A cronologia do planejamento urbano não possui uma visão linear de tempo, o que permite estabelecer diferentes formas de abordagem (1). Uma forma pouco explorada de pensar o planejamento urbano parte da análise da sua estrutura cognitiva, que pode ser estabelecida em uma relação de problema e solução. Ou seja, a forma como o planejamento urbano concebe o problema da cidade estabelece a forma como este planejamento propõe uma solução. Neste sentido, todo planejamento urbano possuí um conjunto de estruturas cognitivas, ou paradigmas, que operam na percepção do problema e na proposição de soluções. A ideia de paradigma formulada por Thomas Kuhn permite interpretar como ocorre a construção desses sistemas cognitivos. Isso porque, como um campo disciplinar, o planejamento urbano também passa pelo processo que Kuhn define como ciência extraordinária ou revolucionária (2).
Pensar por paradigmas permite compreender o sistema cognitivo do planejamento como produto do que se sabe e do que se questiona a respeito dos paradigmas existentes. Para Kuhn, o conhecimento científico progride a partir de rupturas criadas por e nos paradigmas. Tais rupturas são centrais no empreendimento científico de Kuhn, que estabelece quatro principais fases de progressão: 1. ciência normal: atividade altamente determinada e cumulativa, parte do pressuposto que os cientistas sabem como opera o mundo e quais seus problemas e soluções; 2. anomalia: são peças que não se encaixam no quebra-cabeças da ciência normal, ou seja, lacunas que não podem ser incorporadas pela ciência normal; 3. crise: ocorre quando as anomalias conhecidas passam a conformar uma outra forma de entender o mundo; 4. revolução científica: processo de desenvolvimento não cumulativo do conhecimento em que um paradigma é total ou parcialmente substituído.
Para investigar como ocorre a construção das diferentes formas de pensar o planejamento urbano por meio de paradigmas, é preciso considerar também as contribuições de Ludwik Fleck (3). Percursor de Kuhn, Fleck argumentou que a ciência não é um movimento retilíneo, uniforme e individual. Pelo contrário, o desenvolvimento das ideias científicas na concepção de Fleck é resultado de um produto social que não é pautado apenas na acumulação de saber, mas também na desconstrução de ideias anteriores. Para transformar o saber científico dentro desse construtivismo social, Fleck destaca três principais aspectos: 1. complementação: possibilidade de coexistência entre diferentes estilos de pensar; 2. ampliação: efeito que as descobertas possuem de ampliar o conhecimento; 3. transformação da forma de pensar: nessa forma de progressão do saber ocorre uma ruptura a partir de descobertas que alteram o estilo de pensamento.
Se por um lado o conhecimento pode ser produto de contextos sociais e culturais (em uma espécie de condicionamento histórico), por outro lado, a forma de pensar o planejamento das cidades foi alterada conforme amadureceu-se a ideia de cidade, no que Fleck conceituou como amadurecimento histórico dos fatos. Assim, ao pensar o planejamento urbano a partir das ideias de Fleck e Kuhn, é possível estabelecer que não somente o conhecimento sobre planejamento urbano progrediu (no sentido de transformação e concepção de novos paradigmas), mas também o fato estudado é alterado conforme a comunidade científica “amadurece” a ideia de cidade (4). Sendo assim, um paradigma no planejamento pode ser estabelecido como produto da relação de um conjunto de técnicas (concebidas por um condicionamento histórico do saber) com um conjunto de saberes sobre o que é cidade (resultado do amadurecimento científico do fato).
Este trabalho tem como objetivo estabelecer as bases conceituais de uma estrutura cognitiva que tem estado presente desde o surgimento da noção de urbanismo: a ideia de paradigma da direção. Esse paradigma pode ser delimitado como uma estrutura cognitiva que permitiu ao planejamento urbano definir como e onde localizar as infraestruturas, ativos e pessoas (ideia do lugar ótimo). Argumenta-se que o paradigma da direção é uma abordagem de planejamento que utiliza dos planos urbanos centrados na figura do técnico para induzir o desenvolvimento urbano. Para desenvolver esse argumento, apresenta-se neste trabalho como o paradigma da direção foi estruturado na ciência normal (e a modificou) por meio de três principais eixos: 1. teorias da localização; 2. planos urbanos; 3. movimento moderno. Utiliza-se como método uma análise e abordagem histórica da estrutura cognitiva do planejamento urbano (pautada na relação problema/solução) nestes três eixos.
