Passados vinte anos do projeto de iniciação científica (1) que deu origem a este estudo e dez anos da defesa da dissertação de mestrado (2) sobre a produção residencial do arquiteto João Filgueiras Lima (1932-2014), apresenta-se um momento oportuno para fazer uma revisão das ideias e da produção de uma parcela significativa, embora ainda pouco discutida, da obra de Lelé: as casas. Tão diversificadas quanto seus projetos produzidos em série, essas residências são objetos de experimentação material e espacial fundamentais no desenvolvimento da obra do arquiteto.
Ao avançar em uma abordagem que se concentra mais em aspectos relacionais entre o projeto e seu contexto de produção e menos na análise formal — priorizada em estudos anteriores — este texto pretende dar um primeiro passo rumo à revisão crítica destes projetos, executados ou não, destacando seu papel indutor na obra do arquiteto. O resultado pode ser determinante para o reposicionamento desta produção na carreira de Lelé, e para sua reinserção no quadro da arquitetura residencial brasileira.
A seleção dos projetos que compõe o material de base para a análise, embora organizada de maneira cronológica, por vezes se distribui no tempo e no espaço de maneira não linear, em razão da argumentação empregada na construção da narrativa. Com o intuito de sistematizar o estudo das casas em relação à obra completa de Lelé, o texto lança um olhar global sobre sua vasta produção — que se estende de 1957 a 2013 — organizando em décadas a análise dos objetos. Esta divisão se baseia em mudanças sucessivas, e significativas, percebidas em sua arquitetura a cada virada de decênio.
Assim, observa-se que no início dos anos 1960 há uma estreita vinculação do arquiteto, estética e funcional, com o racionalismo carioca, que logo seria abandonada. Naquele momento Lelé ainda integrava o quadro de funcionários do extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários — IAPB. Na década de 1970, já na condição de arquiteto autônomo, Lelé atravessa um período de inflexão em sua carreira, no qual dois modelos de pensar e fazer a arquitetura residencial são conduzidos paralelamente. Nos anos 1980, já trabalhando para o poder público, o arquiteto passa a se dedicar quase que integralmente às fábricas estatais de componentes pré-moldados e aos projetos industrializados.
A casa privada — que parecia desconectada dos programas sociais produzidos em série, como as escolas, hospitais e creches — é retomada naquele momento à luz de sua contribuição para o desenvolvimento geral da obra do arquiteto. Com a consolidação do aço na arquitetura de Lelé a partir dos anos 1990 e a expansão vertiginosa dos projetos em estrutura metálica, suas casas ainda permanecem espacialmente associadas à estética dos hospitais da Rede Sarah. Dos anos 2000 em diante, Lelé atinge um alto grau de desenvolvimento dessa arquitetura em aço, habilidade que se reflete também em seus últimos projetos residenciais.
Lelé e o arquiteto Aldary Toledo
Surgidas na década de 1960, as casas projetadas por Lelé ao longo de mais de cinquenta anos de profissão são uma expressão legítima do conturbado cenário da arquitetura brasileira pós-Brasília e de seu ambiente político, cultural e social. Se por um lado estas casas, concebidas entre 1961 e 2007, revelam o entusiasmo do arquiteto frente às possibilidades construtivas trazidas pelas inovações do concreto armado (como a protensão e a pré-fabricação), por outro elas demonstram uma estreita consonância de Lelé com o cenário arquitetônico em que se encontrava naquele momento.
A primeira característica que se observa ao tomar como exemplo a casa inaugural de Lelé em Brasília, a residência César Prates (1961), é sua herança mineira. Em termos de linguagem, a casa incorpora preceitos estéticos e organizacionais típicos do modernismo produzido em Cataguases (3) nos anos 1940, como o uso sem parcimônia das venezianas e os materiais naturais integrados à arquitetura, como a pedra e a madeira. No entanto, a associação entre Lelé e Cataguases neste momento não se justifica pela simples aplicação de elementos trazidos da gramática construtiva do racionalismo carioca em Brasília, apesar da vinculação pessoal, acadêmica e cultural do arquiteto com o Rio de Janeiro. É a figura de Aldary Toledo (4), a quem Lelé atribui parte de sua formação (5), quem conduz esta relação.
