que eu atribuo ao conceito de Benjamin quando aplicado ao monumento histórico: quando sua autenticidade sofre alteração mesmo que parcial, sua quintessência, que ele chamou também de áurea da coisa, vê-se subtraído o valor histórico da coisa.
Assim, apoiado nesses Críticos de Arte, e também nos escritos de Lucio Costa e Luís Saia, e na prática restaurativa dos colegas citados, procuro entender os restauros do Iphan e me posicionado franca e abertamente pela sua validação e, mais ainda, pela continuidade da prática restaurativa pois os monumentos merecem reparação quando perdem sua artisticidade, sua autenticidade, sua áurea.
E acho mais: acho que os futuros arquitetos que se formarão pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP (e demais faculdades de arquitetura do país) ainda terão a oportunidade de restaurar, como fizeram Luís Saia, Lucio Costa, Antonio Luiz e José Saia Neto e estão fazendo Luís Magnani, Alberto Arruda e Julio Moraes.
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Vamos falar então sobre o restauro da capela jesuítica do Embu. Sublinho a palavra jesuítica por ter sido esse o atributo reconhecido ao ser tombada. Esse atributo, por sua vez, remete a duas propriedades que expressa: histórica e artística.
Nos livros de Tombo do Iphan a capela foi valorizada por ser representativa do período jesuítico, produto, portanto, da ação missionária da Companhia de Jesus na aldeia de Embu, por corporificar a arquitetura da mesma Companhia na região paulista.
Enfatizo essa característica para deixar claro que o Conselho do Iphan tornou monumento nacional não foi a igreja Matriz do Embu, com a feição que possuía em 1938. O tombamento remete ao momento histórico de sua criação, edificada como capela do aldeamento em fins do século 17 e começo do século 18, construída segundo as características próprias da sociedade colonial paulista, sob a direção de um de seus lídimos representantes — o padre Belchior de Pontes —, baseada em sistema construtivo tipicamente paulista — a taipa de pilão — com soluções plásticas peculiares.
É esse o monumento tombado, muito embora, tenha perdido a sua feição primitiva, sua autenticidade, sua áurea, as quais só seriam possíveis de resgatar por meio da ação restaurativa. Afora os elementos da modinatura frontal que denunciavam soluções extemporâneas claras, a torre que ostentava em 1938, construída vinte anos antes, era a peça mais destoante. Tudo isso foi removido e a decapagem expôs as paredes de taipa de pilão desvelando sua estrutura primitiva.
Luís Saia efetuava concomitantemente outras obras de restauro com características construtivas semelhantes: na sede e capela do Sítio Santo Antonio que tanto encantou Mário de Andrade, e ainda na veneranda capela jesuítica de São Miguel, alteada no final do século 18 pelos franciscanos com uso do adobe (que Saia conservou). São obras que dialogavam entre si e que permitiram a Luís Saia construir uma visão da sociedade, da economia e da cultura paulista daquele período.
Tão importante quanto as prospecções foram as investigações que efetuou, seja na busca de documentação seja entrevistando o pedreiro José Cobertino que o informou sobre as reformas da igreja, especialmente das torres construídas entre o final do século 19 e o começo do século 20, seja ainda os estudos comparativos cotejando a capela de Embu com a capela de Nossa Senhora da Escada de Guararema, estudos cujo desenho (da capela sem a torre) fez parte. Desenho esse que Antonio Luiz usou, com muita perspicácia, para colocar em questão a existência da torre no projeto jesuítico primitivo, e concluir parafraseando a conhecida afirmação de Viollet-Le-Duc sobre o resultado de restauro levar o monumento a “um estado completo que pode jamais ter existido”, título de seu importante doutorado obtido na FAU USP (1992), e que a descoberta da Angélica Brito derrubou por terra.
Mas, antes, a tese de Antonio Luiz repercutiu na esfera acadêmica e alimentou outros estudos feitos tanto aqui na FAU USP como em outras faculdades do país sobre a atuação dos pioneiros restauradores do Serviço do Iphan, produzindo um juízo que descredenciou todos eles. E digo mais: ao condenarem as obras do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Sphan, desqualificaram o restauro enquanto instrumento legítimo de preservação.