Direcionamento das teorias da localização e centralidade
O paradigma da direção surge de forma embrionária com os centros urbanos pré-industriais, ou seja, “estruturas sociais razoavelmente diferenciadas, dotadas de aparato estatal, ocupando territórios escassamente povoados e pouco ou nada mecanizados (o que significa deslocamentos lentos e caros)” (5). Assim, o paradigma da direção surge como uma resposta para a ausência de soluções para tratar as especificidades das condições de transporte e de geração de energia das cidades pré-industriais. Essas condições tornaram necessária uma análise da relação entre desenvolvimento e região, visando estabelecer inicialmente uma compreensão de como as atividades agrícolas se concentravam em torno dos centros urbanos. Neste contexto, pode-se compreender que o paradigma da direção teve início com a teoria da localização de Thünen (1826) e Weber (1909) e com as teorias da centralidade de Christaller (1933) e Lösch (1940).
Em um primeiro momento, o paradigma da direção se ocupa em apresentar soluções para resolver um dos primeiros problemas provocados pelas cidades industriais e pré-industriais: o deslocamento e a localização da produção. As primeiras bases vieram com a teoria da localização de Johann Heinrich von Thunen, apresentada no livro Der Isoleerte Staaat, em 1826. No livro Thunen apresenta uma das primeiras formas de interpretar a relação que se estabelece entre campo e cidade (6), além de apresentar um modelo ideal de cidade que atenderia as necessidades crescentes que os centros urbanos possuíam de alimentos (e que se intensificaria com a revolução industrial). Portanto, Thunen percebeu um problema que viria a se intensificar pelo prisma da economia (custo da produção agrícola para abastecer os mercados) e apresentou uma solução para o problema com a teoria do estado isolado.
Passados mais de oitenta anos após a publicação de O Estado isolado, o economista Alfred Weber publica em 1909 o livro Über den Standort der Industrien. Weber desloca o foco da localização agrícola (objeto de análises de Thunen) para a localização da industrialização. Sua teoria enfatiza “o papel dos custos de transporte de matérias-primas e produtos acabados, em função da localização dos mercados consumidores” (7). Tendo considerado também fatores até então desconhecidos, tais como a localização da mão de obra e das economias de aglomeração. Segundo Weber a localização das atividades industriais seria resultado dos “fluxos de entradas (matérias-primas, mão de obra, energia etc.) e saídas (produto para ser vendido)” (8). Com isso Weber postulou um “triângulo locacional” entre recursos, produtor e localização no mercado (9).
Walter Christaller dá continuidade a produção teórica da escola clássica da localização com a publicação do livro Die zentrale Orte in Süddeutschland em 1933 (10). Com a teoria dos lugares centrais, Christaller estabelece uma relação hierárquica das cidades nas redes urbanas (11). Por meio dessa teoria busca compreender quais fatores determinam o número, tamanho e distribuição das cidades. Nesse sentido, a análise da distribuição espacial das cidades no sul da Alemanha realizada por Christaller, permite compreender o alcance de um bem ou serviço, ou seja, qual a distância máxima que a população dispersa no espaço se dispõe percorrer para adquirir um bem ou serviço. Nesse sentido, quanto maior o alcance da cidade, maior a hierarquia dela na rede urbana.
Já em 1940, o economista alemão Auguste Lösch publicou o livro Die räumliche Ordnung der Wirtschaft. No livro Lösch propõe uma hierarquia entre áreas de mercado ao argumentar que “as empresas se estabelecem onde a população estiver mais concentrada, formando uma hierarquia de áreas de mercado e centros urbanos” (12). O modelo de economia espacial de Lösch tem condições de concorrência imperfeita, no qual o espaço significa uma variável central. Assim, a ideia central da teoria de Lösch é que para cada produto há uma rede de áreas de mercado. Sendo que o tamanho dessas redes depende de três aspectos: fatores de demanda, custos de produção e custos de transporte. Mais especificamente, cada produto possui demanda e custos de produção e transporte específicos, o que atribui tamanhos diferentes para cada rede.
