O termo atectônica foi resgatado por Eduard Seckler, na década de 1960, para caracterizar situações onde a falta de clareza ou de plausibilidade nas relações entre carga e suporte produziam um efeito inquietante no observador.
“A expressão tectônica pode ser deliberadamente obscura, deixando um espectador maravilhado com vastas extensões de matéria pairando aparentemente sem esforço no vazio, como em muitas igrejas bizantinas. Pode haver uma negação tectônica criada com o auxílio de formas atectônicas que tendem a perturbar o espectador” (1).
Tratou-se de um resgate porque tanto tectônica quanto atectônica eram termos recorrentes na teoria da arquitetura do século 19. Enquanto a tectônica estava presente nas publicações dos alemães Karl Bötticher (2), desde 1843, e Gottfried Semper (3), a partir de 1860, a atectônica também aparecia, por exemplo em 1888, no texto do suíço Heinrich Wölfflin acerca dos jardins barrocos.
“De duas formas supera-se a composição arquitetônica. O parque se perde numa natureza selvagem, passando aos poucos para a paisagem natural, ilimitada; então, a perspectiva aberta sobre a paisagem é essencial, as aleias são dispostas de modo que a distância torna-se o fecho; em outras palavras, o elemento tectônico incorpora em si algo atectônico, algo sem forma nem limite. Acerca desse tipo de composição, o Renascimento não havia tido nem a mais vaga ideia” (4).
Nas citações acima, tanto Seckler quanto Wölfflin utilizaram a atectônica para qualificar formas de transcendência das expressões de clareza, construtiva ou compositiva, inerentes à tectônica.
Já no século 21, em Leggerezza senza tettonica (5), Guilherme Wisnik atentaria para uma peculiar expressão “sem tectônica” da obra de Oscar Niemeyer, em termos gerais.
“Comunista declarado, Niemeyer sempre dissociou a convicção política da prática arquitetônica. O que quer dizer que a sua intuição poética não obedece ao materialismo histórico, que o empurraria na direção de uma expressividade tectônica. Antes, prefere esvaziar de expressividade a matéria — pintando o concreto de branco, ou revestindo-o com mármore, construindo formas que tendem sempre à quietude, à leveza, sublimando os grandes esforços estruturais. É por isso que muitos dos seus edifícios parecem não ter história, e, portanto, qualquer rastro de trabalho humano envolvido, sendo muitas vezes chamados de «surrealistas». Como observa Sophia Telles, Niemeyer raciocina a partir da massa dúctil e informe do concreto armado. Isto é: o concreto, para ele, não é um material de acabamento, mas a própria matéria da imaginação, razão pela qual o arquiteto não usa nunca a curva como detalhe caprichoso e ornamental, mas como princípio unificador que constrói a forma em sua integridade” (6).
Em termos mais específicos seria possível distinguir, na obra do modernista carioca, situações onde “o resultado visual nos afeta por meio de certas qualidades expressivas, que claramente têm algo a ver com o jogo de forças e o arranjo correspondente de partes no edifício, mas não podem ser descritas apenas em termos de construção e estrutura” (7). Mas também seriam encontradas situações onde “a expressão tectônica pode ser deliberadamente obscura” (8).
A expressão arquitetônica de Niemeyer já foi descrita tanto como expressão estrutural quanto como expressão plástica, o que evidencia sua complexidade e a síntese alcançada desses distintos caracteres. Estratégias compositivas tectônicas e atectônicas integraram sua obra, manifestando-se em gradações variadas na sua produção.
Em busca de um aprofundamento nessa complexidade específica, serão apresentados dois estudos de casos representativos da diversidade e da habilidade do arquiteto em transitar por suas nuances.
A escolha das obras buscou distinguir as situações compositivas tectônicas e atectônicas, frequentemente sobrepostas na produção de Niemeyer. Nesses termos, as análises terão como referenciais teóricos a teoria tectônica pioneira de Karl Bötticher e as formulações de Eduard Seckler sobre a atectônica.
Referencial teórico: a teoria tectônica
Em meados do século 19, o arquiteto e teórico alemão Karl Bötticher propôs uma abordagem da arquitetura clássica grega baseada na discretização de dois componentes essenciais — cerne e superfície — integrados em processos de síntese compositiva. A compreensão desses componentes e processos visava a aprimorar a transposição dos ideais helênicos para sua aplicação no neoclassicismo alemão (9).
