A arquitetura dos cortili clássicos (claustros ou pátios com pórticos) no Renascimento italiano surge em Florença, onde Brunelleschi projetou um exemplar pioneiro no Ospedale degli Innocenti, iniciado em 1419. O claustro deste orfanato possui planta quadrada e quatro pórticos com cinco vãos, tendo sua construção sido iniciada em 1427. O Palazzo Bardi ou Busini, já atribuído a Brunelleschi (1), também tem um cortile de planta quadrada, com quatro pórticos de três vãos. Este palácio foi construído em torno de 1430, data próxima ao cortile anterior de Brunelleschi (2) e representa a introdução de um modelo ideal de claustro clássico numa residência privada. Michelozzo foi autor de outro cortile importante, cerca de quinze anos mais tarde, no Palazzo Medici (1444–1458). Este pátio também possui planta quadrada e quatro pórticos de três vãos. Os pórticos dos pátios acima mencionados seguem o modelo do pórtico de entrada do Ospedale degli Innocenti, de Brunelleschi, concluído em 1424: colunas delgadas, capitéis inspirados no classicismo, arcos semicirculares apoiados nas colunas e intercolúnios regulares. A planta quadrada destes pátios (lados iguais com ritmo regular de vãos similares) manifesta o intento da ordenação geométrica do espaço. Ao longo de sua obra, o próprio Brunelleschi busca um sentido mais preciso de proporções e coordenação de partes nos pórticos das naves laterais das igrejas de San Lorenzo (iniciada em 1425) e Santo Spirito (iniciada em 1444). Permanecem os arcos semicirculares apoiados em colunas, mas a razão modular de 1:1 entre o intercolúnio e a altura da coluna (até a base do arco), aplicada no pórtico de acesso ao orfanato, muda para 1:1½ nos pórticos das igrejas (medidas aproximadas). As colunas tornam-se mais robustas e verticalizadas, adquirindo maior protagonismo no conjunto. Em suas igrejas, Brunelleschi também introduz um bloco de imposta sobre o capitel coríntio, como um trecho de entablamento descontinuado, em reconhecimento à necessidade deste elemento como terminação adequada à coluna clássica.
Contudo, a solução de apoiar arcos sobre colunas não está ligado a exemplos da antiguidade clássica, exceto por situações isoladas como a colunata do Canopo da Villa Adriana. Inspirado pela antiguidade clássica, Brunelleschi adapta os elementos da sua linguagem aos tipos de edifícios e tradições construtivas medievais de sua época. Nessa adaptação, ele submete o edifício a um processo de ordenação geométrica, que se manifesta visualmente pelo uso coordenado dos elementos clássicos (colunas, pilastras, capitéis, entablamentos). Apesar do avanço alcançado pela pesquisa de Brunelleschi quanto à incorporação de precedentes clássicos em seus pórticos, ele não parece ter buscado um rigor arqueológico nessa tarefa. A geração seguinte de arquitetos florentinos se contenta em reproduzir e adaptar seus modelos, ao invés de levar adiante suas investigações sobre os precedentes clássicos.
O cortile do Palazzo Medici (iniciado em 1444) tem solução similar ao pórtico de entrada do Ospedale degli Innocenti, tal como o cortile do Palazzo Piccolomini em Pienza (1459–1464). Nestes dois palácios há pátios quadrados com pórticos nos quatro lados, onde se nota a manutenção do arco semicircular apoiado diretamente numa coluna de capitel coríntio, sem o bloco de imposta. Nos cortili do Palazzo Rucellai (iniciado em 1455), do Palazzo Pazzi (1458–1469) e do Palazzo Strozzi (1489–1536), as proporções dos pórticos seguem a versão mais madura de Brunelleschi: o intercolúnio torna-se menor que a altura da coluna, conferindo ao módulo um sentido mais vertical (3). Nas esquinas, não há solução especial, mas apenas a repetição da coluna no encontro de dois arcos em ângulo reto. Brunelleschi, que propôs terminações especiais com pilastras altas no pórtico principal do Ospedale degli Innocenti e em suas duas basílicas florentinas, não chegou a concretizar algo do tipo no cortile do próprio Ospedale, que não foi executado por ele.
