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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este estudo apresenta a paisagem da Ponte dos Contos, em Ouro Preto MG, Brasil. A história da ponte e as relações intrínsecas com a cidade revelam transformações socioculturais e políticas que deixaram as suas marcas no espaço e no tempo.

english
This study presents the landscape of Ponte dos Contos, in Ouro Preto MG, Brasil. The history of the bridge and the intrinsic relationships with the city reveal the sociocultural and political transformations that left their marks in space and time.

español
Este estudio presenta el paisaje de Ponte dos Contos, en Ouro Preto MG, Brasil. La historia del puente y sus relaciones intrínsecas con la ciudad revelan transformaciones socioculturales y políticas que dejaron sus huellas en el espacio y el tiempo.


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COSTA, Raíssa de Keller e; BAHIA LOPES, Myriam. Ponte dos Contos. Paisagem de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 267.04, Vitruvius, ago. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.267/8566>.

A Ponte dos Contos está situada à rua São José, em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil, sobre o Córrego dos Contos. Integra o conjunto oitocentista composto também pela Casa dos Contos e pelo Chafariz dos Contos. No século 18, a sua construção remete a questões relacionadas à importância dos vales e córregos no desenvolvimento do tecido urbano. A partir de um olhar sensível e interdisciplinar acerca da historicidade da Ponte dos Contos, o objetivo é apresentar as relações intrínsecas, para além da sua função objetiva. Trata-se de um equipamento urbano essencial e também um monumento, cujo dinamismo e importância contribuem significativamente na história da paisagem.

Ponte dos Contos de Ouro Preto
Foto Raíssa de Keller e Costa, 2020

No século 18, a criação de pontes e chafarizes era atribuição das Câmaras para suprir necessidades de uso do espaço urbano e condições de vida nas antigas Vilas. Portanto, as pontes também foram equipamentos urbanos importantes que conectaram aglomerados urbanos de Vila Rica, hoje Ouro Preto, e transpuseram os córregos (1).

Nas antigas Câmaras os responsáveis pela manutenção das pontes eram os mesmos responsáveis por cuidar das estradas, denominados oficiais de vintena. Esses juízes eram autoridades municipais nomeadas para administrar paróquias com poucos moradores e respondiam ao governo paroquial. “Não se sabe ao certo se o juiz de vintena e seu ajudante, o escrivão de vintena, eram remunerados em Vila Rica. Tudo indica que, como em outros locais, recebiam de acordo com a redação e participação como testemunha na feitura de documentos locais” (2). Nomeações como essa eram estratégias de controle muito utilizadas na antiga Vila e contribuíam para a economia da Câmara Municipal, pois evitavam o gasto com viagens (3).

Em Ouro Preto, as pontes ligam os vales cortados por córregos em vários pontos da cidade. No século 18, a formação da Vila se deu ao longo do percurso dos principais córregos da cidade, dentre eles o Córrego do Xavier, também chamado de Córrego do Tripuí, depois Córrego do Ouro Preto e Córrego dos Contos.

Ponte dos Contos
Foto Raíssa de Keller e Costa, 2020

O Plano de Manejo da Estação Ecológica do Tripuí (4) traz apontamentos sobre esse nome, que teria origem Tupi, significando “água de fundo sujo, já que as suas águas rolam sobre o leito de pedras e areias negras”. No entanto, segundo Kátia Maria Nunes Campos (5), esse significado estaria relacionado à mineração de ouro no leito do córrego, que deixava a água barrenta, tendo sido o seu nome atribuído pelos Paulistas e justificado pelas características linguísticas da época. “O episódio de retirada de granitos de cor de aço do córrego do Tripuí, que na verdade correspondia a ouro de fino quilate, é o mais remoto da fundação da primitiva capital” (6).

Com a descoberta do ouro, a mineração no vale do Córrego dos Contos começou em 1698, impulsionando o povoamento entre as Serras de Ouro Preto e do Itacolomi. Com o surgimento dos núcleos urbanos em torno da atividade econômica tem-se uma sociedade eminentemente urbana, que cresceu a partir das margens dos córregos. As construções, que acompanhavam o curso dos córregos, venciam rios e ladeiras, e não por isso menos barrocas (7). “Daquela época em diante as bandeiras que se sucediam visavam o Tripuí” (8).