A partir da segunda metade do século 20 o economista norte-americano Walter Isard desenvolve uma síntese do que a literatura convencionou chamar de teorias da localização (13). Isard adota o insumo de transporte mínimo como principal elemento de escolha locacional e como elemento explicativo do padrão espacial da atividade econômica. A sistematização das teorias da localização em língua inglesa realizada por Isard, possibilitou uma difusão teórica para o English-speaking world. As contribuições das teorias da localização (de Thunen a Isard) podem representar o início do paradigma da direção no planejamento. Isso porque as formas de compreender o direcionamento do planejamento urbano, representam teorias de base econômica que contribuíram para compreensão do arranjo espacial das cidades pré e pós-industrial. Por fim, o quadro-resumo do primeiro eixo do paradigma da direção busca evidenciar como o mecanismo problema/solução operou nas teorias da localização.
Direcionamento dos planos urbanos
Neste eixo o paradigma da direção passou a ser norteado por uma necessidade latente de consolidação do campo do planejamento urbano. As cidades industriais passavam por transformações estruturais (principalmente no campo do saneamento, habitação, mobilidade e densidade) e necessitavam de respostas rápidas para os problemas enfrentados. A partir da internacionalização do campo do urbanismo no início do século 20, as soluções aos problemas urbanos passaram a orbitar em torno de quatro características: 1) modelos de cidades: necessidade de desenvolver modelos padronizados de cidades ideais (ideia de modelo de cidade como solução); 2) transformações urbanas: ocorridas principalmente nas cidades históricas que experimentavam forte industrialização; 3) centralidade do técnico: dependência da iniciativa e centralidade dos técnicos; 4) plataforma projetual: apresentação dos planos urbanos como projetos físicos pautados em soluções geométricas.
Neste cenário surgem diferentes soluções de transformação urbana, dentre as quais a haussmannização aparece no centro das transformações urbanas no século 19. Essas transformações compreenderam o conjunto de intervenções projetadas pelo Barão Georges-Eugène Haussmann em Paris no período de 1853–1870. Com uma abordagem tecnocrática, Haussmann moldou o espaço urbano de Paris a partir de um plano radial pautado em criar largas avenidas arborizadas e monumentais com fachadas uniformes e contínuas, implantação de serviços urbanos, demolição de edifícios históricos e características higienistas (14). Nesse sentido, as reformas urbanas que ocorreram nos moldes de Paris passaram a ser classificadas como haussmannianas.
Ildefonso Cerdá foi outro expoente do planejamento urbano via paradigma da direção. Os problemas identificados por Haussmann em Paris foram muito semelhantes aos problemas atacados por Ildefonso em Barcelona no Plano Cerdá de 1860. Logo, as soluções de transformação urbana apresentada por ambos também se assemelham: grandes avenidas para a mobilidade, implementação de infraestruturas para o saneamento e definição da morfologia urbana para a paisagem (15). Porém, as contribuições de Cerdá ao planejamento urbano extrapolam suas intervenções em Barcelona. Isto porque Cerdá é tido como o percursor do urbanismo, tendo citado o termo pela primeira vez em 1867 na sua Teoria Geral da Urbanização. Para Choay, a teoria de Cerdá representa “a certidão de nascimento e o arquétipo das teorias de urbanismo” (16).
Outra importante concepção de plano urbano via paradigma da direção é a ideia de Cidade Jardim de Ebenezer Howard. A concepção desse plano urbano foi inicialmente apresentada no livro Tomorrow: A Peaceful Path to Real Reform em 1898, reeditado em 1902 com o título Garden Cities of Tomorrow. Projetada em forma circular com uma divisão hierárquica, o sistema da cidade baseava-se em uma estrutura radial com seis largas avenidas com 36 metros de largura (chamadas pelo autor de boulevares) que atravessavam a cidade dividindo a cidade em seis anéis (ou seis bairros). Essa concepção, muito se assemelha com a teoria da localização de Thunen (1826), que também direcionava o desenvolvimento da cidade em anéis de acordo com as diferentes funções.