Os componentes eram Werkform (10), que caracterizavam a forma operacional — estrutural e programática; Kunstform, referente à forma artística — sua configuração, materialidade e significados; e Tektonik — a síntese desses dois âmbitos, que lhes permitia tornarem-se componentes, simultaneamente, operacionais e simbólicos de uma síntese dita tectônica.
Ainda que houvesse uma distinção entre o núcleo estrutural e a superfície ornamental, Bötticher afirmava que o tratamento da superfície não deveria apenas revestir, mas revelar e ampliar a essência do núcleo construtivo, evidenciando relações simbióticas entre os componentes e a condição de síntese do conjunto resultante.
Para exemplificar tais relações e suas sínteses nas formas resultantes, serão apresentadas breves análises de duas ordens clássicas, dotadas de caracteres excepcionalmente distintos.
A delicada profusão da ornamentação (Kunstform) Coríntia, distribui-se ao longo de seu extenso capitel, que arremata a coluna provida de base e fuste, todos com secções estruturais (Werkform) esbeltas. No capitel, a representação ornamental do crescimento das folhas de acanto sugere um movimento ascendente, inverso ao peso, remetendo à ideia de leveza. Afinal, só a leveza poderia ser suportada por um arranjo vegetal e, neste caso, a retração da arquitrave escalonada sugere um alívio na massa do entablamento, que pousa sobre o buquê de acanto no capitel. Segundo Vitrúvio, o conjunto expressaria elegância e delicadeza femininas (11).
Já a austeridade ornamental Dórica, em seu compacto capitel, reiterava as proporções vigorosas do fuste sem base. O equino comprimido sob o ábaco alude à deformação descendente, sob o peso da arquitrave maciça e, junto com o fuste robusto, sugerem toda a força de suporte em seu caráter muscular. O tratamento austero responde fundamentalmente ao peso, resultando em percepções de força e estabilidade. Também segundo Vitrúvio, seria a expressão das proporções e da solidez de um corpo masculino (12).
Enquanto sistemas tectônicos, cada ordem detém caracteres peculiares, com os tratamentos superficiais a revelar as essências dos núcleos e ambos resultando em sistemas, simultaneamente, estruturais e simbólicos. Ambas as ordens suportam suas cargas e exprimem seus caracteres de sutil exuberância Coríntia ou de austero vigor Dórico.
Na arquitetura de Niemeyer, o tratamento das superfícies também reafirmaria a essência dos núcleos, numa síntese das recorrentes ideias de plasticidade, leveza, bem como a lógica estática ou sua transcendência, respectivamente em expressões tectônicas ou atectônicas.
A pertinência das relações entre cerne, superfície e sua integração em formas sintéticas persiste na história da arquitetura. A transposição da teoria tectônica para o contexto da arquitetura moderna foi adaptada e utilizada como metodologia analítica em diversas publicações (13), com sua aplicação reiterada neste artigo.
Atectônica de Oscar Niemeyer
A igrejinha da unidade de vizinhança: Generalidades e antecedentes
A igreja Nossa Senhora de Fátima, inaugurada em 1958, foi a primeira a ser construída numa unidade de vizinhança em Brasília, como um dos equipamentos comunitários típicos da interpretação modernista de um bairro de classe média da época.
A pequena capela, com capacidade para cerca de cinquenta pessoas, acabou se tornando um dos símbolos mais populares da cidade e de uma emergente cultura urbana local. Para tanto, contribuíram sua forma peculiar e o inspirado painel de azulejos de Athos Bulcão. A imagem da pomba invertida decora desde souvenires, roupas e objetos cotidianos, até os corpos tatuados da juventude local, num bárbaro sucesso, a despeito da reprovação de Adolf Loos (14).
Não tiveram a mesma sorte as pinturas murais de Alfredo Volpi, vandalizadas pelo preconceito em 1964. Imbuído da necessária tenacidade cultural, em 2009 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan encomendou novos murais, profundamente afiliados aos originais, de autoria de Francisco Galeno.
Ao ritmo das atribulações cotidianas, mas com vigor renovado, a igrejinha da unidade de vizinhança segue sua história de significativa representante da arquitetura moderna, profundamente enraizada na cultura local.