A Ponte guarda em si, e refletidas no uso do espaço público, as transformações sociais, econômicas, culturais e políticas de toda a história da cidade. Para Michel Collot (9), a noção de paisagem reúne o aqui e o lá na espacialidade humana, ao mesmo tempo, numa dialética do próximo e do distante. A paisagem é um fenômeno, resultado da interação entre o espaço, a percepção e a representação. “Não é nem uma pura representação, nem uma simples presença, mas o produto do encontro entre o mundo e um ponto de vista” (10).

Os ritmos de vida cotidiana são diferenciados ao longo do tempo. Entre o século 18 e o século 21 essas transformações deixaram suas marcas na paisagem. Esperamos, com este estudo, contribuir para as reflexões sobre a paisagem e o patrimônio em torno dessas marcas do tempo. Para isso, utilizamos pesquisa bibliográfica e documental, resultado parcial de pesquisa de doutorado em andamento, sob orientação da professora doutora Myriam Bahia Lopes.

A Ponte dos Contos ou de São José

No século 18, em Ouro Preto, a conexão entre um vale e outro fez surgirem pontes como a de São José, ou Ponte dos Contos. Considerada a primeira ponte de pedra de cantaria (11) foi arrematada em 1744 por Antônio Leite Esquerdo. No entanto, há documentos que confirmam a sua existência antes dessa data, em madeira. Em 1734, Bernardo Álvares da Neiva encaminhou requerimento à câmara solicitando parte das terras devolutas no Caminho Novo, “perto da ponte de São José” (12).

Vale ressaltar que antes das pontes de pedra existiram as pontes primitivas. Nas primeiras décadas do século 18, enquanto o território ia se estruturando, foram construídas em madeira e a partir de 1740 foram desfeitas e no mesmo local foram construídas novas pontes de pedras disponíveis na região. De acordo com Claudia Damasceno Fonseca (13), as pontes de pedra, bem como as ruas, calçadas e os chafarizes públicos eram considerados “signos de prosperidade e prestígio urbano”. Ou seja, a ponte também era um símbolo de prosperidade das vilas, equipamento urbano que sinalizava o progresso e a visibilidade dos poderes locais. Essa transformação possibilitou que ela se mantivesse, enquanto equipamento urbano, presente na vida da cidade até hoje, pela durabilidade do material.

A obra de Antônio Leite Esquerdo teve dois fiadores, Agostinho Gonçalves Souto e Jeronymo Soares. O Registro das Condições estabelecia que “o arrematante deveria seguir o risco e, após o término da obra, calçá-la de pedra grossa e dura” (14). A Ponte, com aproximadamente 20m de extensão e 5m de largura é fundamental para ligar o Largo dos Contos à rua São José. Foi construída, tal como ordenado pela Câmara, em pedra, revestida por argamassa, um belo e imponente arco sobre o leito do Córrego composto por lajotas de quartzito sem revestimento. O guarda-corpo, os bancos laterais e o cruzeiro são de cantaria e estão nas margens da calçada, reforçados por peças e travas metálicas (15).

Cruzeiro da Ponte dos Contos
Foto Raíssa de Keller e Costa, 2021

A cruz, na Ponte dos Contos, reforça a relação marcante da Igreja nas cidades coloniais brasileiras. Há quem diga que a função delas era impedir os suicídios. “Diz a antiga ‘sabedoria do povo’ que, as cruzes nas pontes evitam desastres; infelizmente, não somos dos mais fervorosos crentes de tão falada sabedoria popular” (16). Carvalho cita o exemplo da Ponte do Xavier de Ouro Preto, a única que não tinha uma cruz. Nela ocorreram diversos atos de suicídio até que foi instalada uma cruz e, a partir disso, não houveram mais ocorrências.