Aldary, segundo André Marques, “participou dos principais projetos arquitetônicos modernos para a cidade de Cataguases MG, com destaque para Cine Teatro Cataguases, em parceria com Carlos Leão, a residência José Pacheco de Medeiros e o Hotel Cataguases” (6). Por si só, a residência José Pacheco de Medeiros (1943) oferece muitos dos elementos empregados por Lelé na casa construída para César Prates, como o grande pergolado de concreto (colocado na fachada frontal no projeto de Brasília), a disposição dos ambientes em planta (em especial o arranjo do nível superior), o perfil longitudinal, bem como a acentuada horizontalidade das janelas nas fachadas voltadas para os fundos. Em outras palavras, embora separado em pelo menos vinte anos da atuação marcante do renomado grupo de arquitetos cariocas (7) na pequena cidade na Zona da Mata Mineira, Lelé ainda não havia rompido com o vocabulário da chamada “Escola Carioca” de arquitetura.
A herança mineira se completa quando percebemos que morador e morada, com suas áreas generosas, estavam em completa sintonia. Prates era amigo e assessor pessoal de Juscelino Kubitschek e um conhecido animador das serestas em Brasília, em um momento em que reunir os amigos à noite era solução para dividir a solidão nos primeiros anos da nova capital, como bem lembrou a artista e ex-professora da Universidade de Brasília — UnB, Vera Brant: “Havia o grupo das serestas que era o mais divertido de todos. O César Prates cantava aquelas modinhas de Montes Claros e Diamantina. As noites aqui, lindíssimas, com muito mais estrelas do que em qualquer céu, preparavam o ambiente para a emoção” (8).
Em 1962, com o início das obras na Universidade de Brasília e as novas atribuições (9), Lelé passa a se dedicar exclusivamente aos trabalhos no campus, se desligando institucionalmente do IAPB, órgão no qual trabalhou até aquele ano. Mesmo com o início da construção da Superquadra 109 Sul, de propriedade do Instituto e projetada em 1961 em colaboração com Aldary Toledo e Luigi Pratesi, Lelé se concentra na urgência imposta por Darcy Ribeiro e acaba por integrar a equipe de Oscar Niemeyer. Em meio à crença generalizada de que a pré-fabricação seria a solução mais viável para o desenvolvimento físico da universidade, um pequeno pavilhão, o Centro de Planejamento — Ceplan, berço das recentes inovações tecnológicas na construção da UnB — vai se constituir em modelo paradigmático para obras autorais do jovem João Filgueiras Lima.
Um dos exemplos dessa incorporação estética está no próprio Galpão de Serviços Gerais, projeto de 1962 que abrigou temporariamente a biblioteca central da universidade, e nas Escolas Transitórias (10), desenvolvidas a partir do protótipo em argamassa armada de Abadiânia GO em 1984. Mas talvez seja na residência e capela que Lelé desenha e constrói para Frei Mateus Rocha na UnB em 1962 onde o apego do arquiteto àquela composição pavilhonar ritmada do Ceplan se torna mais evidente, mesmo diante da mudança visível no emprego dos materiais. Em termos de acabamento, é curioso observar que o mesmo padrão de fechamento em treliça de madeira é empregado tanto na fachada sudoeste (frontal) da residência César Prates quanto nas portas de acesso à capela da residência para Frei Mateus.
Concreto e tijolo
Na década seguinte, a percepção de Lelé sobre os aspectos da moradia individual muda radicalmente. Entre 1970 e 1979, o arquiteto não apenas rompe com a linguagem do racionalismo carioca que o acompanhou durante os primeiros anos em Brasília, como também passa a adotar duas linhas bem distintas quanto à concepção e materialização das novas habitações privadas. A primeira corresponde a uma arquitetura que se caracteriza pela robustez e apelo das estruturas de concreto, por espaços e escalas monumentais; enquanto a segunda linha reflete preocupações de um arquiteto mais atento ao custo das soluções técnicas adotadas, às possibilidades estruturais mais modestas dos materiais empregados — sobretudo o tijolo cerâmico — e a uma linguagem, digamos, mais doméstica do programa residencial, e menos “institucionalizada,” típica da primeira vertente.