Os antecedentes de sua forma arquitetônica já foram diligentemente analisados, por exemplo, por Arakaki (15), que cita a capela de Ronchamp, Le Corbusier (1950-1955), e a residência Cavanelas, Niemeyer, 1954, como referências para o projeto.
Como em Ronchamp, o edifício situa-se num espaço aberto e pode ser visto de todos os lados, além de prestar-se a cerimônias campais. O acesso como fenda entre paredes curvas e as aberturas geométricas irregulares também aparecem na igrejinha brasiliense, com interpretações próprias. Também é possível relacionar a percepção de uma cobertura triangular com vértice elevado, que a vista sudeste da igreja de Notre-Dame du Haut sugere.
Como referência mais próxima, a residência Cavanelas teria legado os pilares triangulares com lado curvo, que transmitiam a ideia de sustentar em seus vértices uma cobertura, também curva, cuja forma sugere ceder sob o peso em sua porção central. Essa mesma ideia fundamental transformou-se na igrejinha, impulsionada pela condição de templo e de marco urbano local.
No campo das referências populares, para descontrair, não custa lembrar a analogia com os chapéus tipo cornette das freiras Vicentinas, aos quais remeteriam a leveza, a curvatura e a cor branca da cobertura.
As formas livres e pregnantes de Niemeyer frequentemente se prestaram a esse tipo de apropriação cultural. Como não derivavam de um repertório tradicional reconhecível, eram associadas a objetos comuns pela população, para assim se integrarem ao seu cotidiano.
Werkform — a forma operacional
A edificação baseou-se numa cobertura suspensa sobre a fita de paredes da nave, estas recuadas sob a sombra, delimitando um perímetro aproximadamente triangular. Após o acesso, pelo vértice frontal interrompido, o espaço da nave dilata-se rumo ao plano de fundo do altar, terminado antes de se fechar nos vértices abaulados do perímetro, por onde se acessa a sacristia. Enquanto se dilata em planta, a nave perde altura em corte, na direção do altar largo e baixo, em sutil compensação.
A cobertura, triangular em planta, apoia seus vértices nos vértices dos pilares, triangulares em corte. Seu perfil ascende em direção aos apoios, exaltando a relação entre a carga da cobertura e o suporte dos pilares, em secções mínimas e em delicadas relações geométricas de sobreposição, nos pilares posteriores, ou intersecção de arestas, no pilar frontal. A evidência dessas articulações, pela forma e pela clareza, sugere o protagonismo estrutural dos três apoios da cobertura, numa leitura eloquente, ainda que inviável, em termos da estática.
Tal impressão acometeu o engenheiro italiano Pier Luigi Nervi, que após visita a Brasília, deu-se ao trabalho de questionar a evidência visual do tríplice apoio na igrejinha. Segundo ele, se a cobertura triangular, com quase trinta metros de lado, estivesse apoiada apenas nos três suportes evidenciados, esta ancoragem geraria tensões horizontais e momentos de engaste inviáveis na base dos pilares (16).
De fato, a vista superior da cobertura fornece os indícios de que a solução estrutural não se restringe aos pilares visíveis. Vistas do alto, cinco vigas em leque partem do vértice frontal, sem confluências para os pilares posteriores. Apenas as duas vigas externas chegam aos pilares posteriores e a ligação entre esses pilares se dá por uma borda afilada, inviável como viga mestra, ou seja, os planos de fechamento devem conter apoios intermediários e participar ativamente como elementos de suporte da cobertura.
Conforme a análise de Arakaki, Azambuja e Sánchez (17), a solução estrutural valeu-se de vigas-faixa intermediárias apoiadas em pilares embutidos nas paredes, resultando em vigas principais de cobertura com múltiplos vãos, como parte de um hábil jogo de distribuição de cargas, incluindo o alívio de momentos com apoios elásticos.
Kunstform — a forma artística
Não casualmente a cor branca teria sido a preferida do movimento moderno, numa estética que valorizava a percepção de formas geométricas sob a luz. As gradações de tonalidades oriundas das diferenças entre ângulos de incidência nas superfícies são melhor percebidas na cor branca.