Essa ponte do Xavier era, segundo Manuel Bandeira (17), a que fazia a ligação entre Ouro Preto e Antônio Dias, transpondo o Córrego dos Contos. Atravessava dois vales, e entre eles, parte do Horto dos Contos, a vista devia ser espetacular. Inicialmente de madeira, foi substituída por construção em ferro, diferentemente das demais existentes na cidade que foram refeitas com pedra da região. A altura singular em relação a outras pontes da cidade pode ter favorecido a escolha do local para cometer suicídio. Além disso, os cruzeiros nas pontes eram lugar de encontro para festividades religiosas, como é o caso da festa de Santa Cruz, uma tradição na cidade até na atualidade.

A relação dos moradores da vizinhança com a ponte é um elemento recorrente na documentação do século 18. Há diversas menções à Ponte de São José como referência para a localização das terras, das obras, das ruas e varandas, em vez do nome da rua. Além disso, encontramos algumas solicitações por obras na própria Ponte e próximo a ela. Por exemplo, no documento da Casa dos Contos de 21 de março de 1794, que se trata de um recibo que o pintor Feliciano Manoel da Costa enviou ao contratador João Rodrigues de Macedo referente ao pagamento da pintura da Ponte de São José (18). E, ainda, a folha de pagamentos das obras das varandas das casas da contadoria localizadas na ponte e na rua São José, do período de 15 de setembro a 31 de outubro de 1794 (19). Também, a solicitação de Teodósio Bernardo da Fonseca da reforma da Ponte de São José, em que o mesmo alega que a ponte apresenta “danificação já de anos” (20).

“Diz Teodósio Bernardo da Fonseca [ilegível] amais de 12 añs a ponte [ilegível] rua intitulada São Josê estava [ilegível]. [ilegível] a ponte pode ter tido dannificação já deannos e um grande [ilegível] que havia mais a baixo o qual já não existe [ilegível] ameaçando grande ruina[ilegível]” (21).

No século 18, o poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744–1810) imortalizou as pontes da Vila Rica através de seu romance com Maria Doroteia. A Ponte do Antônio Dias é conhecida como Ponte de Marília em homenagem a essa história, que se deu em torno desse espaço. Mas, em seus escritos, há menção a outras pontes, como é o caso do poema abaixo. Provavelmente, a primeira seria a Ponte do Caquende, no bairro denominado Rosário; a segunda, a Ponte dos Contos e finalmente a Ponte do bairro Antônio Dias:

“Ergue o corpo, os ares rompe,/ Procura o porto da Estrella, / Sóbe a serra, e se cansares,/ Descansa n’um tronco della. / Toma de Minas a estrada,/ Na igreja nova que fica / Ao lado direito lado e segue / Sempre firma a Villa Rica./ Entra n’essa grande terra,/ Passa uma formosa ponte,/ Passa segunda e terceira / Tem um palacio defronte” (22).

Provavelmente, essa imortalidade estaria ligada ao próprio personagem que era figura importante no contexto da cidade, já que Gonzaga era português, jurista e participante da Inconfidência Mineira. Foi acusado de conspiração, preso e separado de Marília quando recluso fora do país, criando uma mitologia em torno de Marília de Dirceu.

Esse poema nos dá pistas dos caminhos da cidade no século 18. Naquele contexto, a pé ou sobre cavalos e mulas, uma das possibilidades de travessia do território era esse percurso. As pontes, portanto, eram marcos importantes. Provavelmente teve uma relação com as águas, já que ela é uma necessidade para pessoas e animais.

As pontes também são lembradas no século 19, no Almanaque de Ouro Preto de 1890. Na “Parte Litteraria”, onde constam “contos, poesias e uma variada colleção de pensamentos, anecdotas etc”, se destaca a seguinte anedota: “Atravessando uma ponte, um chuva [sic] perdeu o equilíbrio e cahiu [sic] no rio. A mulher exclama, tranquillamente [sic], emquanto [sic] ele se afogava: — Ora graças a Deus! que já o meu marido não morre sem nunca ter bebido agua!” (23). É curioso notar as leituras que se fazem das pontes, seja através do romance, da anedota, ou mesmo da religiosidade.