Essas duas maneiras de Lelé de perceber e fazer arquitetura durante a década de 1970 foram observadas em pesquisas anteriores (11) como momentos distintos da prática projetual do arquiteto, cuja coerência entre os espaços criados e a potencialidade de cada material se traduz no próprio sistema construtivo (12). O resultado é uma coleção de casas que podem parecer radicalmente desconexas entre si, se julgadas pela forma como se apresentam, mas que guardam profunda relação com o encaminhamento dado à obra do arquiteto naquele momento.
Desde 1965, logo após sua demissão da Universidade de Brasília, Lelé já havia adquirido o know how necessário para lidar com a pré-fabricação pesada em concreto armado, tanto do ponto de vista do projeto, com o detalhamento do Instituto Central de Ciências, quanto da sua execução, através do estreito relacionamento que manteve com as construtoras Rabello (responsável pelo ICC) e a Christiani-Nielsen (responsável pelos edifícios da Colina). Obras deste período como o conjunto da concessionária Disbrave (1965) e o Hospital de Taguatinga (1968) além de confirmarem a expertise do arquiteto nesta área, apontam para uma concepção de arquitetura muito influenciada por um entusiasmo pessoal em relação às possibilidades do concreto.
O ápice desta nova expressão, refletida no conjunto das casas projetadas por Lelé, encontra-se justamente na residência para Ministro de Estado em Brasília, de 1970. É este projeto quem dá voz às reais aspirações, sentimentos e ações de um arquiteto preocupado em explorar entusiasticamente o vigor estrutural, do concreto e de suas capacidades. O que se revela ali é uma clara demonstração de uma visão técnica que está na origem do próprio movimento moderno: a devoção quase religiosa à crença na tecnologia como chave para um novo sonho utópico que transformaria a própria natureza do homem.
Ao posicionar corretamente a residência para Ministro de Estado na cronologia da obra de Lelé, assumindo sua gestação no período mais duro do regime militar (pós AI-5), entende-se que tanto a casa quanto a produção que veio em seguida integram um pensamento e uma prática em franca transformação. Dentre os projetam que integram esta primeira vertente estão a residência R. Bougleux (1971) — projeto não construído em Brasília que inaugura o tema das casas suspensas e de organização radial na obra de Lelé —, a residência José da Silva Netto e do Edifício Sede da Portobrás, ambos de 1973, o Centro de Exposições do Centro Administrativo da Bahia — CAB, em Salvador (1974), o Edifício Garagem (não construído) da Portobrás em Brasília de 1975, o projeto para o então Hospital de Doenças do Aparelho Locomotor — HDAL, ou simplesmente Sarah Brasília, de 1976, e, por fim, a Estação de Transbordo da Lapa em Salvador, de 1979.
São projetos e obras que denotam um latente fascínio tecnológico e estrutural por parte de Lelé (13), em um contexto de soluções construtivas excepcionais, ainda que mais onerosas, necessárias à materialização das ideias do arquiteto. Nesse sentido, “embora seja descendente da linha carioca e grande admirador de Niemeyer, Lelé deixou-se seduzir pela estética racional da linha paulista, fazendo do concreto o seu “mármore” e o maior responsável pela expressão plástica da sua obra” (14). Tais soluções podem ser exemplificadas pela adoção das grandes vigas de transição do edifício sede da Portobrás em Brasília, ou pelas rótulas de concreto presentes no Centro de Exposições do CAB e nos tirantes protendidos no apoio do viaduto de acesso à Estação da Lapa em Salvador.
Não é, portanto, mero acaso que o apego de Lelé neste momento à viga Vierendeel — elemento esteticamente marcante e estruturalmente eficiente — refletisse não apenas um desejo do arquiteto em promover aberturas transparentes para a integração visual entre ambientes internos e externos, mas também para definir a própria forma do edifício. A utilização da viga Vierendeel que se inicia na residência para Ministro de Estado em 1970 seria retomada nos projetos de edifícios para as superquadras 311 Sul e 204 Sul — realizados por Lelé em Brasília entre 1973 e 1974 — respectivamente para o Ministério dos Transportes e para o Banco do Brasil (15). Embora não construídos, os conjuntos residenciais de Lelé em Brasília revelam a adesão incondicional do arquiteto ao elemento estrutural, que ele só conseguiria emplacar novamente na primeira unidade do Hospital Sarah, construído entre 1976 e 1980 na capital federal.