Tenho certeza que a professora Beatriz Mugayar Kühl não concorda inteiramente com isso. Assim também acadêmicos do quilate de Nestor Goulart Reis Filho e Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes que contribuem muito para o estudo e a preservação de nosso patrimônio histórico e artístico.
Tal situação é muito preocupante, uma vez que a negação ao restauro causa danos ao Patrimônio Cultural do país e àqueles que atuam nos órgãos de preservação que tem potencial técnico e interesse para executar projetos de restauração:
1º. Porque a negação ou limitação da prática preservacionista hoje preponderante nos órgãos de preservação, reduzida apenas à conservação dos monumentos no estado em que se encontram, inibe a atuação dos seus técnicos a tarefas burocráticas de mera fiscalização;
2º. Porque tal diretriz inibe a produção de conhecimento que o restauro poderia proporcionar aos técnicos desafiando-os ao estudo das técnicas construtivas dos monumentos e das soluções plásticas em seu estado original;
3º. Porque se constata, nos dias de hoje, entre os novos arquitetos dos órgãos de preservação, reduzido interesse pela prática restaurativa (creio eu, em consequência do pensamento majoritariamente contrário ao restauro entre os docentes das faculdades de arquitetura de onde provem os novos técnicos de preservação);
4º. Assim, o restauro, atualmente, tanto em São Paulo como no resto do país, tornou-se apenas objeto de estudo e crítica acadêmica, contribuindo desse modo para reduzir drasticamente a prática restaurativa no Brasil (enquanto lá fora, na Europa, continua-se a praticá-la, a despeito da Crítica, desenvolvendo técnicas inovadoras de restauração em todos os campos, não somente dos monumentos arquitetônicos como especialmente dos bens artísticos.
5º. Tal situação gera desalento aos que pretendem e gostariam de atuar no campo da restauração, vendo reduzirem-se cada vez mais as possibilidades de aperfeiçoamento e progressão na carreira. É comum os ouvirmos queixando-se de terem sido reduzidos a realizar trabalhos meramente burocráticos, preenchendo fichas e fichas sem fim, fazendo uma suposta fiscalização dos monumentos e bens tombados.
Lamento profundamente que isso tudo esteja ocorrendo.
Bem, eu precisaria de mais tempo do que disponho. Assim para abreviar, vou me reportar rapidamente às pesquisas historiográficas que contribuíram, mesmo que modestamente, para alargar um pouco o conhecimento que hoje temos sobre a capela jesuítica do Embu.
Começo pelo artigo “Considerações acerca d’O nariz torcido de Lucio Costa” no qual narrei acontecimentos ocorridos em 1827, quando da passagem de Dom Pedro I por Embu, momento em que determina que os sinos da capela fossem retirados da torre e transferidos para a Sé da Capital. A despeito da inusitada arbitrariedade do Imperador, o episódio foi de grande valia pois revelou que existira sim uma torre na capela cerca de cem anos antes do restauro feito pelo Iphan (Aliás, é fato a ser realçado e comemorado porque reveste-se de grande valor simbólico, pois expressa a resistência da comunidade local, liderada por um grupo de pessoas, índios inclusive, que impediu que os sinos fossem levados para a Capital, dando um sumiço neles, afirmando ao pároco que não permitiriam jamais que fossem retirados da capela, contrariando corajosamente a determinação do Imperador).
O segundo texto, “Afinal a primitiva capela jesuítica do Embu tinha ou não tinha torre?”, onde narrei o que me pareceu ser a construção da torre mencionada anos antes desse acontecimento. Interpretação possível mas viria a se revelar errônea, e da qual me penalizo muitíssimo.
E o texto Afinal quem tinha mesmo razão era Luís Saia, elaborado a partir do documento descoberto pela Angélica Brito, e com o qual vou concluir essa palestra.
Antes, porém, e por fim, para quem ainda não sabe, vou lembrar o que a Angélica descobriu e registrou em sua tese de mestrado O aldeamento jesuítico de Mboy: administração temporal (séculos 17 e 18): a informação que pôs por terra a hipótese aventada por Antonio Luiz Dias de Andrade em sua tese de doutorado Um estado completo que pode jamais ter existido, defendido em 1993.
Diz Angélica Brito:
“Não obstante, a título de informação, no inventário da aldeia, de 1759, há menção da existência de uma torre com seus sinos” (8).