O tratamento das superfícies da Igrejinha distingue, com a cor branca, as faces visíveis da cobertura e os três pilares externos, de maneira a maximizar sua reflexão, seus contrastes e sua evidência sob a luz. Assim foi assegurada uma clara percepção da complexidade geométrica das concordâncias entre curvas, retas e variações dos perfis. O tratamento das superfícies revela e amplifica a geometria das secções de concreto armado do núcleo estrutural.
A evidenciação da geometria não se encerra numa lógica intrínseca, uma vez que a composição também se relaciona com a axialidade do conjunto urbano e com a maneira peculiar como a presença do edifício qualifica a espacialidade do entorno. Tais relações também se evidenciam através das qualidades sensoriais do revestimento branco.
Já nos planos de fechamento da nave, as superfícies expressam um caráter regional e uma materialidade acolhedora. Desde a porta de entrada, treliçada como um muxarabi, passando pelos azulejos decorados nas faces externas até as pinturas murais internas, as referências à cultura colonial, suas apropriações modernas e nuances naïf criam a atmosfera do lugar, no sentido fenomenológico descrito por Norberg Schulz.
“O que se quer dizer com o termo “lugar”? Claro que nos referimos a algo além de uma localização abstrata. Pensamos numa totalidade constituída de coisas concretas que possuem substância material, forma, textura e cor. Juntas, essas coisas determinam uma “qualidade ambiental” que é a essência do lugar. Em geral, um lugar é tido como esse caráter peculiar ou “atmosfera” (18).
No âmbito da teoria tectônica, os azulejos e os murais internos reiteram a vocação compositiva dos planos que revestem, como a forma artística deve revelar a essência de seu núcleo.
Neste aspecto, é preciso observar que o edifício se apresenta em duas escalas de percepção. A cobertura e seus pilares visíveis estabelecem a primeira, numa imagem integrada ao entorno e à percepção na escala urbana. Já a nave, recuada sob a sombra, tem sua superfície sombreada também pela textura dos azulejos, com grafismos reduzidos à escala da palma da mão humana. Nessa segunda escala, o painel e os murais internos contribuem para qualificar o lugar, a atmosfera da igrejinha, que se estende por sua praça externa e que deu nome à via comercial de acesso — a rua da igrejinha, como a designam os brasilienses.
Tektonik — a articulação tectônica
A Igrejinha situa-se num espaço amplo e aberto, na Entrequadra 307/308 Sul, em posição elevada para um observador que adentra a Unidade de Vizinhança pelo comércio local, após deixar as vias de trânsito rápido.
A geometria geral do edifício é precisa e eloquente em suas relações com a axialidade da implantação e do conjunto urbano. Situada num cruzamento de eixos viários e compositivos das quatro quadras, seu triângulo se acomoda, se estabiliza e exerce um efeito estabilizador no conjunto.
A base posterior do triângulo integra-se à ortogonalidade do conjunto urbanístico e o vértice sudeste assinala um ponto focal da via de acesso, como marco topoceptivo, situação onde a curvatura ascendente da cobertura revela toda sua pertinência.
Essa curvatura sugere a deformação de um plano flexível sob seu peso, respondendo à reação dos apoios, numa lógica própria de expressão estrutural e plasticidade. Ao mesmo tempo, cria um acesso acolhedor ao edifício, que se expande em sua relação com o entorno enquanto ponto focal da via comercial, tornando-a um acesso receptivo ao conjunto urbanístico da unidade de vizinhança.
Os elementos relativos à escala urbana — a cobertura e os pilares externos — são delineados por retas e curvaturas amplas, adequadas à percepção distante, característica reiterada pelas superfícies brancas. Cobertura e pilares estão articulados nos vértices, em secções ínfimas, sugerindo leveza, afinal, tal escassez de matéria não permitiria resposta ao peso. Nessa estratégia compositiva, os elementos diminuem suas secções em direção às articulações, produzindo o efeito visual de alívio do peso, francamente oposto à realidade física de brutal aumento nas tensões decorrente desta configuração.
Essas contradições entre a expressão visual e a realidade física vinham sendo exploradas na obra de Niemeyer, ao longo da década de 1950. Caracterizavam-se pela busca por limites de esbeltez, minimização de zonas de engaste e obliteração de apoios, situações onde “a expressão tectônica poderia ser deliberadamente obscura” (19), traduzindo-se em atectônica.