Ironicamente, a derrota técnica de Lelé no episódio da construção da viga Vierendeel no hospital — pensada para ser executada em módulos pré-fabricados unidos por cabos de protensão e realizada nos moldes tradicionais, ou seja, fundida in loco — representou uma vitória a longo prazo. A partir do Sarah Brasília, os avanços percebidos nos processos de racionalização da construção e introdução de novos materiais na obra de Lelé, como a argamassa armada e posteriormente o aço, logrou uma das mais bem sucedidas fases na carreira do arquiteto. Ali se inicia uma rede de hospitais que mais tarde se espalharia por todo Brasil, impactando na própria visão do arquiteto sobre temas como a industrialização e sua interface com a área da saúde.
A segunda vertente, ainda nos anos 1970, abriu caminho não somente para uma produção mais engajada com materiais e técnicas construtivas mais simples — como o tijolo, os arcos e abóbodas — como também imprimiu em Lelé um senso de economia urgente que nortearia toda sua produção industrializada a partir da década 1980. Mas por que motivo Lelé mudaria seu interesse e a expressão de sua arquitetura do concreto armado para o tijolo? Em primeiro lugar é preciso dizer que o uso de uma tecnologia ou material não inviabilizou o uso da outra. Tanto assim que ao se recorrer à cronologia da produção do arquiteto ao longo da década de 1970 percebe-se mais uma alternância no uso predominante dos materiais e menos uma divisão sectária.
Além disso, é preciso separar muito bem a clientela. As soluções construtivas tecnologicamente mais arrojadas e esteticamente mais robustas, e por sua vez mais caras, eram comumente atribuídas aos projetos residenciais destinados a uma parcela da elite econômica que não só estaria disposta a financiar as ousadias estruturais de Lelé, mas ainda acatava sua proposta, nada ortodoxa, de uma nova maneira de morar. É como se o arquiteto enxergasse nessas situações uma oportunidade legítima de experimentar algo que dificilmente faria com um orçamento mais restrito. E em muitos casos a estratégia funcionou. No setor público, muitos projetos dessa natureza também encontraram vazão, apesar de alguns terem ficado pelo caminho. Em uma de suas entrevistas a Gabriella Lima, Lelé reconhece os atributos, mas também as falhas, no projeto da residência para Ministro de Estado em Brasília:
“A beleza está na estrutura, pois foi um aspecto valorizado ao extremo. Uma casa dessa é uma coisa tão distorcida, mas eu acho que devem existir projetos dessa natureza. Eu considero essa residência como um exercício profissional e na medida que ela é encarada como tal, o arquiteto deve assumir o desafio. É muita estrutura e os espaços são grandiosos. Vejo essa obra como um desafio à minha capacidade profissional e não como um ambiente adequado para morar. Eu acho uma distorção alguém morar numa casa dessa com espaços tão grandes” (16).
A dicotomia com a qual Lelé conduz seus trabalhos durante a década de 1970 produziu uma nova linguagem de edifícios, da chamada segunda vertente, marcada por um forte controle do processo de criação. Há nesses projetos uma atenção especial, por parte do arquiteto, voltada para as etapas de execução dos principais elementos construtivos, muitas vezes desenvolvidos de modo artesanal. No caso das residências, isso fica visível quando se observa o empenho de Lelé em reproduzir, através de desenhos, a solução técnica adotada para resolver problemas relativos à materialização do objeto.
Da prensagem do elemento do sistema mural proposto para a Residência Mário Kertész (1977) em Salvador à sequência de execução dos arcos de tijolos cerâmicos na residência Nivaldo Borges (1972) em Brasília, passando pela peça do sistema vazado sobre os jardins da residência Fátima Zugaib (197_) em Ilhéus, Lelé abandona o caráter das obras “de grande concepção estrutural” para se ater à resolução de pequenos problemas de ordem construtiva (como a criação das ferramentas necessárias à obra e a adoção dos métodos de execução). Ao fazê-lo, o arquiteto se aproxima do conceito de consciência material de Richard Sennet (17), que defende o diálogo entre práticas concretas e ideias na produção dos objetos. Esse pensar por meio do fazer se tornará a tônica de sua atuação profissional, fortemente instruída pelo empirismo.