Em Roma, na época da eleição do papa Paulo II (1464), o desenvolvimento da coordenação clássica na arquitetura de pátios com pórticos estava muito atrás do que havia sido alcançado em Florença. Os claustros de San Cosimato (1475) e San Giovanni dei Genovesi (1481) mostram a arcaica solução medieval do pilar octogonal com capitéis coríntios apoiando arcos semicirculares, que tem como precedente o Palácio do Bargello em Florença (palácio de 1255–1345; cortile de Neri da Fioravanti, 1345–1367). Portanto, Roma seguia modelos florentinos de mais de um século atrás. Segundo Lotz, na segunda parte do século 15 surgem novidades em relação à solução de esquina dos pátios, tais como o claustro do Palazzeto Venezia (Roma, 1466–1467, Francesco del Borgo), o claustro de Santa Maria de’ Pazzi (Florença, 1490, G. da Sangallo) e o de San Pietro in Vincoli (Roma, c. 1480) (4). Contudo, as observações de Lotz se concentram em claustros religiosos e dão atenção secundária ao importante cortile do Palazzo Venezia, construído a partir de 1472. A análise mais detida deste cortile mostra que ele incorpora avanços na compreensão das referências clássicas que superam os exemplos acima referidos (5).
O Palazzo Venezia e sua reforma
A igreja de San Marco Evangelista al Campidoglio e o antigo palácio adjacente foram ocupados pelo cardeal veneziano Pietro Barbo após sua consagração em 1451. Posteriormente, o palácio tornou-se sede da embaixada da República Veneziana em Roma, motivo pelo qual adquiriu o nome de Palazzo Venezia. Em 1455, Barbo começou a reformar o palácio (6). Em 1465, um ano após ser eleito papa com o nome de Paulo II, Barbo inicia uma nova obra que envolve uma grande ampliação do palácio e da igreja, fruto de sua decisão de residir ali e não no Vaticano, fato incomum para um papa. Paulo II inclui nessa decisão uma revitalização da área do entorno do palácio, assim como das vias de acesso a ele. A construção do Palazzetto, um claustro ajardinado com pórticos ao redor, cria duas praças separadas, uma diante do palácio e outra diante da igreja. O palácio se estende diante de sua praça como terminação monumental da antiga Via Flamínia (atual Via del Corso), que leva em linha reta até a Porta del Popolo, importante entrada da cidade. Outra ala do palácio é construída a partir da esquina com a Via Papale (atual Via del Plebiscito), outra artéria importante que, por sua vez, faz conexão com o Vaticano. A igreja abre-se para a segunda praça, onde é construído um pórtico de dois níveis, que serve como acesso e como local para o papa dirigir-se aos fiéis reunidos na praça em ocasiões solenes. Naquele momento, o papa transferiu algumas atividades do Vaticano para o entorno do Palazzo Venezia, assim como buscou atrair mercadores e artesãos para a área, procurando ativar o local (7).
Reunindo todos estes elementos, o programa construtivo do papa abrange a reforma e ampliação do palácio residencial, um novo claustro com jardim, um novo pórtico para a igreja, obras no seu interior e um cortile no interior do palácio (8). Para dirigir os trabalhos, Paulo II traz o arquiteto das obras no Vaticano, Francesco del Borgo (9). Originalmente um erudito de formação humanista associado à administração papal, del Borgo já havia atuado como arquiteto na época do papa anterior (Pio II, 1458–1464). Sua obra de maior destaque fora a Loggia delle Benedizioni, um pórtico clássico de dois níveis construído à frente do átrio da antiga basílica de San Pietro. Este pórtico tinha a função de enquadrar o espaço aberto diante da igreja, provendo uma plataforma elevada para o comparecimento do papa em ocasiões solenes. Iniciada em 1461 (10), a obra é pioneira na retomada do tema dos arcos enquadrados por ordens clássicas. Tal sistema estava ilustrado pelas fachadas do Coliseu e do Teatro de Marcello, em Roma, mostrando a combinação entre o sistema de colunas apoiando um entablamento ou viga, de origem grega, com o sistema de arcos e abóbadas apoiadas em pilares ou muros, de origem romana.
A Loggia delle Benedizioni e seus precedentes clássicos
Pelo fato de ser um pórtico, a Loggia delle Benedizioni está diretamente relacionada ao problema do projeto de pátios clássicos ou cortili, no Renascimento. Nela vemos, pela primeira vez de forma explícita, a retomada do tema clássico da superposição de uma trama regular de colunas clássicas a uma estrutura mural de arcos e abóbadas. A compreensão da distinção entre estes dois sistemas havia sido manifestada na pintura e escultura florentina do início do século 15. Donatello, no tabernáculo que esculpiu em Orsanmichele (1423) e Masaccio, no afresco Santa Trinitá em Santa Maria Novella (1426–1428) o aplicaram como molduras para suas obras. Brunelleschi, em suas últimas obras, havia intuído a distinção destes sistemas em uso combinado, como demonstrado por seus projetos para a lanterna da cúpula da catedral de Florença (concurso em 1432) e nas tribunas mortas da cúpula do mesmo edifício (iniciadas em 1438). A segunda obra expressa de forma evidente o tema ao apresentar um cilindro com cinco nichos arqueados separados por seis duplas de semicolunas coríntias que suportam um entablamento. Nestas tribunas, Brunelleschi não demarca a separação entre a imposta do arco e seus apoios, tal como ocorre nas fachadas do Coliseu e do Teatro de Marcello. A demarcação dessa divisão é importante, pois explicita visualmente a presença de um segundo sistema estrutural (arcos e pilares) sob o primeiro (colunas e entablamentos). Ainda assim, a elevação das tribunas mortas da catedral de Florença representa um notável avanço na compreensão arquitetônica do pórtico clássico romano, em relação a obras anteriores de Brunelleschi, como o pórtico de entrada do Ospedale degli Innocenti.