Além do plano radial de Haussmann, do plano em grelha de Cerdá, da cidade jardim de Howard e das adaptações norte americanas de Sunnyside e Radburn, outro plano urbano que delimita a ideia do paradigma da direção no planejamento urbano foi o modelo linear de cidade jardim desenvolvido por Arturo Soria y Mata para Madri em 1882. A ideia de cidade linear foi desenvolvida por Soria y Mata na revista Ciudad Lineal, fundada por ele em 1896 (17). Como primeiro e principal princípio, Soria y Mata destaca que, do problema da locomoção derivam os demais problemas da urbanização. Segundo Téran (18) Soria y Mata entende como “perfecta la forma de una ciudad cuando la suma de los tiempos invertidos para ir de cada casa a todas las demás sea un mínimum, como acontece en las ciudades lineales”. A base das proposições parte da reflexão das novas técnicas de transporte (principalmente o ferroviário) e telecomunicações (telégrafo, rádio, telefone) (19).
Uma das concepções de plano urbano que mais incorporaram a questão industrial foram as propostas de Tony Garnier, com a publicação do livro Une cité industrielle em 1989. Para Garnier as cidades seriam criadas em função das indústrias, e por isso deveriam se estruturar em torno delas. Para isso propôs a separação das diferentes funções da cidade (trabalho, habitação, tráfego e recreação), ideia posteriormente defendida pelo movimento moderno na Carta de Atenas (20). A partir de 1919 surge com Alfred Marshall (1842–1924) e os economistas da chamada Escola de Cambridge a ideia de distrito industrial. Marshal aprofunda a discussão sobre a concentração espacial das indústrias e sua questão locacional (amplamente analisada por Weber e Christaller). Para o autor distrito industrial é o resultado de uma localização duradoura, que atribui uma série de vantagens para as empresas reunidas em uma determinada área (conceituada de atmosfera industrial).
A partir da abordagem histórica apresentada, é possível compreender como o paradigma da direção buscou direcionar as infraestruturas urbanas, as pessoas e os investimentos por meio de planos urbanos tecnocráticos. A ideia de planejamento como um ato projetual, permitiu o desenvolvimento de modelos de cidades ideais replicáveis (cidade jardim, cidade linear, cidade industrial), assim como de soluções para intervir nas cidades tradicionais e históricas, que precisavam ser adaptadas aos novos contextos sociais, econômicos e ambientais das cidades pós-industriais (Paris de Haussmann, Barcelona de Cerdá, Viena de Forster). Ao conceber os planos urbanos como indutores do desenvolvimento, os técnicos apresentaram intervenções (e modelos de cidades) capazes de responder aos problemas urbanos provocados pela rápida industrialização urbana. Assim, a ideia de plano urbano concentrou um arcabouço metodológico centrado no técnico, que identificava os problemas e apresentava soluções projetuais para a cidade.
Direcionamento do movimento moderno
O movimento moderno no planejamento urbano pode ser compreendido como um terceiro período do paradigma da direção. Isso porque, ao reunir os diversos problemas e soluções para a cidade contemporânea em um todo harmonioso, o movimento moderno apresentou uma nova perspectiva para o planejamento urbano direcionar o desenvolvimento da cidade. A história do movimento moderno na arquitetura está intimamente ligada a realização do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna — Ciam. Os Ciams foram concebidos como um espaço no qual seria possível discutir a cidade moderna e definir soluções para os problemas que as cidades estavam enfrentando, tais como habitação, circulação e saneamento. Foi através dos Ciams que o modernismo buscou uma ruptura com as formas e métodos clássicos de resolver os problemas da cidade.
Em 1933 ocorreu em Atenas o Ciam n. 4, com o tema “A cidade funcional”, considerado um dos ápices do movimento modernista do ponto de vista urbanístico. Isso porque foi neste congresso que foram desenvolvidos os preceitos e funções da cidade modernista, posteriormente compilados em 1943 por Le Corbusier na controversa Carta de Atenas (21). Segundo Clara Irazábal (22) a carta foi elaborada “depois de uma série de congressos nos quais se discutiu como o paradigma da arquitetura moderna poderia responder aos problemas causados pelo rápido crescimento das cidades, causado, entre outros fatores, pela mecanização na produção e as mudanças no transporte”. Esse direcionamento do movimento moderno constitui uma terceira etapa do paradigma da direção no planejamento urbano. O quadro “Síntese da abordagem problema/solução presente na Carta de Atenas” permite perceber como o mecanismo problema-solução operou e direcionou cada dimensão da cidade proposta pela carta.