No final dos anos 1970, a combinação entre um cenário político favorável, um plano de ação municipal com foco em programas urgentes e um senso de oportunidade entre os envolvidos convergiu para a criação da primeira fábrica de pré-moldados coordenada por Lelé: a Renurb, que operou em Salvador entre 1979 e 1981. A partir de então, e com a decisão do arquiteto de concentrar sua atuação profissional junto ao poder público (18), a relação entre arquitetura e política transforma de maneira decisiva a relação de Lelé com temas considerados essenciais em sua obra como a produção e o tempo de execução das propostas. A produção se concentrará não mais em etapas para elaboração de objetos individuais, mas em série, e o tempo de trabalho do arquiteto passa a ser pautado pelos sucessivos, e interruptos, mandatos políticos, geralmente de quatro anos. Este se torna o prazo de validação de suas propostas, do planejamento à montagem final.
O pensar e o construir na prática de um arquiteto em transformação
Em meio a um conturbado cenário político, social e econômico, Lelé se encontra completamente absorvido pelo trabalho ao longo dos anos 1980. A criação e desmobilização de sucessivas fábricas (19) de pré-moldados em diferentes regiões do Brasil no curto espaço de tempo fez com que o arquiteto assumisse posições que oscilassem entre Animal laborans e Homo faber, para recuperar as duas figuras metafóricas propostas por Hannah Arendt em 1958 (20). Elas subsidiam o conceito que vincula a fabricação, no sentido mais amplo, como pressuposto do homem que produz sua condição no mundo a partir de suas ações, ora como criador consciente ora como perpetrador de atividades repetitivas. Ou seja, a própria dualidade entre trabalho e labor, que é encampada por Lelé de maneira bastante difusa.
Com o desenvolvimento da arquitetura industrializada na obra do arquiteto a partir da década de 1980, e com a ênfase dada aos processos de produção — uma das características mais notáveis da arquitetura de Lelé — é compreensível que projetos residenciais deste período incorporassem, mesmo que parcialmente, a linguagem industrial em suas propostas, sem, contudo, abandonar o espírito de manufatura, entendido como produto de fabricação manual.
Assim, é no equilíbrio entre o manual e o industrial que se localiza o anteprojeto que Lelé realiza em Brasília em 1985 para Nivaldo Borges Jr (Nivaldinho). Esta casa, embora não construída e oferecida como presente de casamento, além de afastar a ideia de um certo hiato na produção residencial do arquiteto durante os anos 1980, oferece uma leitura precisa do modus operandi de Lelé quanto aos inevitáveis descompassos entre a concepção e a construção.
O espírito de trabalho coletivo e os pormenores representados nos desenhos de montagem da abóboda pré-fabricada em argamassa armada como solução possível para a cobertura da residência Nivaldinho não foi mera especulação. Ali se encontravam os fundamentos essenciais para a implantação, dois anos mais tarde, de um sistema de cascas de cobertura ligadas entre si por nervuras grauteadas. Através da materialização das creches públicas de Salvador (1987), Lelé não apenas transforma em realidade o mais emblemático elemento construtivo desse período (21), mas também contribui para minimizar os desajustes sociais em sua volta. O projeto não realizado do arquiteto que almejava construir uma casa “flexível e extensível, possibilitando o ajuste futuro às inevitáveis transformações do programa familiar de um casal jovem” (22) na capital do país atendeu centenas de crianças na periferia da capital baiana.
Considerações (finais) acerca de uma casa interrompida
Nos anos 1990, ainda mais envolvido com as obras dos novos hospitais e com os Tribunais de Contas da União nos estados produzidos pelo Centro de Tecnologia da Rede Sarah — CTRS, Lelé realiza uma série de projetos residenciais, dos quais poucos saíram do papel. Dentre os que viram a luz do dia, podemos citar a ampliação da residência para o médico cirurgião Aloysio Campos da Paz em Brasília — ocorrida em duas etapas, entre 1991 e 1994 — e a casa para o jornalista João Santana, realizada em Trancoso, distrito de Porto Seguro, na Bahia, de 1994.