Lorenzo Ghiberti, nos painéis de bronze para as Portas do Paraíso, no Batistério de San Giovanni, em Florença (1425–1452), também distinguiu claramente o sistema trilítico de pilastras e entablamentos do sistema de arcos apoiado em muros. No painel sobre a vida de Isaque, um pórtico de planta retangular serve de pano de fundo aos personagens. No painel ao lado, sobre a vida de José, Ghiberti diversifica apresentando um pórtico de planta circular. Tal como Brunelleschi, Ghiberti não define uma cornija que separe o arco de seu suporte mural. Em distinção, ele usa pilastras simples ao invés das semicolunas em pares, usadas nas tribunas mortas de Brunelleschi, pois a forma plana das primeiras não compete com a tridimensionalidade de seus personagens na escultura. A presença destes pórticos na obra de Brunelleschi e Ghiberti mostra que a pesquisa de motivos arquitetônicos nas ruínas romanas era intensa naquele momento (11).
Leon Battista Alberti é o primeiro a demonstrar a clara compreensão arquitetônica destes dois sistemas combinados na fachada principal do Templo Malatestiano, em Rimini (projeto de 1450). Inspirada nos arcos triunfais romanos (12), esta fachada apresenta quatro semicolunas de ordem coríntia, que suportam um entablamento com projeções sobre os capitéis. Nos vãos entre as semicolunas encontram-se arcos que se apoiam em frisos com cornijas não contínuos, mas alinhados. Desse modo, a autonomia de cada sistema está claramente afirmada. O sentido estrutural do friso com a cornija fica claro nas fachadas laterais, onde ele se torna contínuo e os arcos realmente se apoiam em pilares.
Apesar do exemplar pioneiro de Alberti, a transposição do tema acima apresentado para o pórtico e deste, para os pátios de palácios, ainda estava por acontecer. Daí vem a importância da Loggia delle Benedizioni construída por Francesco del Borgo a partir de 1461. Por tratar-se de uma galeria de dois níveis diante de uma esplanada, ela permite a analogia com os pórticos que compõem um cortile. Ao contrário dos pórticos de inspiração medieval típicos da época, com arcos apoiados diretamente em colunas ou pilares, a Loggia delle Benedizioni está claramente inspirada no sistema modular do Coliseu. Nesse sentido, seu pioneirismo é evidente. Sua estrutura básica previa dois pavimentos com arcos apoiados em pilares espaçados regularmente. Uma grelha ortogonal de colunas e entablamentos é superposta à estrutura básica de arcos e muros. A diferença em relação ao Coliseu é que, na loggia do Vaticano, foram empregadas colunas ao invés de semicolunas, fato que exigiu projeções nos entablamentos no topo dos capitéis (13). O terceiro nível, adicionado em 1505, tem pilastras ao invés de colunas.
Contudo, o processo construtivo da Loggia delle Benedizioni foi bastante complicado. O projeto original abrangia a totalidade da fachada da antiga basílica de San Pietro, com um pórtico de onze intercolúnios (14). Quatro intercolúnios do primeiro andar foram completados em 1464, último ano do papado de Pio II, mas sem incluir as abóbadas (15). O segundo andar provavelmente foi projetado por del Borgo, mas foi executado muito mais tarde, pois os sucessores de Pio II não tiveram interesse na continuidade da obra. Uma gravura de Schedel, de 1491, mostra que após 27 anos, ainda havia somente um andar construído com um telhado provisório de cobertura. Em 1500, a loggia já tinha uma plataforma sobre as abóbadas do primeiro nível, e cinco anos depois, o segundo andar já estava construído, mas ainda não fora coberto. Também em 1505, Bramante edifica o terceiro nível, tal como Heemskerck o registrou em seu desenho de 1535. Portanto, a cronologia nos mostra que a Loggia só concretizou o emprego da superposição de ordens inspirada no precedente do Coliseu em 1505, quando o segundo nível foi terminado. Esse atraso na execução da Loggia delle Benedizioni faz do cortile grande do Palazzo Venezia, iniciado em 1472, o primeiro exemplo de superposição de uma grelha clássica sobre pilares com arcos a ser construída no Renascimento, inspirada no modelo romano. Embora o cortile tenha sido construído após a morte do arquiteto da reforma, ocorrida em 1468, é quase certo que foi projetado por ele. A grande similaridade do cortile do palácio com a Loggia delle Benedizioni reforça a atribuição a del Borgo.