Numa escala de percepção mais próxima, o tratamento das paredes estabelece uma relação mais particular com o usuário, por meio de signos familiares da iconografia católica. A pomba do Espírito Santo é um caso raríssimo de desenho figurativo na obra de Athos Bulcão. Integrada à escala humana, a ornamentação distingue a vocação de acolhimento da nave, assim como as superfícies brancas evidenciam o caráter de marco urbano da cobertura.
Tectônica de Oscar Niemeyer
O Touring Club: Breve história e generalidades
No Relatório do Plano Piloto de Brasília, Lúcio Costa descreveu uma edificação a ser situada em posição simétrica ao teatro da ópera. Assim como ele, deveria articular uma das praças de pedestres, na cota da plataforma da rodoviária, ao setor cultural correspondente, na cota mais baixa. Seria um “pavilhão de pouca altura debruçado sobre os jardins do setor cultural e destinado a restaurante, bar e casa de chá” (20).
A ópera se tornou o Teatro Nacional e o pavilhão de pouca altura viria a ser a sede do Touring Club do Brasil, extrapolando os usos vislumbrados por Lúcio Costa. Na época, a importância e a visibilidade da entidade (21) sugeriam a capacidade de implantar uma sede digna da prestigiada localização.
Neste contexto, a cessão do terreno foi autorizada pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital em 1960 (22) e Oscar Niemeyer deu forma ao edifício em 1962. O projeto buscou garantir qualidades espaciais compatíveis com a implantação privilegiada, ainda que sua utilização por um clube privado de serviços automotivos nunca tenha sido favorável à vocação de acesso público.
Os desenhos e a maquete foram apresentados na Revista Módulo em outubro de 1962 (23). Ali ficava evidente a estratégia do arquiteto na condução do programa de necessidades, ampliando áreas que pudessem acolher público externo e garantir um caráter aberto ao edifício.
Os dois térreos, nos níveis dos setores de diversões e cultural, exibiam amplos salões envidraçados franqueados ao público. As áreas administrativas e de serviços tiveram tratamento distinto, condensadas no nível do setor de diversões, na sobreloja intermediária ou afastadas em anexos.
Como parte das alterações do projeto executivo, o térreo superior foi destacado três metros da plataforma, o anexo de serviços sul também foi destacado num volume autônomo e a escadaria foi deslocada para o salão do acesso, esta ganhando evidência com sua forma escultórica.
As varandas debruçavam-se na direção dos idílicos jardins do setor cultural, cuja articulação com a praça do setor de diversões foi duplamente realizada. Externamente, uma passagem pública de pedestres partia da praça, por sob a via em frente ao Touring, em direção ao nível do setor cultural no pilotis do edifício. Internamente, uma ampla escadaria em curva articulava as áreas comuns do salão principal e do pilotis.
Entretanto, desde o início de sua operação a realidade da instituição foi se sobrepondo ao projeto da revista Módulo. Logo um posto de combustíveis dominou o pilotis com bombas, guinchos estacionados e serviços mecânicos expandindo-se pelos jardins do setor cultural sul, cuja ocupação pioneira se deveu à cultura do automóvel.
A partir da inauguração, a manutenção do prédio sempre foi insuficiente, o que levou a um aspecto de deterioração precoce. Com a decadência definitiva da entidade, após um período de total abandono, a propriedade acabou leiloada em 2005. Desde então, foi alugada pela primeira empresa proprietária para usos variados, desde mostras de decoração, passando por órgãos do governo local, até rodoviária metropolitana. Em 2015, após protestos populares, o Iphan impediu a utilização do prédio como templo religioso (24), baseado em seu tombamento. Alguns desses usos legaram intervenções indevidas, como fechamentos em alvenaria, pintura da estrutura aparente e demolições parciais.
Em sua melancólica decadência, uma curiosa relação foi construída entre o edifício e a população, afeiçoada ao seu breve apogeu ou, talvez, à ideia semeada por Lúcio Costa do que ele poderia ser. Grupos ligados à cultura seguem defendendo-o de um destino pior. Ao final de 2019, o Serviço Social da Indústria — Sesi adquiriu o edifício com a intenção de implantar um espaço de ciência inovação e arte, renovando a esperança de que o edifício possa, novamente ou finalmente, responder à sua vocação.