Ainda no século 19, o Jornal Minas Geraes, de 1892, publicava autorização de 532$600 em obras da Ponte dos Contos da capital (24). Em 4 de maio de 1894, o mesmo jornal publicou comunicado da “Inspectoria de Hygiene” ao presidente da Câmara Municipal da capital (ainda Ouro Preto), para consertos urgentes e necessários ao encanamento que passa pela Ponte dos Contos (25).

No final da década, em 1898, o Jornal Minas Geraes publicava nota sobre os “Festejos carnavalescos”, com promessas de “folguedos ruidosos” e ornamentação das principais ruas, entre elas a de São José, com as seguintes características: “Na da rua São José os enfeites constam de vistosa ala de coqueirinhos margeando os passeios e ligados entre si por extenso cordão de bandeirolas multicores, produzindo um effeito novo e inesperado” (26). A iluminação pública a gás havia sido instalada no dia anterior à publicação, segundo essa mesma nota do jornal. Isso nos permite visualizar o impacto daquela inovação na cidade tanto para as festividades e socializações, como para a vida noturna da cidade. A inauguração “a noite” tinha como um dos principais pontos a Ponte e a rua São José.

“A installação foi feita a capricho, tendo sido collocados um arco com cinco bicos de gaz, artisticamente dispostos, perto da ponte dos Contos, outro entre os estabelecimentos dos srs. Campos e Comp (café Centro Academico) e Ferreira Real & Comp. E outro no ponto em que a rua S. José desemboca no largo da Alegria” (27).

Quanto aos festejos de carnaval, o mesmo jornal descreveu a ornamentação naquela rua: “levantou-se elegante coreto artisticamente construído sob a direção do engenheiro Polonio”, onde tocaria a banda do 5º batalhão da Brigada contratada para a festa. E várias outras atrações foram anunciadas, inclusive a passagem do “Club dos Lacaios” com o Zé Pereira e outros grupos carnavalescos, “carros allegoricos [sic] e algumas sorprezas [sic] que estão a desafiar a curiosidade geral”.

Ao mesmo tempo, fica evidente a busca pela modernidade num anúncio paradoxal que pretende, por meio da memória de festividades do passado (de capital), mostrar-se cidade “adeantada”. Tal fato uniu duas regiões, os mais antigos arraiais (freguesias) que fundaram a cidade, o de Antônio Dias e o do Ouro Preto.

“As duas freguezias [sic] da cidade, congraçadas, combinaram-se, pois para este anno [sic] proporcionarem a seus habitantes festas dignas de uma cidade adeantada [sic], e avivando a memoria [sic] de magníficos festejos, desse gênero, de que já foram testemunhas” (28).

Observa-se no mesmo jornal a vocação para o turismo nas festas de carnaval, ao anunciar que “tem chegado a esta cidade grande numero [sic] de pessoas residentes em Bello Horizonte, Marianna, Queluz e outras localidades vizinhas” (29).

No começo do século 20, houve uma intervenção significativa na Ponte dos Contos. A retirada do banco, do cruzeiro e das pedras oitocentistas que estavam no nível da rua deu lugar a um gradil, cuja justificativa era a segurança pública. Feu de Carvalho (30), ao descrever as características da Ponte dos Contos, relata que

“Esse parapeito tinha de grossura tres [sic] palmos, com seus assentos na fórma [sic] indicada pelo risco levando a significativa e indispensável Cruz no meio da ponte. Esta cruz foi retirada, já em nossos dias, quando assentaram as grades de ferro bem altas que lá se acham, não só para compor e ornar a rua, como para evitar accidentes [sic]” (31).

Mas acredita-se que a intervenção tenha relações com o período de modernização da cidade, para além da segurança de que trata Carvalho. Como era um equipamento fundamental e destacável na dinâmica da cidade, o impacto visual da utilização de material mais moderno reforçaria esses valores. A Inspetoria de Monumentos Nacionais, segundo o inventário (32), relatou os impactos dessa alteração na paisagem e na percepção, que escondeu e mutilou a antiga Casa dos Contos e o Chafariz.