Essa semelhança entre pórticos ocorre em outra parte do conjunto arquitetônico do Palazzo Venezia: o novo pórtico da igreja de San Marco. O pórtico faz parte do programa de reformas iniciado em 1466 sob a direção de Francesco del Borgo e apresenta dois níveis com três aberturas arqueadas. O térreo dá acesso à igreja e o segundo nível serve como loggia para o papa se dirigir às multidões em ocasiões especiais. Nos dois níveis ocorre a superposição da trama clássica de colunas e entablamentos sobre a base de muros e arcos. Contudo, somente o primeiro nível foi executado por del Borgo, tanto por evidência documental como estilística (16). Enquanto o nível térreo apresenta semicolunas com projeções nos entablamentos acima dos capitéis, o piso superior tem pilastras sem caneluras e um entablamento sem projeções. Portanto, a tridimensionalidade do térreo deste pórtico é similar tanto à Loggia delle Benedizioni como ao cortile do Palazzo Venezia, e mostra o gosto de del Borgo pela expressão corpórea do sistema clássico, tal como ocorre no Coliseu e no Teatro de Marcello.
O cortile do Palazzo Venezia
O cortile do Palazzo Venezia nunca foi terminado. O cardeal Marco Barbo, sobrinho do papa e que ali residiu até sua morte, em 1491, construiu dois pórticos, um deles junto à ala da Via del Plebiscito, que hoje apresenta seis intercolúnios, e outro junto à lateral da igreja, com quatro intercolúnios. Segundo a reconstrução proposta por Frommel (17), o projeto original de Francesco del Borgo provavelmente previa um cortile quadrado com 5 X 5 intercolúnios, que teria o vão central coordenado com o acesso principal, na ala junto a Via del Plebiscito. Ao longo desta ala, os dois níveis do pórtico estão ligados aos dois andares do palácio. No piso superior, o pórtico dá acesso ao principal salão de recepções da residência papal: a Sala Regia, com 31m de comprimento por 13m de altura e largura. Este salão dá início a uma sequência de quatro salões decrescentes em tamanho, até alcançar as dependências privadas do papa. Na outra ala, o cortile cobre a fachada lateral da igreja de San Marco, perdendo o contato direto com o palácio. No segundo nível dessa ala, o pórtico está aberto dos dois lados. Conforme a reconstrução sugerida por Frommel, o projeto provavelmente envolveria a construção de outras duas alas, completando uma planta quadrada com um pátio central.
Os pórticos apresentam grande unidade compositiva, indicando terem sido executados em uma única empreitada. Tal como os pórticos de Francesco del Borgo antes referidos (Loggia delle Benedizioni e Loggia térrea da igreja de San Marco), mostram a adoção do sistema clássico de arcos enquadrados por ordens de maneira sistemática. No térreo, há semicolunas dóricas sobre altos pedestais (2,28m) (18). O entablamento desta ordem apresenta ressaltos sobre os capitéis. Em segundo plano, pilares de seção retangular suportam arcos semicirculares, cujas chaves tocam a linha inferior do entablamento. Esse fato, aliado a pouca diferença entre a largura do pilar e da semicoluna, fazem com que haja grande predominância de vazios sobre cheios. Além disso, a razão entre largura e altura é exatamente 1:2, ou seja, o módulo do pórtico corresponde a um duplo quadrado. Isso confere ao pórtico uma leitura de ênfase vertical. O segundo nível tem semicolunas coríntias com bases menores que o nível inferior, pois devem corresponder aos ressaltos sobre os capitéis dóricos. O entablamento coríntio se projeta em relação à superfície mural, tornando desnecessárias as projeções existentes na ordem dórica abaixo. Variações como esta mostram a diversidade de operações possíveis no sistema clássico. A relação entre cheios e vazios praticamente repete a verificada no nível inferior. Os módulos dórico (térreo) e coríntio (segundo andar) tem alturas muito similares (pedestal, coluna e entablamento): 9,41m e 9,32m, respectivamente, com largura entre eixos de 4,70m. Portanto, a razão do módulo coríntio também é 1:2 (largura/altura) ou duplo quadrado (19).