Mas foi um projeto engavetado do início dos anos 2000 que logrou um feito inédito no panorama das casas projetadas por Lelé: o papel de síntese. A residência Christiana Brenner, de 2003, embargada por uma disputa extrajudicial entre vizinhos no Lago Sul em Brasília, não precisou sair das fundações para deixar seu legado na trajetória do arquiteto João Filgueiras Lima. Parcialmente assentada no terreno, a casa avança, em projeção, em direção à área de lazer com a mesma intenção de liberdade no uso do solo encontrada em projetos anteriores, porém com uma diferença fundamental: o sistema treliçado da estrutura permite uma economia considerável de material se comparado aos balanços empregados no passado. Basta retomar alguns projetos de Brasília — como a residência José da Silva Netto (1973) ou o acréscimo, não construído, da residência Aloysio Campos da Paz (1975), no Setor de Mansões do Lago Norte — para perceber o impacto, visual e econômico, dos grandes vãos livres.
Ao proceder com a ideia, Lelé resgata a famosa premissa de Perret — da arquitetura como arte de fazer cantar os pontos de apoio (23) — não apenas no sentido original dado pelo arquiteto francês e pioneiro no uso do concreto armado, isto é, a defesa do uso da estrutura independente; mas como defendia Artigas, que sempre prezou pelo valor da força da gravidade e sua expressão na arquitetura. “O que me encanta é usar formas pesadas e chegar perto da terra e, dialeticamente, negá-las” (24) disse ele em sua banca no concurso para professor titular na FAU USP, em 1984.
Embora Lelé tenha há muito abandonado o gosto pelas formas pesadas que tanto encantaram o mestre da chamada “Escola Paulista” de arquitetura em detrimento da leveza das edificações, das estruturas e dos materiais em seus projetos; João Filgueiras sempre partilhou com Artigas um zelo excessivo por aspectos ligados tanto à materialização quanto à implantação da obra. Ou nas palavras do próprio Artigas “um certo respeito pela maneira como ela “senta” no chão; como ela se equilibra, se exprime através da leveza, a marca dessa dialética entre o fazer e a dificuldade de realizar” (25). Na residência Christiana Brenner, a grande aliada de Lelé na viabilização do pleito estrutural é a mão francesa. Mas a casa resgata elementos e lições importantes aprendidas em exemplos precedentes.
É o caso da sede da Prefeitura de Salvador (1986), fonte do arquiteto para a decisão de explorar plasticamente na residência o elemento de cobertura, responsável por acomodar as placas do sistema de aquecimento solar, abrigar os reservatórios de água, e ainda proteger a claraboia dos banheiros da incidência de luz direta. Do ponto de vista da implantação, a planta em “T” foi a solução mais racional para acomodar perpendicularmente no lote os dois blocos da residência. Por dois motivos: para preservar as árvores do cerrado existentes no local (apenas uma precisou ser retirada) e para evitar grandes movimentações de terra, mantendo a topografia do terreno o mais natural possível. Lições que serviriam para a última residência projetada pelo arquiteto construída alguns anos depois: a casa para Roberto Pinho (Brasília, 2007), exemplo de acomodação da obra no terreno.
Por fim, o que restou foi um apanhado de desenhos técnicos (26) — aprovados e mantidos nos arquivos da Administração Regional do Lago Sul em Brasília — um anteprojeto de arquitetura e perspectivas que demonstram não só o talento de Lelé para a representação gráfica, como também sua sensibilidade para a criação de espaços significativos para seus moradores. Dentre as inúmeras casas desenhadas para amigos (27) e pessoas próximas, a residência Christiana Brenner é apenas mais uma testemunha de que, no âmbito da arquitetura residencial, Lelé trabalha melhor quando a encomenda é feita por alguém do seu círculo mais íntimo. “De forma que, fazer um projeto de uma casa pra ela foi muito fácil. Que essa eu conhecia desde menina” (28), me disse ele certa vez em referência à proprietária e filha do radiologista da Rede Sarah Fausto Brenner.
Conhecimento e habilidade sempre estiveram ao lado daqueles que produziram obras notáveis ao longo da história. Com a habitação não foi diferente, ainda que os avanços técnicos, funcionais e estéticos percebidos estivessem condicionados a um determinado alinhamento conceitual compartilhado entre projetista e proprietário. Com o advento do movimento moderno, a casa passa a se tornar o principal meio propagador das ideias fundamentais da chamada nova arquitetura, ou “o laboratório experimental”, como afirmou Alan Colquhoun (29). A visão que Lelé tinha da casa se alterou ao longo de sua carreira da mesma forma como seu próprio entendimento sobre industrialização. Nesse sentido, é mais coerente afirmar que ao invés de ter usado a residência para propagandear visões de mundo ou manifestos, Lelé se concentrou em colocar a casa no centro de suas pesquisas construtivas, como se elas pudessem validar o encaminhamento que o arquiteto daria às outras dimensões de sua própria arquitetura.