“A administração Rocha Lagoa (1890–1891) tirou-lhe as peças de cantaria e passou a receber um gradil alto e esguio que, diziam os administradores, a segurança pública estava a reclamar sob a ameaça de um acidente a qualquer instante. Sem o mais leve protesto veio ele modificar profundamente a fisionomia da cidade na parte mais interessante no momento. Com ela a Casa do Contratador foi mutilada na sua perspectiva, o chafariz adiante escondia-se entre as grades seguintes sobre tudo isso a rua mudou-se num corredor sem luz, sem ventilação, trazendo consigo a vedação de um dos mais pitorescos aspectos da cidade — o fundo da Rua de São José; quem quisesse admira-lo só ‘entre grades’” (33).

A paisagem se transformou, como se vê na sequência de figuras abaixo. Os impactos se deram nos mais diversos ângulos da cidade. O lugar passou a ser apenas uma passagem, sem possibilidade de vivência, pausas e encontros.

Ponte dos Contos com gradil
Foto Luiz Fontana, s/d. [Acervo Ifac]

Ponte dos Contos vista do antigo horto botânico
Foto Luiz Fontana, s/d. [Acervo Ifac]

A intervenção não durou muito tempo. Na década de 1930, num movimento de valorização do passado, essa foi uma das primeiras ações da Inspetoria de Monumentos Nacionais. A reconstituição foi realizada, lhe trazendo a forma primitiva, com material da Serra dos Vasconcelos e espessuras originais. Rodrigues, ao descrever a Casa dos Contos e desenhar o seu entorno naquele contexto, escreveu: “A ponte que se vê no primeiro plano foi restaurada com muito acerto, tendo sido retiradas as pesadas grades de ferro que tolhiam a vista, levantando-se o cruzeiro tradicional” (34).

No entanto, a Inspetoria relata as dificuldades em refazer a ponte e os inconvenientes durante o processo. Havia a preocupação com a ambiência diante de uma nova cidade, com o crescente número de automóveis, já que a Ponte era um “escoadouro acessível e fácil”. Além disso, relataram a falta de adesão da cidade em restabelecer o calçamento original chamado “pé de moleque”.

“Para isso os ‘cachorros’ receberam uma laje de concreto com uma viga engastada no meio-fio, compensava assim o reviramento que a tonelagem de cantaria ia talvez provocar e o passeio passou a se alargar de 0,75m em média, restabeleceu-se a ventilação e reapareceu o aspecto pitoresco do fundo da rua, isso para o lado de poente; para as bandas do nascente a restauração foi absoluta, veio o “assento” para o “meio da ponte”, a cruz no centro dominando a construção. Nada mais se pode fazer, o calçamento que seria uma peça merecedora de ser restabelecida a cidade o impugnava” (35).

Interessante notar que os valores da época nortearam as ações da Inspetoria mesmo quando ainda não havia a consolidação das políticas de patrimônio e nem mesmo o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Sphan, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan. Destacaram, assim, a preocupação com a paisagem, mas consideraram as novas dinâmicas de um lugar que já não se situava mais no século 18. Essa relação com o Largo fica evidente, quando o inventário cita que “Completando o conjunto de peças tão irmãs a casa dos Contos, o chafariz, a Ponte restaurada integrou-os na cidade” (36).

Ponte dos Contos após intervenção
Foto Luiz Fontana, s/d. [Acervo Ifac]

Em 1950, a Ponte foi tombada como monumento isolado nacionalmente, pelo Sphan. Em documento encaminhado ao Diretor da Divisão de Estudos e Tombamento, o chefe de Seção de Arte Edgard Jacintho da Silva destaca a preocupação com a preservação da arte e da história do país: “Tendo em mira a conveniência de atualizar o serviço de tombamento dos principais valores do acervo de arte e história do país, venho propor-vos a inscrição dos seguintes bens nos Livros do Tombo desta Diretoria” (37). A inscrição n. 376 foi realizada no Livro do Tombo de Belas Artes, n. do processo 0430-T, considerando-a um elemento de arquitetura civil localizado em Ouro Preto e notificada ao prefeito municipal em 6 de junho de 1950 pelo próprio Diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade.