A análise destes pórticos mostra notável coordenação compositiva, tanto no plano geométrico como no arranjo dos elementos clássicos. O fato do cortile ter ficado incompleto e de não ter sua autoria ligada a algum arquiteto conhecido talvez expliquem sua condição marginal na história da arquitetura do período. Contudo, a aplicação consistente do sistema romano de arcos enquadrados por ordens superpostas ocorre aqui de forma inédita, antecipando em muitos anos projetos como o cortile do Palazzo Farnese (Sangallo, o Jovem, 1514). As referências para esse tipo de projeto estavam nas ruínas romanas e, dentre estas, se destacam os pórticos superpostos do Coliseu (inaugurado em 80 d.C.), enquadrados por quatro níveis de ordens. Nos três primeiros níveis, muros com arcos são regularmente enquadrados por bases, semicolunas e entablamentos. No térreo, as semicolunas dóricas se assentam diretamente no piso, mas nos níveis jônico e coríntio, aparecem pedestais. Os entablamentos inteiros se projetam da superfície mural para corresponderem aos capitéis das semicolunas. Portanto, embora o sistema em geral seja similar ao do cortile do Palazzo Venezia, suas particularidades são distintas. O térreo do palácio possui altos pedestais, que conferem um sentido monumental mais evidente, enquanto o térreo do anfiteatro, ao não ter bases, se mostra mais acolhedor às multidões que ali circulavam. Os pedestais só aparecem nos andares superiores. Por sua vez, os dois entablamentos do cortile do palácio são diferentes, pois o inferior é plano com ressaltos sobre os capitéis dóricos e o superior é totalmente destacado em relação ao muro. Já o anfiteatro apresenta os três entablamentos inteiramente destacados da parede, para o encaixe dos capitéis das semicolunas.
Além disso, as dimensões e razões dos módulos dos pórticos do Coliseu são distintas do cortile do Palazzo Venezia (20). No anfiteatro romano, o módulo dórico tem largura de 6,60m por altura de 10,30m, numa razão de 1,56 ou praticamente 1:1½. O módulo seguinte, de gênero jônico, tem 6,60m de largura por 11,40m de altura, com razão de 1,72 ou 1:1¾. O terceiro nível, de gênero coríntio, tem 6,60m de largura por 11,30m de altura, tendo razão muito similar à anterior, de 1,71 ou 1:1¾. Comparando os pórticos, nota-se que o módulo do cortile do Palazzo Venezia, com sua relação 1:2 (largura/altura) é mais verticalizado que o do Coliseu. Além disso, comparando-se cheios e vazios, percebe-se que a maior verticalidade do módulo do palácio lhe confere maior área aberta, fato que é acentuado pela chave do arco do anfiteatro ficar afastada do entablamento, gerando maior superfície mural no interior do módulo. Toda essa discussão de dimensões e relações proporcionais serve para demonstrar que a disciplina da composição clássica permite uma ampla gama de variações dentro de uma mesma estratégia de projeto, neste caso correspondente ao sistema do arco enquadrado pela ordem.
O exame dimensional dos módulos clássicos do Coliseu permite verificar que existe outra parte do conjunto arquitetônico de San Marco que apresenta maiores semelhanças com este precedente: o pórtico da igreja, em seu nível térreo, que foi executado por Francesco del Borgo. Neste caso, o arquiteto seguiu um programa já antes abordado por ele na Loggia delle Benedizioni. Como já foi dito, a loggia configura a fachada principal da igreja, que foi reformada no projeto de transformação do palácio em residência papal. A solução distinta do nível térreo (com semicolunas e ressaltos no entablamento) e do nível superior (com pilastras e sem ressaltos) atesta a autoria de del Borgo para a primeira parte.
O módulo da ordem compósita do pórtico inferior da igreja tem 6,40m de largura por 9,60m de altura, resultando numa razão de 1:1½ (21). Esta é a mesma razão do módulo da ordem dórica no piso inferior do Coliseu. Outro ponto comum é a ausência de pedestais nos dois casos. Portanto, a análise mais detida mostra que o pórtico inferior da igreja tem mais afinidade com o pórtico do Coliseu do que os pórticos do cortile do palácio.
Há outro precedente romano que serviria como referência para o projeto de pórticos com arcos enquadrados por ordens. Trata-se da fachada curva do Teatro de Marcello, inaugurado entre os anos 13–11 a.C. e situado nas imediações do Palazzo Venezia. Este teatro, que antecede o Coliseu em quase um século, possui pórticos em dois níveis: o térreo de gênero dórico e o segundo andar, de gênero jônico. Tal como no Coliseu, as semicolunas térreas se assentam no piso, sem pedestal, que só surge no segundo nível. Por sua vez, os entablamentos dos dois níveis se destacam do plano mural continuamente, abrigando a projeção dos capitéis das colunas. O módulo dórico possui 4,79m de largura por 9,53m de altura, resultando numa razão de 1:2 (22). O módulo jônico tem 4,79m de largura por 10,35m de altura, resultando numa razão de 2,16 que permite o arredondamento da proporção para 1:2, tal como o piso inferior. Portanto, os dois níveis do pórtico do Teatro de Marcello apresentam módulos com a proporção de duplo quadrado, exatamente como o cortile do Palazzo Venezia. Isso permite supor que o teatro vizinho, com proporções mais verticalizadas que o Coliseu, serviu de referência mais próxima para a composição do sistema clássico do cortile do palácio.