Werkform — a forma operacional e antecedentes
A estrutura do edifício baseou-se num plano retangular elevado à altura da plataforma rodoviária, sobre duas linhas de pilares recuadas das bordas, que prosseguiam para serem arrematadas por uma peculiar cobertura. Esta seria análoga à pérgola da piscina no Iate Clube da Pampulha e também à segunda proposta para o auditório da Aula Magna na Universidade de Brasília (25), todas de 1962, compartilhando a matriz tectônica (26) criada pelo arquiteto.
Entenda-se por matriz tectônica uma configuração tipológica, simultaneamente estrutural e expressiva, reprodutível a partir de características fundamentais.
A cobertura se desenvolveu a partir de duas vigas longitudinais, pouco evidentes, apoiadas sobre as duas linhas de pilares. Uma série de vigas de inércia variável se dispunha, transversalmente às principais, ao longo de toda a extensão das vigas mestras.
O reduzido espaçamento desses elementos sugere a percepção de um volume baixo e ondulado, embora aliviada a sensação de massa que sua superfície contínua produziria. A percepção gestáltica deste peculiar volume sem peso era evidenciada pela exposição de suas bordas à luz, tanto quanto os pilares e as vigas mestras seriam obliterados pelo recuo para zonas de sombra. O jogo corbuseriano dos volumes sob a luz foi desempenhado com a maestria de quem subtraiu do volume sua massa, legando essa entidade peculiar ao repertório da arquitetura moderna. Assim como na cobertura do Iate Clube da Pampulha, as secções transversais, altas junto aos apoios nas vigas longitudinais, diminuíam até as extremidades, favorecendo os amplos balanços e estabelecendo o perfil sinuoso da cobertura.
A correspondência entre os perfis dessas vigas e seus diagramas de momento fletor refletia a lógica estrutural. Os pilares recuados e os amplos balanços favoreciam a lógica programática com vistas livres, debruçadas sobre os jardins, resultando numa síntese estrutural e programática típica do conceito de forma operacional.
Ainda que a variação de alturas das vigas fosse pertinente, no âmbito das solicitações estáticas, ela foi exagerada com finalidades expressivas, conforme verificado por Castro Junior e Buzar (27). A estratégia foi inequívoca num “resultado visual [que] nos afeta por meio de certas qualidades expressivas, que claramente têm algo a ver com o jogo de forças e o arranjo correspondente de partes no edifício, mas não podem ser descritas apenas em termos de construção e estrutura” (28), traduzindo-se numa expressão tectônica.
Kunstform — a forma artística
Dois tratamentos distinguem os dois elementos fundamentais da composição no edifício principal. O plano de base elevado teve suas bordas revestidas por placas de mármore branco, mesmo tratamento das bordas livres da plataforma da rodoviária, que articula, por similaridade, o térreo do edifício ao conjunto urbanístico, como um destaque da matéria que compõe a plataforma. Já a cobertura tinha as vigas sinuosas em concreto aparente, com a natureza explícita do material a reiterar seu protagonismo estrutural. Sob ela, uma caixilharia leve delimita o fechamento das faces leste e oeste, entre as linhas de pilares, até as paredes cegas das extremidades Norte e Sul.
O plano da sobreloja e os pilares, todos recuados sob a sombra, obliteram-se em sua condição de coadjuvantes discretos.
Tektonik — a articulação tectônica
A implantação distinguiu dois térreos: Um deles público, acessível pelo setor de diversões e outro para os associados na cota do setor cultural.
O plano elevado do térreo público destaca-se da plataforma como um mirante sombreado, minimamente contido pelo envidraçamento e aberto para as varandas circundantes. Ao rés do chão, no setor cultural, o pavimento dos serviços automotivos não tinha uma delimitação clara, atendia aos associados, suas máquinas e suas demandas peculiares sob o plano elevado, estendendo-se pelo anexo sul e pelo entorno pavimentado. No projeto de 1962, parte desse programa e as docas para reparos estavam incrustadas no muro da plataforma, em sua melhor solução hierárquica, deixando o pilotis livre para reiterar o caráter público do piso superior e receber a rampa de pedestres, oriunda do setor de diversões.