notas
NA — O presente ensaio é um desenvolvimento da aula intitulada “A casa na obra de João Filgueiras Lima, Lelé: uma revisão necessária”, ministrada pelo autor na Faculdade de Arquitetura da UFBA em 16 de dezembro de 2020, como palestrante convidado do curso Tópicos Especiais em Arquitetura e Urbanismo. Relatos de um aprendizado: a arquitetura de Lelé. Docentes: Ceila Cardoso e José Fernando Minho.
1
VILELA, Adalberto. Arquitetos de Brasília e suas produções residenciais: João Filgueiras Lima (Lelé), Paulo Zimbres, Sérgio Parada, Mateus Gorovitz e Cláudio Queiroz. Projeto de iniciação científica. Brasília, FAU UnB, 2001.
2
VILELA, Adalberto. A casa na obra de João Filgueiras Lima, Lelé. Dissertação de mestrado. Brasília, FAU UnB, 2011.
3
Para aprofundamento sobre a importância cultural de Cataguases e sua arquitetura, ver: ALONSO, Paulo Henrique. A construção de um patrimônio cultural: o tombamento federal de Cataguases, Minas Gerais. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte, EA UFMG, 2010.
4
Para uma leitura aprofundada sobre Aldary Toledo e sua produção, ver: MARQUES, André. Aldary Toledo: entre arte e arquitetura. Tese de doutorado. São Paulo, FAU Mackenzie, 2018.
5
O Aldary Toledo foi meu professor, mas informalmente. Eu frequentava sistematicamente sua casa junto com outros estudantes. LIMA, João Filgueiras. Depoimento a Adalberto Vilela. Salvador, 4 mai. 2011. In VILELA, Adalberto. A casa na obra de João Filgueiras Lima, Lelé. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2017, p. 274.
6
MARQUES, André. Op. cit., 2018, p. 9.
7
Dentre os arquitetos que integraram o grupo estão Carlos Leão, Aldary Toledo, irmãos Roberto, Francisco Bolonha (paraense formado na Escola Nacional de Belas Artes — Enba), para citar apenas alguns. In ALONSO, Paulo Henrique (org.). Cataguases — Arquitetura Modernista: Guia do Patrimônio Cultural. Belo Horizonte, Instituto de Estudos do Desenvolvimento Sustentável, 2009, p. 8.
8
BRANT, Vera. Brasília 25 anos. Módulo, n. 85, Rio de Janeiro, mai. 1985, p. 25.
9
Durante a construção da UnB, Lelé assumiu os cargos de coordenador do curso de pós-graduação, secretário executivo do Centro de Planejamento e responsável pelo curso de técnica da construção. In GUIMARÃES, Ana Gabriella Lima. João Filgueiras Lima: o último dos modernistas. Dissertação de mestrado. São Carlos, EESC USP, 2003, p. 23.
10
Modelo industrializado de escola rural totalmente desmontável e extensível criada para se adequar à transitoriedade do domicílio familiar do trabalhador do campo, acompanhando o ciclo de cultivo da terra. In LIMA, João Filgueiras. Escola Transitória Modelo Rural. Brasília, MEC/Cedate, 1984, p. 19.
11
Ver GUIMARÃES, Ana Gabriella Lima. Op. cit.; e PEIXOTO, Elane Ribeiro. Lelé: O arquiteto João da Gama Filgueiras Lima. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 1996.
12
PEIXOTO, Elane Ribeiro. Op. cit., p. 201.
13
Para uma visão mais ampla sobre a relação de Lelé com os aspectos tecnológicos e construtivos, ver: REBELLO, Yopanan; Maria Amélia d’Azevedo Leite. Architekton Lelé: o mestre da arte de construir. AU — Arquitetura e Urbanismo, n. 175, São Paulo, out. 2008, p. 72-77.
14
GUIMARÃES, Ana Gabriella Lima. Op. cit., 2003, p. 54.
15
De acordo com o memorial descritivo dos projetos, para o Banco do Brasil (SQS 204), o arquiteto previu três tipos de apartamentos distribuídos em doze blocos pré-fabricados de seis andares, e para o Ministério dos Transportes (SQS 311), dois tipos de apartamentos divididos entre seis edifícios construídos convencionalmente (em concreto) com seis andares. Arquivo João Filgueiras Lima.