A solução da esquina do cortile é inédita. O precedente clássico da superposição de ordens enquadrando arcos, exemplificado pelo Coliseu e pelo Teatro de Marcello, não envolvia encontro de planos. Portanto, sua adaptação a pátios quadrados ou retangulares precisava da inventividade dos arquitetos para solucionar o encontro de planos nos vértices. Francesco del Borgo não teve que lidar com este problema na Loggia delle Benedizioni, nem na fachada de San Marco. Contudo, o cortile inconcluso do Palazzo Venezia tem dois pórticos construídos que permitem examinar a sua solução para o problema do ângulo. Nota-se que há uma aparente repetição simples da semicoluna na esquina, mas as bases e os entablamentos seccionados mostram que não. Há uma linha sutil que divide a semicoluna verticalmente e mostra ocorrer ali uma acumulação de duas colunas que traduz a condição construtiva especial da esquina na linguagem clássica.
Desse modo, del Borgo mantém uma leitura mais serial dos pórticos, evitando explicitar o encontro de duas pilastras na esquina do pátio, tal como fez Laurana no Palazzo Ducale de Urbino (23). A condição de esquina é assinalada sutilmente, dissimulando em alguma medida a interrupção da continuidade dos módulos e aproximando o cortile dos precedentes que procura invocar.
É curioso notar que o cortile do Palazzetto Venezia foi projetado de forma bastante distinta do cortile principal do palácio. O Palazzetto consiste num grande jardim arborizado, preparado como um espaço de estar privado do papa, cujos pórticos também serviam para receber convidados em eventos especiais. Nesse espaço, o protagonista principal era a vegetação, cabendo aos pórticos serem esbeltos para que a ligação com o jardim fosse a melhor possível. Isso talvez ajude a explicar por que del Borgo não usou o sistema de pórticos mais mural do Coliseu e do Teatro de Marcello no Palazzetto. O amplo pátio tem pórticos de dois andares, com pilares de seção octogonal e capitéis coríntios no térreo e colunas com capitéis jônicos no piso superior. Os arcos são diretamente apoiados nos pilares e colunas, evitando o emprego de planos murais. Dessa forma, del Borgo não aplicou no palazzetto os modelos de pórticos clássicos que já havia usado na Loggia delle Benedizioni.
A provável parceria entre del Borgo e Alberti
Uma vez percebidas as referências clássicas manipuladas com tal precisão no cortile do Palazzo Venezia, fica a pergunta: como explicar que um arquiteto pouco conhecido tenha sido responsável por estes pórticos alla antica? Data de 1450 a primeira menção de Francesco del Borgo como integrante da câmera apostólica em Roma. Sua função era administrar os empreendimentos artísticos e arquitetônicos do Papa Nicolau V. Os registros de sua atividade mostram que, além de sua erudição humanista, era hábil desenhista (24). Desde 1432, Leon Battista Alberti já se encontrava na corte papal, como abreviador apostólico. Em 1450, Alberti estava envolvido com a redação de seu tratado de arquitetura (De Re Aedificatoria), que foi apresentado ao papa Nicolau V dois anos depois. É impossível que Alberti e del Borgo não tenham interagido a partir desse momento.
Nesse momento de sua carreira, Alberti havia alcançado um amplo conhecimento da arquitetura clássica romana. Seu tratado é uma leitura crítica de Vitrúvio, combinada ao intento de fornecer uma visão sistemática da arquitetura da antiguidade, com vistas a orientar projetistas e empreendedores. Alberti concentra suas instruções sobre o emprego do sistema clássico em fachadas no livro número 6, que trata do ornamento. Dentro desse contexto, ele afirma que a coluna é o principal ornamento da arquitetura (25). Nos capítulos 12 e 13 deste livro, ele trata das diversas aplicações murais das colunas, semicolunas e pilastras. No livro número 7, capítulo 15, ele afirma que arcos devem ser apoiados em pilares e não em colunas. No livro número 8, capítulo 7, ele trata de teatros e explica suas elevações segundo o modelo do Teatro de Marcello e do Coliseu, sem, contudo, mencioná-los. Alberti dá instruções quanto a largura de cada módulo, recomendando a mesma medida para os pilares e as aberturas. Já a altura dos módulos ficaria ligada à altura das arquibancadas internas do teatro, divididas ao meio. Alberti trata do posicionamento das semicolunas, de suas bases e entablamentos. Evidentemente, suas recomendações não se dirigem a construção de novos teatros romanos, mas ao explicar o projeto destes edifícios, ele procura estimular aplicações contemporâneas. Nesse sentido, os pórticos do Teatro de Marcello e do Coliseu servem como modelos para aplicação em projetos de pórticos nos pátios de palácios. Tudo isso leva a pensar no cortile do Palazzo Venezia como um ensaio baseado nos estudos de Alberti.