Eric Mumford, um dos maiores estudiosos sobre os Ciams, apresenta uma divisão destes eventos entre pré-guerra (Ciams n. 1 ao 5) e pós-guerra (n. 6 ao 11) em seu livro The Ciam Discourse on Urbanism, 1928–60. Outra divisão aceita na literatura é apresentada por Kenneth Frampton em seu livro Modern Architecture A Critical History, nele o autor divide os Ciams em três períodos: 1. hegemonia da língua alemã: primeira fase, vai do Ciam n. 1 ao n. 3; 2. hegemonia da língua francesa: período liderado por Corbusier, vai do Ciam n. 4 ao n. 7; 3. hegemonia da língua inglesa: período dominado pelo Team 10 (Ciam n. 8 ao Ciam’59). A partir da análise dos Ciams, é possível compreender que a solução preconizada pelo planejamento urbano moderno, teve como base os problemas urbanos ocasionados pela rápida transformação das indústrias nas cidades e, posteriormente, os problemas oriundos de suas próprias soluções exageradamente funcionalistas.
No que tange as questões sociais e políticas inerentes aos Ciams, Leonardo Benevolo (23) cita a ênfase de Corbusier para que fossem discutidas as questões de ordem arquitetônica e urbanística, antes das questões sociais e políticas. Para Corbusier era preciso respeitar uma ordem cronológica dos eventos. Ou seja, primeiro os técnicos deveriam formular suas propostas para as cidades (de forma tecnicamente realizáveis e cientificamente corretas), para posteriormente considerarem as questões políticas necessárias para implementação pelas autoridades. Esta postura reforça o caráter de planejamento urbano via projeto (característica do paradigma da direção), no qual os técnicos elaboram projetos de modelos de cidades (a partir de conceitos e soluções funcionalistas replicáveis). A ideia de planejamento urbano como um projeto concebido antes de questões sociais e políticas, reforça a ideia de planejamento urbano tecnocrático e autoritário.
Dentre as principais manifestações do planejamento urbano moderno, deve-se destacar o Plano Voisin. Elaborador por Corbusier, esse plano foi o “primeiro plano de renovação urbana proposto para a área central de Paris desde os dias de Georges Haussmann” (24). O Plano Voisin teve como base as ideias da Ville Contemporaine (proposta de Le Corbusier para uma cidade com 3 milhões de habitantes). Publicado em 1925, esse plano tinha como principal proposta a demolição do centro de Paris e a construção de um novo centro comercial constituído por arranha-céus em forma de cruz e edifícios lineares, além de um gigantesco sistema de autoestradas retilíneas. Para Corbusier essa proposta era necessária pois possibilitaria reordenar o trânsito de veículos na cidade tradicional. Isso seria importante pois na visão de Corbusier uma “cidade feita para a velocidade é uma cidade destinada ao sucesso” (25).
O plano da Cidade Radiante (Ville Radieuse), apresentado no Ciam n. 8 em 1930, foi outro manifesto de Corbusier que condensa as ideias do movimento moderno. O plano se trata de uma remodelação de Paris com base na verticalização, com arranha-céus inseridos dentro de um parque. Para chegar nessa proposta, Corbusier incorporou as ideias da Garden Cities no que ele chama de Cidade-Jardim Vertical (26). Com a Ville Radieuse, Corbusier apresenta uma perspectiva de modelo de cidade densa e vertical. Nesta cidade o plano térreo seria destinado aos pedestres, com as edificações elevadas sobre pilotis e um plano exclusivo para as autopistas. Corbusier defendia que a sociedade não estava fazendo o melhor uso dos avanços tecnológicos na área do transporte, por isso a necessidade das autopistas. Apesar do caráter radical e totalitário, a Ville Radieuse teve grande influência no planejamento urbano moderno.
Os ideais de cidade de Corbusier (concentração urbana) foram simetricamente opostos aos de Frank Lloyd Wright (que defendia a descentralização das cidades). Wright argumentava que os recentes avanços tecnológicos permitiam, e iriam permitir cada vez mais, aproximar áreas distantes. Mais precisamente, com carros e outras tecnologias de deslocamento não haveria mais a necessidade de proximidade. Wright deixou evidente essa postura no plano de Broadacre City: um sistema de ocupação disperso com baixa densidade populacional (um habitante por acre). Assim, as contradições de posturas dentro do que hoje se entende como movimento moderno podem ser bem evidenciadas ao confrontar os discursos de Corbusier e Wright. Se por um lado Corbusier apresentava uma perspectiva de cidade densa, transformada para internalizar um elevado fluxo de veículos. Por outro lado, Wright defendia que as novas tecnologias possibilitariam a dispersão da cidade, defendendo cidades com grandes deslocamentos e pouca densidade.