Em suma, o partido definiu com clareza o mirante da plataforma rodoviária, com espaços subjacentes permeando seu pilotis. O mirante envidraçado situava-se entre uma base branca, derivada da plataforma, e uma cobertura peculiar em concreto aparente. As lâminas de concreto sucessivas e a base eram articuladas por eixos contrapostos de vigas mestras e pilares, ambos bastante espaçados e pouco evidentes. O tratamento das superfícies revelava a essência dos núcleos estabelecendo os distintos papéis na composição geral, em sintética articulação tectônica.
Conclusão — definindo um lugar ao sol
A adequada compreensão da síntese tectônica exige considerar certos aspectos, além de uma relação intrínseca entre forma operacional e forma artística. Um desses aspectos é a relação desses âmbitos com o lugar, notavelmente evidenciada no século 20, por exemplo, pela arquitetura orgânica de Frank Lloyd Wright. Convém reiterar que as ideias de Wright tratavam de mais uma renovação do compromisso imemorial entre a arquitetura e seu lugar, vigente desde os assentamentos humanos primitivos.
No contexto do movimento moderno, a arquitetura brasileira destacou-se do Estilo Internacional a partir da década de 1940, tendo a expressão estrutural e a relação com o lugar como características identitárias.
Nas relações das obras analisadas com seus contextos urbanos, fica evidente que a cobertura triangular da igrejinha responde à axialidade da unidade de vizinhança, assim como o plano de base elevado do Touring deriva da plataforma da rodoviária. Em ambos os casos, as articulações tectônicas incluíram relações indeléveis com os lugares, observáveis nas formas e em seus tratamentos.
Outro aspecto integrante da articulação tectônica moderna é a hierarquia da luz. A gradação de evidência na exposição à luz define o grau de protagonismo dos elementos da composição. Num primeiro plano de exposição ao sol, situam-se os elementos principais, aqueles que definirão a primeira imagem do conjunto, geralmente destacados pelo tratamento das superfícies. Nas zonas de sombra, próximas ou deliberadamente profundas, os coadjuvantes são acomodados na medida de sua importância. Dessa maneira, o painel de azulejos da igrejinha tem um breve recuo sob a cobertura, enquanto os pilares e vigas mestras do Touring Club mal são percebidos na profundidade das sombras.
Nesses termos, desenvolveu-se a complexa gama de estratégias compositivas integrantes da expressão (a)tectônica de Oscar Niemeyer, em busca da definição de um lugar ao sol.
notas
1
SEKLER, Eduard. Structure, construction, tectonics. In KEPES, Gyorgy (org.). Structure in art and in science. Nova York, George Braziller, 1965, p. 94. Tradução do autor.
2
BÖTTICHER, Karl. Die Tektonik der Hellenen. Potsdam, Riegel, 1843.
3
SEMPER, Gottfried. Der Stil in den technischen und tektonischen Künsten oder Praktische Ästhetik. Frankfurt, Main & München, 1860-1863.
4
WÖLFFLIN, Heinrich. Renaissance und Barok — Eine Untersuchung über Wesen und Entstehung des Barockstils in italien. München, Theodor Ackermann Königlicher Hof Buchhandler, 1888, p. 124. Tradução do autor.
5
WISNIK, Guilherme. Leggerezza senza tettonica. Domus, n. 898, Milão, dez. 2006, p. 72–75. Tradução do autor.
6
WISNIK, Guilherme. Op. cit. p. 73.
7
SECKLER, Eduard. Op. cit. p. 89.
8
Idem, ibidem.
9
ANDRADE, Rogério Pontes. Matrizes tectônicas da arquitetura moderna brasileira 1940-1960. Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília, 2016, p. 7-13.
10
A partir da edição de 1871, o termo Kernform (forma nuclear) daria lugar a Werkform (forma operacional), talvez evidenciando a busca por um alinhamento com o contexto industrial da estética prática, explorada por Gottfried Semper e difundida no ambiente teórico alemão a partir de 1860. BÖTTICHER, Karl. Op. cit.
11
POLIÃO, Marco Vitrúvio. Da Arquitetura. São Paulo, Hucitec/Annablumme, 2002, p. 106.
12
Idem, ibidem.