A primeira obra segura de Francesco del Borgo é a Loggia delle Benedizioni, iniciada em 1460. É provável que seu contato com Alberti o tenha levado a um engajamento total com a arquitetura. Ao mesmo tempo, Alberti deve ter percebido seu talento e recomendado ao Papa Pio II seu emprego como arquiteto de sua loggia. A proximidade entre Alberti e del Borgo também deve explicar o rigor das proporções e das formas clássicas encontradas no cortile do Palazzo Venezia. A vida de Alberti entre 1460 e seu falecimento em 1472 foi marcada pelo intenso envolvimento com projetos e construção de edifícios, tais como as igrejas de San Sebastiano e Sant’Andrea em Mântua, a Capela Rucellai e a tribuna da igreja de Santa Maria Annunziata em Florença. Esse envolvimento resultou na elaboração de desenhos com medidas, na redação de cartas aos promotores das obras e aos encarregados de sua execução e em visitas pessoais às obras. Em sua última obra, a igreja de Sant’Andrea em Mântua, Alberti esteve bastante envolvido com o tema dos arcos enquadrados por ordens clássicas. Tanto a fachada principal como as fachadas internas da nave lidam com este tema. Alberti enviou desenhos dessa igreja ao Marquês Lodovico Gonzaga em 1470. Logo em seguida, esteve em Mântua para providenciar mais desenhos e uma maquete (26). Portanto, os anos entre o início da primeira obra de Francesco del Borgo (1460) e seu falecimento durante a ampliação do Palazzo Venezia (1468) coincidiram com o fértil período em que o Alberti tratadista estava aplicando seus princípios concretamente em várias obras importantes.
A dedução que se obtém disso é que Alberti esteve muito próximo de Francesco del Borgo na elaboração do projeto do cortile do palácio. Essa possível colaboração teria se iniciado na Loggia delle Benedizioni, onde a superposição de pórticos enquadrados por ordens foi empregada pela primeira vez, em clara referência aos modelos antigos do Teatro de Marcello e do Coliseu. O cortile do Palazzo Venezia mostra o mesmo precedente sendo aplicado a outro uso, no pátio interno de um palazzo. É provável que Alberti e del Borgo tenham visitado juntos as duas ruínas romanas e discutido a aplicação de suas formas às encomendas papais. Este assunto, que Alberti já havia examinado para inserir em seu tratado, deveria ser um tema fascinante para ambos.
Alberti teve seus admiradores na nobreza de Florença, Rimini e Mântua, onde era recebido e requisitado a projetar obras importantes. Nessas cidades, teve arquitetos assistentes que levaram adiante seus projetos, como Matteo de’ Pasti e Lucca Fancelli. Em Roma, Alberti deve ter encontrado em Francesco del Borgo um instrumento adequado para veicular sua maneira inovadora de projetar resgatando o idioma clássico. Isso não significa que del Borgo fosse um mero assistente. De fato, del Borgo parece preferir uma expressão mais corpórea da linguagem clássica, que se identifica com a obra inicial de Alberti, nas fachadas de San Francesco e Santa Maria Novella. A obra final de Alberti mostra uma preferência por superfícies mais planares e menos tridimensionais. No entanto, a investigação comum do tema do pórtico clássico antigo, com a ordem colunar enquadrando a estrutura de pilar e arco, identifica os dois arquitetos. A execução muito tardia e a existência efêmera da Loggia delle Benedizioni impediu que houvesse um testemunho adequado dessa provável colaboração. Contudo, a construção ligeiramente posterior do cortile do Palazzo Venezia, ainda que incompleto, permitiu que esse legado pioneiro ficasse registrado.
notas
1
VASARI, Giorgio [1550]. Le vite de' più eccellenti architetti, pittori, et scultori italiani, da Cimabue insino a' tempi nostri. Firenze, Lorenzo Torrentino, 1550, p. 323 <https://bit.ly/3cioweY>
2
PAOLINI, Claudio. Palazzo Bardi alle Grazie. Repertorio delle Architetture Civili di Firenze <https://bit.ly/3PFBDEI>.
3
Estes palácios já não apresentam pátios quadrados, mas retangulares. Dentre eles, apenas o Palazzo Strozzi possui pórticos nos quatro lados.
4
Ver LOTZ, Wolfgang. Bramante and the Quattrocento cloister. Gesta, vol. 12, n. ½, Chicago, University of Chicago Press, 1973, p. 111–121.