A Ponte dos Contos, como é conhecida na cidade, é um lugar com muitos significados. Mesmo com a rotina acelerada da cidade mantém a sua função social. A presença de artistas é constante na vivência da ponte, exposição de retratos e pinturas, apresentações de músicos, venda de artigos artesanais variados, sem falar nas pessoas que utilizam o banco como breve refúgio em meio à agitação da rua. Interessante notar, que a presença do banco se torna, para alguns, um escape do cotidiano, enquanto para outros é um excelente ponto de convívio. Independentemente da situação, a ponte ainda preserva em sua estrutura, as diversas possibilidades de vivência e resiste ao tempo não somente como equipamento urbano.

Considerações finais

De Vila Rica a Ouro Preto, a cidade viva admite transformações, não nega o seu dinamismo, mas não deixa de remeter ao seu passado. E, talvez, essa seja uma razão considerável para que seja vista como um símbolo para o Brasil. Essas transformações envolveram seus monumentos, patrimônios que integram cada tempo, de diferentes maneiras e com diferentes apropriações.

A paisagem da cidade é, assim, enquanto leitura, sempre passível de diferentes olhares, de novas possibilidades de leitura, de uma abertura subjetiva e sensível do lugar. A riqueza está em abrir a lente e expandir os modos de senti-la, especialmente para quem vivencia a cidade tanto como nativa quanto pesquisadora.

Não há um significado para a monumental Ponte dos Contos, mas diferentes significados que acompanharam os valores de cada tempo. Esses valores traduzem as relações sociais, as trocas e vivências favorecidas pelo lugar, os encontros, a atratividade para o turismo. Essas relações se reinventam e assim garantem a continuidade da ponte na história das pessoas e da cidade.

A Ouro Preto atual vive uma dinâmica muito própria que nada mais é que o resultado da soma dos tempos e das vivências, fruto da própria sociedade que a construiu, (re)constrói e a habita. Como parte de sua essência, a cidade fornece subjetividades para os mais diversos grupos, que através de diferentes experiências mantém a cidade viva.

A arquitetura está diretamente envolvida com a relação humana no tempo e no espaço pelas suas expressões e representações de ação e de poder, cultural e social, paisagem e memória, interação e separação. Os monumentos são, assim, exemplo dessas expressões humanas no tempo e no espaço.

notas

1
SILVA, Fabiano Gomes da. A construção da urbe. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 45, n. 2, Belo Horizonte, jul./dez. 2009, p.110 <https://bit.ly/3PXEfhp>.

2
REZENDE, Luiz Alberto Ornellas. A Câmara Municipal de Vila Rica e a consolidação das elites locais, 1711-1736. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH USP, 2015, p.112 <https://bit.ly/3AThozb>.

3
Idem, ibidem, p. 113.

4
Plano de Manejo da Estação Ecológica do Tripuí — Ouro Preto — M.G., v. 01, Belo Horizonte, Fundação Estadual do Meio Ambiente, 1995, p. 12.

5
CAMPOS, Kátia Maria Nunes. Vestígios da mineração de ouro na Serra do Veloso: uma contribuição à geo-história de Ouro Preto MG. Revista Espinhaço, v. 03, 2014, p. 15–17 <https://bit.ly/3CCLdFm>.

6
Plano de Manejo da Estação Ecológica do Tripuí — Ouro Preto — M.G (op. cit.), p. 12.

7
BAETA, Rodrigo. Ouro Preto: cidade barroca. Cadernos PPGAU UFBA, v. 01, n. 01, 2003, p. 52 <https://bit.ly/3QaPHGF>.

8
CABRAL, Henrique Barbosa da Silva. Ouro Preto. Belo Horizonte, 1969, p. 21.

9
COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Rio de Janeiro, Oficina Raquel, 2013, p. 34.

10
Idem, ibidem, p. 18.

11
SILVA, Fabiano Gomes da. A construção da urbe. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 45, n. 2, Belo Horizonte, jul./dez. 2009, p. 104–119 <https://bit.ly/3TlvJvw>.

12
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Requerimento de Bernardo Álvares da Neiva solicitando quinze ou vinte braças de terra devolutas no caminho novo, perto da Ponte de São José. Câmara Municipal de Ouro Preto, Cx. 07. Doc. 15. 28 ago. 1734.