Entretanto, apesar das divergências internas, o movimento moderno moldou o sistema cognitivo do planejamento urbano (em termos de entender o problema e propor soluções), o que consolidou a ideia de planejamento como forma de direcionar o desenvolvimento urbano. Na busca de um novo tipo de cidade, um dos principais desafios do planejamento urbano moderno foi estabelecer a relação entre a cidade tradicional (existente) e as intervenções modernas. Apesar de cidades terem sido projetadas em sua totalidade a partir de ideais estabelecidos pelo movimento (a exemplo de Brasília e Chandigarh), a maior parte das intervenções modernistas tiveram que lidar com o patrimônio, cultura e paisagem de cidades já existentes e consolidadas do ponto de vista cultural e histórico.
Conclusão
O paradigma da direção no planejamento urbano surge com os problemas advindos da industrialização e com a internacionalização da ideia de urbanismo. Neste sentido, foi um dos primeiros movimentos de transformação e consolidação de um sistema cognitivo no planejamento urbano. A partir dele os técnicos passam a questionar o modus operandi do planejamento e como esse planejamento deveria localizar as infraestruturas, ativos e pessoas. Em sua primeira forma, o paradigma da direção estabeleceu as relações de base entre o campo e a cidade a partir das teorias da localização. Em paralelo surgiram os planos urbanos, a partir de uma necessidade de adaptação das cidades ao novo contexto urbano provocado pela industrialização. Por fim, o movimento moderno apresentou uma visão unificada e global de planejamento, com princípios que permitiriam tanto intervir em cidades históricas quanto propor novos modelos de cidades.
A concepção do paradigma da direção nesta pesquisa foi possível por meio da análise dos padrões de problemas e soluções estabelecidos pelo planejamento pós revolução industrial e suas diferentes formas de abordagens. Assim, o planejamento urbano orientado pelo paradigma da direção se desenvolveu em torno da complexificação dos problemas resultantes da revolução industrial e da mobilidade da cidade pós industrial. Conforme esses problemas foram aumentando o nível de complexidade, o planejamento foi mais exigido em termos de resposta às problemáticas resultantes. Enquanto as teorias da localização se preocuparam em apresentar modelos de cidades frente a problemática econômica da relação campo/cidade (uma resposta aos primeiros problemas da industrialização), o movimento moderno apresentou respostas à problemas mais amplos decorrentes da industrialização, tais como as soluções de ordenamento e controle urbano presentes na Carta de Atenas.
Pensar por paradigmas permite tanto avaliar como ocorreu a construção cognitiva do planejamento urbano, quanto interpretar as lacunas ou anomalias que podem indicar outras revoluções científicas e consequentemente a ascensão de outros paradigmas. Este artigo buscou estabelecer a ciência normal do planejamento via paradigma da direção. Por meio dos três eixos apresentados foi possível estabelecer duas ideias centrais: 1. a ideia de plano urbano como plataforma de implementação: com soluções pautadas em aspectos geométricos de projetos urbanos, os planos urbanos permitiram tanto a adaptação das cidades tradicionais, quanto a proposição de novos modelos de cidades; 2. centralidade do técnico para identificar os problemas e propor soluções por meio projetual. Ambos os aspectos conformam a ciência normal do planejamento via paradigma da direção e possibilitam novas investigações críticas a respeito das anomalias resultantes dessa forma de pensar o planejamento e a cidade.
notas
1
JACQUES, Paola Berenstein; PEREIRA, Margareth da Silva Pereira (org.). Nebulosas do pensamento urbanístico. Tomo 1: Modos de pensar. Salvador, Edufba, 2018.
2
KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1998.
3
FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte, Fabrefactum, 2010.
4
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5
CABRAL, Diego de Carvalho. Von Thünen e o abastecimento madeireiro de centros urbanos pré-industriais. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 28, n. 2, 2011, p. 405–427 <https://bit.ly/3wFB07r>.
6
PORTUGALI, Juval. The First Culture of Cities. In PORTUGALI, Juval (org.). Op. cit.