13
AMARAL, Izabel. Tensions tectoniques du projet d'architecture: études comparatives de concours canadiens et brésiliens (1967-2005). Tese de doutorado. Montreal, Université de Montréal, 2010; MACEDO, Danilo Matoso; SILVA, Elcio Gomes da. Ordens Tectônicas no Palácio do Congresso Nacional. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 131.00, Vitruvius, abr. 2011 <https://bit.ly/3rEuvzd>; ANDRADE, Rogério Pontes. Matrizes tectônicas da arquitetura moderna brasileira 1940 — 1960 (op. cit.); dentre vários outros.
14
Com o perdão da ironia, em 1908 Adolf Loos escreveu o polêmico e influente texto “Ornamento e crime”, onde relacionava todo tipo de ornamentação a um primitivismo cultural negativo, com ênfase às tatuagens. “O Papua faz tatuagens na sua pele, na canoa, no seu remo — enfim, em tudo o que puder alcançar. Ele não é nenhum criminoso. O homem moderno que faça tatuagens, ou é criminoso, ou é degenerado. Há prisões em que 80% dos reclusos apresentam tatuagens. Os tatuados que não estão presos ou são potenciais ladrões ou aristocratas degenerados. [...] Eu cheguei à seguinte conclusão, que quero partilhar com o mundo: a evolução cultural é proporcional ao afastamento do ornamento em relação ao utensílio doméstico”. LOOS, Adolf. Ornamento e crime. Lisboa, Livros Cotovia, 2004.
15
ARAKAKI, Suyene Riether. Igreja Católica de superquadra: origens da concepção arquitetônica. Dissertação de mestrado. Brasília, Universidade de Brasília, 2012, p. 19-22.
16
ROGERS, Ernesto Nathan; NERVI, Pier Luigi. Critica delle strutture. Architettura e strutturalismo. Casabella-Continuità, n. 229, Milão, jan. 1959, p. 4-5.
17
ARAKAKI, Suyene Riether; AZAMBUJA, Eduardo Bicudo de Castro; SÁNCHEZ, José Manoel Morales. Forma arquitetônica e função estrutural da Igreja Nossa Senhora de Fátima em Brasília. Paranoá: cadernos de arquitetura e urbanismo, v. 15, n. 15, Brasília, out. 2015, p. 63-69.
18
NORBERG-SCHULZ, Christian. The Phenomenon of Place. Architectural Association Quartely, vol. 8, n. 4, Oxford, 1976, p. 3. Tradução do autor.
19
SECKLER, Eduard. Op. cit. p. 89.
20
COSTA, Lucio. Relatório do Plano Piloto de Brasília. Brasília, GDF, 1991, p. 24.
21
SÁ, Cecília Gomes de. Setor Cultural de Brasília: contradições no centro da cidade. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, PPGAU UFRGS, 2014, p. 90.
22
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Parecer técnico n. 2 de 18 nov. 2015. Brasília, Iphan, 18 nov. 2015, p. 2 <https://bit.ly/3vwmIon>.
23
Sede do Touring Club do Brasil em Brasília. Revista Módulo, n. 30, Rio de Janeiro, out. 1962, p. 32-34.
24
Idem, ibidem.
25
Praça Maior da Universidade de Brasília. Revista Módulo, n. 28, Rio de Janeiro, jun. 1962, p. 15.
26
ANDRADE, Rogério Pontes. Matrizes tectônicas. Expressão estrutural e tipologia no racionalismo carioca.
27
CASTRO JÚNIOR, Francisco Afonso de; BUZAR, Marcio Roma. Oscar Niemeyer e a integração arquitetura e estrutura. Edifício Touring de Brasília. Arquitextos, São Paulo, n. 214.03, Vitruvius, mar. 2018 <https://bit.ly/3ExtgXF>.
28
SECKLER, Eduard. Op. cit., p. 89.
sobre o autor
Rogério Pontes Andrade é doutor em teoria e história da arquitetura pela Universidade de Brasília (2016). Foi professor de projeto e teoria da arquitetura entre 2000 e 2019. Atua como arquiteto desde 1997, com projetos e obras construídas em vários estados, incluindo premiações e vitórias em concursos e licitações, como os primeiros lugares para as sedes do Iphan e do Parque Tecnológico de Brasília.