13
FONSECA, Claudia Damasceno. Construção e representações das paisagens urbanas. In Arraiais e vilas d’el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Série Humanitas. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011, p. 522 <https://bit.ly/3QUZGRf>.

14
PREFEITURA MUNICIPAL DE OURO PRETO. Inventário de Proteção do Acervo Cultural: Ponte de São José ou dos Contos. Ouro Preto, 2012, p. 5.

15
Idem, ibidem, p. 10.

16
CARVALHO, Feu de. Reminiscencias de Villa Rica. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 19, Belo Horizonte, Imprensa oficial de Minas Gerais, 1921, p. 159.

17
BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Coleção Prestígio. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1975, p. 142.

18
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Recibo passado pelo Pintor Feliciano Manoel da Cosa a João Rodrigues de Macedo referente ao pagamento da pintura da ponte de São José. Casa dos Contos, 1794, cx. 111 — 20677, Rolo 534.

19
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Folha de pagamentos das obras das varandas das casas da Contadoria localizadas na ponte e na rua São José, de 15 de setembro a 31 de outubro de 1794. Casa dos Contos, Cx. 106 — 20571, Rolo 532 A.

20
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Solicitação de reforma da ponte de São José. Câmara de Municipal de Ouro Preto. Cx. 68, Doc. 26. 24/02/1796.

21
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Solicitação de reforma da ponte de São José. Câmara de Municipal de Ouro Preto. Cx. 68, Doc. 26. 24/02/1796.

22
GONZAGA, Tomaz Antonio. Marília de Dirceu. Coleção Prestígio. 1ª edição. São Paulo, Ediouro, s/d <https://bit.ly/3KpgaPo>.

23
OZZORI, Manuel. Almanack administrativo, mercantil, industrial, scientifico e literário do Município de Ouro Preto, ano 1, Belo Horizonte, Mazza/IAC/Ufop, 1890, p. 206.

24
BIBLIOTECA NACIONAL DO BRASIL. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estado MG — 1892 a 1900. Coleção Memória. Cód.: TRB00055.0170, Rótulo: 291536 <https://bit.ly/3e2ykdJ>.

25
Idem, ibidem.

26
Idem, ibidem.

27
Idem, ibidem, p. 6.

28
Idem, ibidem, p. 6.

29
Idem, ibidem, p. 6.

30
CARVALHO, Feu de. Op. cit., p. 267-344.

31
Idem, ibidem, p. 158.

32
PREFEITURA MUNICIPAL DE OURO PRETO. Op. cit.

33
Idem, ibidem, p. 8.

34
RODRIGUES, José Wasth. Documentário arquitetônico relativo à antiga construção civil no Brasil. São Paulo, Martins Editôra, v. 3, 1945, p. 34 <https://bit.ly/3QSiVLo>.

35
PREFEITURA MUNICIPAL DE OURO PRETO. Op. cit., p. 8.

36
Idem, ibidem, p. 8.

37
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Solicitação de tombamento dos principais valores do acervo de arte e história do país. Rio de Janeiro, Diretoria da Divisão de Estudos e Tombamento, 1935.

sobre os autores

Raíssa de Keller e Costa é mestre (2016) e doutoranda pelo PPG ACPS UFMG. Graduada em Turismo (Ufop, 2011); pós-graduada em História e Cultura no Brasil (Estácio de Sá, 2018) e integrante do grupo de pesquisa Texto e Imagem da linha de pesquisa Espaço e memória: história da paisagem, do Nehcit UFMG.

Myriam Bahia Lopes é professora, pesquisadora e orientadora de doutorado do PACPS, lotada no Departamento de Análise Crítica e Histórica da Arquitetura e do Urbanismo e da graduação do Design na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Desde 1999 coordena o Núcleo de História da Ciência e da Técnica. Publicou Corpos Inscritos (2021) e O Rio em movimento: quadros médicos e(m) história,1890–1920 (2001).

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267.04 patrimônio
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Arquitetura enquanto sistema evolutivo

Uma discussão sobre a lei constructal e a relação com a produção arquitetônica

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