16
LIMA, João Filgueiras. Depoimento a Ana Grabriella Lima Guimarães. Salvador, 20 fev. 2001. In GUIMARÃES, Ana Gabriella Lima. Op. cit., p. 55.
17
SENNET, Richard. The Craftsman. London, Penguin, 2008.
18
Aquele foi um momento chave na carreira do Lelé. Ele podia optar por ter um super escritório, pegar um projeto internacional como o da IBM, ou então se manter nessa vertente dos projetos de cunho social, mais ligados ao governo, mesmo com todas as dificuldades que às vezes esse tipo de trabalho traz, como a questão de pagamentos etc. E ele francamente optou por esse segundo caminho. Foi uma decisão consciente. Ele não foi levado a isso. Ele decidiu. PINHEIRO, Haroldo. Depoimento a Adalberto Vilela. Brasília, 3 mai. 2016. In VILELA, Adalberto. Architecture without applause: the manufactured work of João Filgueiras Lima, Lelé. Tese de doutorado. Zurique, gta ETH Zürich, 2018, p. 130.
19
Para compreender melhor a opção de Lelé pela esfera pública e o impacto causado em sua arquitetura pelos sucessivos fechamentos das fábricas que coordenou, em especial o CTRS, ver: PINHO, Roberto. Lelé: um arquiteto universal. In RISSELADA, Max e Giancarlo Latorraca (org.). A arquitetura de Lelé: fábrica e invenção. São Paulo, Imprensa Oficial/MCB, 2010, p. 47-55. MOSANER, Fabio. O desenho e o processo de produção da arquitetura: João Filgueiras Lima (Lelé) e o Centro de Tecnologia da Rede Sarah (CTRS). Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2021.
20
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007, p. 96.
21
VILELA, Adalberto; SAVASTANO, Fabio. Public childcare. Bahia 1987. Transfer, Zurique, Materiality, fev. 2018 <https://bit.ly/3OnAAtq>.
22
LIMA, João Filgueiras. Memorial descritivo da residencia Nivaldinho. Brasília, 1985.
23
“Si la structure n'est pas digne de rester apparente, l'architecte a mal rempli sa mission. Celui qui dissimule un poteau, une partie portante, que ce soit à l'intérieur ou à l'extérieur, se prive du plus noble élément de l'architecture, de son plus bel ornement. L’architecture, c’est l’art de faire chanter le point d’appui”. PERRET, Auguste. L’Architecture, conférence à l’Institut d’art et d’archéologie, 31 mai. 1933: dactyl. et annonce de la conférence. Dossier 535 AP 548. Cité de l’architecture et du patrimoine, Centres d’archives d’architecture du XXe siècle/IFA.
24
ARTIGAS, Vilanova. Caminhos da Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 225.
25
ARTIGAS, Vilanova. Op. cit., p. 181. Apud WISNIK, Guilherme. Artigas e a dialética dos esforços. Novos Estudos Cebrap, n. 102, jul. 2015, p. 162.
26
Agradecimento especial ao arquiteto Frederico Carvalho, responsável técnico pelo projeto da residência Christiana Brenner, que me recebeu em Brasília para longas sessões de conversa entre 2010 e 2011.
27
PORTO, Claudia Estrela. Les maisons de l’amitié. Le visiteur: revue critique d’architecture, n. 14, Paris, nov. 2009, p. 39.
28
LIMA, João Filgueiras. Depoimento a Adalberto Vilela. Salvador, 4 mai. 2011. In VILELA, Adalberto. Op. cit., 2017, p. 292.
29
COLQUHOUN, Alan. A importância de Le Corbusier. In Modernidade e tradição clássica. Ensaios sobre arquitetura 1980-1987. Coleção Face Norte, v. 5. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 167.
sobre o autor
Adalberto José Vilela Junior é arquiteto (2003) e mestre (2011) pela FAU UnB; doutor (2018) pela ETH Zürich e professor adjunto da FAUeD UFU. Pesquisador nas áreas de história da construção, arquitetura industrializada e afins. Autor do livro A casa na obra de João Filgueiras Lima, Lelé (EdUnB, 2017).