7
LIBERATO, Rita de Cássia. Revisando os modelos e as teorias da análise regional. Caderno de Geografia, v. 18, n. 29, 2008, p. 128 <https://bit.ly/3e19PNP>.
8
MATTEDI, Marcos Antonio. Pensando com o desenvolvimento regional : subsídios para um programa forte em desenvolvimento regional. Revista Brasileira de Desenvolvimento Regional — RBDR, v. 2, n. 2, 2015, p. 80 <https://bit.ly/3Qfwwvn>.
9
ALBRECHT, Jochen. Key Concepts and Techniques in GIS. London, Sage Publications, 2007.
10
CAVALCANTE, Luiz Ricardo Mattos Teixeira. Produção teórica em economia regional: uma proposta de sistematização. Revista Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos, v. 2, n. 1, 2008 <https://bit.ly/3TqQPIK>.
11
SIEBERT, Claudia. Estruturação e desenvolvimento da rede urbana do Vale do Itajaí. Blumenau, Edifurb, 1996.
12
MATTEDI, Marcos Antonio. Op. cit.
13
CAVALCANTE, Luiz Ricardo Mattos Teixeira. Op. cit.
14
PACCOUD, A. Planning law, power, and practice: Haussmann in Paris (1853–1870). Planning Perspectives, v. 31, n. 3, jul. 2016 <https://bit.ly/3CEc3Nz>.
15
AIBAR, Eduardo; BIJKER, Wiebe E. Constructing a City — The Cerda Plan for the Extension of Barcelona. Science, Technology, & Human Values, v. 22, n. 1, 1997 <https://bit.ly/3ATRs6t>.
16
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17
CHOAY, Françoise. O reino do urbano e a morte da cidade. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 18, São Paulo, 1999 <https://bit.ly/3QZTh7r>.
18
TERÁN, Fernando de. Revisión de la Ciudad Lineal: Arturo Soria. Arquitectura, n. 72, 1964, p. 13 <https://bit.ly/3Avyr8Z>.
19
CHOAY, Françoise. O reino do urbano e a morte da cidade. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História. São Paulo, v. 18, 1999 <https://bit.ly/3RbJXgC>.
20
ALMEIDA, Reginaldo Magalhães de. “Uma Cidade Industrial” de Tony Garnier: repensando a gênese do urbanismo progressista, no centenário de sua publicação. Revista de Morfologia Urbana, v. 5, n. 1, 2017 <https://bit.ly/3TkGluu>.
21
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22
IRAZÁBAL, Clara. Da Carta de Atenas à Carta do Novo Urbanismo. Qual seu significado para a América Latina? Arquitextos. São Paulo, n. 019.03, Vitruvius, dez. 2001 <https://bit.ly/3wFFRph>.
23
BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. São Paulo, Perspectiva, 2001, p. 508.
24
ANTHONY, Harry Antoniades. Le Corbusier: his ideas for cities. Journal of the American Institute of Planners. v. 32, n. 5, 1966, p. 282<https://bit.ly/3Readak>.
25
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 186.
26
BORGES, Pedro Pereira; DE OLIVEIRA, Lina Yule Queiroz de. O direito à cidade e o desenvolvimento local como base para a humanização do espaço urbano. Interações, Campo Grande, v. 19, n. 4, 2018 <https://bit.ly/3R1Rq26>.
sobre os autores
Leandro Ludwig é arquiteto e urbanista (Furb, 2014), mestre (2017) e doutorando pelo PPGDR FURB. Atualmente Preside o Núcleo Blumenau do Instituto de Arquitetos do Brasil — IAB. Publicou “Dilemas y perspectivas de vehículos aéreos no tripulados en el campo de la arquitectura y urbanismo” (Oculum Ensaios, 2020).
Marcos Antonio Mattedi é graduado em Ciências Sociais (Furb, 1991), mestre em Sociologia Política (UFSC, 1994) e doutor em Ciências Sociais (Unicamp, 1999), com estágio pós-doutoral no Centre de Sociologie de L´innovation (ENMP, 2003). Publicou Sociologia e conhecimento: introdução à abordagem sociológica do problema do conhecimento (Argos, 2006).
Denis Augusto Vicentainer é arquiteto e urbanista (Furb, 2014), membro do Núcleo de Estudos da Tecnociência do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da mesma universidade.