Para concluir leio um trecho conclusivo do meu texto acerca dessa questão:
“Ora, isso faz com que a razão troque novamente de lado, deixe os críticos e retorne aos autores do restauro. Senão vejamos.
Em vista de tudo o que foi exposto, o conhecimento que agora se tem a respeito da capela e especialmente acerca da polêmica questão de sua torre pode ser assim formulado:
1. Graças à pesquisa de Angélica Silva Brito é possível afirmar com segurança que a torre da capela de Nossa Senhora do Rosário do Embu existia em 1759, e que sua construção deva corresponder à época da edificação da capela pelo Padre Melchior de Pontes, isto é, em 1700-1705. Era, portanto, elemento constitutivo do projeto original da capela jesuítica;
2. essa primitiva torre foi arruinada cerca de um século depois, na tempestade de 1813;
3. a torre foi reconstruída logo depois, entre 1814 e 1826 pelos Capitães Pedrozo de Moraes e o Padre Alexandre Gomes de Azevedo
(hipótese a conjecturar: essa reconstrução pode tê-la modelado com feição igual ou semelhante à torre original de 1700-1705);
4. a torre de 1814-26 permaneceu até ser desfeita na última década do século 19
(hipótese 2: essa torre do início do século 19 teria sido a que foi registrada na foto, s/d, estampada no folheto da Empresa de Colonização Sul Paulista);
5. entre o final do século 19 e o início do 20 foram construídas outras torres, com novas configurações, (sendo a última, a “chapéu de palha” como a chamou Mário de Andrade);
6. esta última, por sua vez, foi destruída pelo Sphan em 1939-40
7. para e, por fim, os arquitetos Luís Saia e Lucio Costa, com base nas prospecções, depoimentos e análise da foto descoberta (a do folheto referido), reconstruírem a torre com uma configuração próxima à imagem referida, restituindo à capela uma feição mais antiga ou tradicional, que era o propósito desde início anunciado.
Diante desse novo quadro, é possível afirmar:
a) que a torre restaurada pelos arquitetos Luís Saia e Lucio Costa em 1939-41 encontra, finalmente, o documento que lhe confere a fundamentação histórica que a Crítica acadêmica reclamava;
b) que a torre restaurada pelos ditos arquitetos dispõe d’ora em diante de uma, digamos, ‘Certificação de Origem Comprovada’, a qual restitui legitimidade à ação restaurativa do Serviço do Iphan bem como recobra o valor e o mérito enquanto procedimento técnico de preservação e valorização do monumento e
c) Por conseguinte, não é mais possível aceitar como verdadeira a afirmação de que a torre ‘jamais teria existido no projeto original da capela’.”
Bem, é isso que eu tenho para falar a vocês sobre o restauro da capela jesuítica do Embu.
Obrigado pela atenção.
notas
NA — Este artigo é oriundo da palestra realizada por vídeo conferência em 21 de julho de 2021 para as Jornadas de Estudos FAU USP História da Arte/Arquitetura Missões Jesuíticas Patrimônio e Paisagem Cultural em São Paulo numa abordagem sul-americana, ministrada aos alunos das disciplinas História da Arte 1 e História e Teorias da Arquitetura, dos professores Luciano Migliaccio e Renata Martins.
1
In Andrade, Mário de. Será o Benedito! O Estado de S. Paulo (out./1937-nov./1941). Apresentação Telê Porto Ancona Lopes. São Paulo, Editora PUC SP, 1992.
2
RIEGL, Aloïs [1903]. O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese. Goiânia, Editora UCG, 2006, p. 76.
3
Idem, ibidem, p. 76.
4
GÓGOL, Nikolai. O nariz. In Clássicos do conto russo. São Paulo. Editora 34, 2015.
5
BRANDI, Cesare. Princípios para a restauração dos monumentos. Teoria da Restauração, vol. 3. Cotia, Ateliê Editorial, 2019.
6
Benjamin, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre, Zouk, 2012.
7
Idem, ibidem.
8
SILVA, Angélica Brito. O aldeamento jesuítico de Mboy: administração temporal (séculos 17-18). Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP. 2018.
sobre o autor
Carlos Gutierrez Cerqueira é formado em História (FFLCH USP, 1975) e Técnico em Pesquisa da Superintendência Regional do Iphan SP desde 1983.