5
O Palazzo Ducale de Urbino é um exemplo importante da arquitetura de pátios com pórticos clássicos no Renascimento. O térreo apresenta a fórmula já consagrada em Florença do arco semicircular apoiado em colunas, mas introduz uma solução de esquina inédita em residências, com pilastras mais altas que suportam o entablamento. Brunelleschi já havia apresentado este recurso nos pórticos laterais de San Lorenzo e Santo Spirito. Como Luciano Laurana, provável autor do cortile, atuou em Urbino entre 1465 e 1472, é pouco provável que alguma informação sobre este projeto tenha chegado a Roma antes da morte de Francesco del Borgo, autor do projeto de ampliação do Palazzo Venezia, em 1468.
6
FROMMEL, Christop. Chi era l’architetto di Palazzo Venezia? Studi in onore di Giulio Carlo Argan, d. 2, Roma, 1984, p. 39.
7
Idem, ibidem, p. 44.
8
Idem, ibidem, p. 40.
9
Idem, ibidem, p. 40.
10
FROMMEL, Christop. Francesco Del Borgo: Architekt Pius’ II und Pauls II. Römisches Jahrbuch für Kunstgeschichte 20, 1983, p. 118.
11
Provavelmente, Bruschi foi o primeiro a chamar a atenção sobre essa ligação entre pintores, escultores e arquitetos no início do século 14 em Florença. Ver BRUSCHI, Arnaldo. Nota sulla formazione architettonica dell’Alberti. Palladio, anno 25, n. 1, Roma, 1978, p. 6–44.
12
Alberti tinha em mente arcos triunfais como os de Sétimo Severo e Constantino; para os detalhes, certamente fez alusão ao Arco de Augusto, na própria cidade de Rimini.
13
As colunas de mármore empregadas na loggia foram extraídas das ruínas romanas do Pórtico de Otávia. FROMMEL, Christop. Francesco Del Borgo: Architekt Pius’ II und Pauls II” (op. cit.), p. 121.
14
Para a reconstrução do projeto original da loggia, ver FROMMEL, Christop. Francesco Del Borgo: Architekt Pius’ II und Pauls II” (op. cit.), p. 123.
15
Histórico da obra extraído de FROMMEL, Christop. Francesco Del Borgo: Architekt Pius’ II und Pauls II” (op. cit.), p. 123.
16
Ver FROMMEL, Christop. Chi era l’architetto di Palazzo Venezia? (op. cit.), p. 48.
17
Idem ibidem, p. 50; ilustrações 3–5.
18
Medidas extraídas de LETAROUILLY, Paul. Édifices de Rome moderne. Paris, Bance, 1860. Tome 1, planches 73–75.
19
A razão precisa entre as medidas é 2,0 (módulo dórico) e 1,98 (módulo jônico), permitindo o arredondamento.
20
Medidas extraídas de GIOVANNONI, Gustavo. Antonio da Sangallo il Giovane. Volume 2. Roma, Tipografia Regionale, 1959, fig. 105; Numeri. The Colosseum <https://bit.ly/3RbKqQ1>; Colosseum. Engineering Rome <https://bit.ly/3KfI7sN> Cruickshank, Dan (org.). Sir Banister Fletcher's A History of architecture. 20th edition. Oxford, Architectural Press, 1996, p. 257.
21
Medidas extraídas de BRUSCHI, Arnaldo. Op. cit., p. 28.
22
Medidas extraídas de FIDENZIONE, Paolo. Il teatro di Marcello. Digiland, 2010 <https://bit.ly/3AjFFgh>.
23
Ver nota de nº 5, que trata deste tema.
24
Ver FROMMEL, Christop. Chi era l’architetto di Palazzo Venezia? Studi in onore di Giulio Carlo Argan. Volume 2. Roma, 1984, p. 40–42.
25
ALBERTI, Leon Battista. On the art of building in ten books. Livro 6. Cambridge, The MIT Press, 1988, p. 183.
26
HEYDENREICH, Ludwig. Architecture in Italy. 1400–1500. New Haven, Yale University Press, 1996, p. 42.
sobre os autores
Cláudio Calovi Pereira é arquiteto pela UniRitter (1985), mestre pelo Propar UFRGS (1993) e doutor pelo M.I.T. (1998). Professor titular na Faculdade de Arquitetura da UFRGS e orientador no Propar UFRGS. Publicou Um palácio para a justiça: as sedes do Tribunal de Justiça do RS (Porto Alegre, TJ RS/Propar UFRGS, 2013).
Laura Costa é arquiteta pela Univates (2015) e mestre em arquitetura pelo Propar UFRGS (2021), tendo escrito a dissertação intitulada A arquitetura do pátio no Renascimento italiano, sob orientação de Cláudio Calovi Pereira.