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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo discute, a partir de experimentações sonoras desenvolvidas em feiras populares, aspectos das espacialidades urbanas que se delineiam através da corporalidade, focando a discussão nos conceitos de lugar, paisagem e território sonoros.

english
The article discusses, based on sound experiments carried out in popular fairs, aspects of urban spatiality that are outlined through corporeality, focusing the discussion on the concepts of place, landscape and sound territory.

español
El artículo discute, a partir de experimentos sonoros realizados en ferias populares, aspectos de la espacialidad urbana que se perfilan a través de la corporeidad, centrando la discusión en los conceptos de lugar, paisaje y territorio sonoro.


how to quote

DIAS, Juliana Michaello Macêdo; MENDES JUNIOR, Walcler de Lima. Sonoridades de feira. Uma análise da espacialidade das feiras populares a partir da escuta. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 267.06, Vitruvius, ago. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.267/8571>.

“Ainda tem veneno!”.

Frequentadores das feiras da região do Mercado da Produção, em Maceió dificilmente passaram pelos seus becos labirínticos sem ouvir o anúncio de Galego do Veneno, tradicional vendedor da Feira do Passarinho que usa o bordão repetido através de microfone e caixa de som instalada ao lado do trilho do trem para chamar a atenção dos passantes. O vendedor joga com a possibilidade de ser ouvido sem ser visto para brincar com os ouvintes: “calma, calma, façam fila!”, “não precisa empurrar que tem pra todo mundo”, ainda que sua banca de venda de venenos e inseticidas não tenha mais a frequência anunciada. O apito do trem é outra marca sonora dessa região central da capital alagoana, cortando a região limítrofe entre o Centro e a Levada, bairros nos quais estão adensados os comerciantes e compradores que compõem o comércio popular da cidade. O rasgo cortante e ritmado do apito indicou por muito tempo para os feirantes da Feira do Passarinho a necessidade de recolher as lonas das barracas e aguardar a passagem do trem para retomar as vendas. Ao passar por entre as barracas de feira descobre-se o que está em abundância, o preço e as promoções pelos anúncios dos vendedores. “Olha o pesado!” e o corpo dos passantes se retrai e procura um nicho para abrir passagem aos carregadores.

É comum colocarmos o som em evidência quando eles se mostram desagradáveis e perturbadores, seja pelo volume, pela persistência ou pela frequência. Instituímos legislações urbanas para limitar seus horários e volume. No entanto, há pouco reconhecimento dos sons enquanto parte da nossa experiência social, exceto nos casos de suas expressões musicais ou de maior excepcionalidade. Propomos neste artigo refletir sobre a experiência sonora enquanto marca da vivência urbana.

Para precisar com mais clareza nosso campo de reflexão, cabe distinguir aqui nosso interesse antes pelas sonoridades que pelos sons. Enquanto estes últimos estão associados ao fenômeno acústico propriamente dito, as sonoridades abarcarão aspectos ligados à apropriação — incluindo aí a dimensão social da percepção destes mesmos fenômenos acústicos.

“O sufixo da palavra ‘sonoridade’ denota, genericamente, aspectos qualitativos, adjetivados, timbrísticos do som. O conceito de sonoridade descreve antes o processo, a totalidade dos desdobramentos implicados na escuta e não a coisa sonora. A questão é a de ouvir não o som, nem o que está no som, e sim o que está no ouvir, nas potências que nos afetam e que se movem, que se criam pela escuta” (1).

Antes de adentramos as discussões acerca das sonoridades enquanto engendradoras de sentidos de pertencimento e apropriação espaciais, através dos conceitos de lugar, paisagem e território, cabe uma ressalva para discutir o papel das percepções e afetos corpóreos na relação entre sujeitos e espacialidades. Na perspectiva que adotamos aqui, tratamos não da categoria espaço, em sua tradição abstrata e matemática, mas de espacialidade, enquanto possibilidade de instituir diferentes relações espaciais — enfatizando novamente o papel do corpo nesse mediar/constituir. Juhani Pallasmaa evidencia o papel do corpo não apenas na percepção de um espaço que preexistiria a ele, mas no sentido oposto, o quanto é a experiência corporal que inaugura a compreensão espacial.

“Eu confronto a cidade com meu corpo; minhas pernas medem o comprimento da arcada e a largura da praça; meus olhos fixos inconscientemente projetam meu corpo na fachada da catedral, onde ele perambula sobre molduras e curvas, sentindo o tamanho de recuos e projeções; meu peso encontra a massa da porta da catedral e minha mão agarra a maçaneta enquanto mergulho na escuridão do interior. Eu me experimento na cidade; a cidade existe por meio de minha experiência corporal. A cidade e meu corpo se complementam e se definem. Eu moro na cidade, e a cidade mora em mim” (2).

A experiência corporal é multissensorial, sinestésica e mediada pelas construções sociais e afetos subjetivos. Não é possível isolar, a não ser precariamente, os estímulos percebidos pelos corpos em visuais, auditivos, táteis, olfativos e gustativos. Antes, é a imbricação desses apelos sensórios e sua não dissociação que constrói a noção de espacialidade. Há interferências físicas nessa relação tanto por parte dos corpos — eles próprios diferentes em suas especificidades –, quanto nas suas implicações sociais — como as relações de poder postas em prática no/pelo corpo. As percepções sonoras, das quais vamos nos embeber na discussão que segue, não são, assim, isoladas num ouvido descolado do corpo como um todo, bem como não advêm de uma escuta passiva. Antes, baseiam-se numa noção de escuta ativa, proposta por Raymond Murray Schafer quando, para fins de uma “educação musical”, propõe a ideia de um ouvido pensante (3).

Espacialidades sonoras

A reflexão sobre a dimensão espacial do som se faz presente em debates interdisciplinares que permeiam a geografia, a comunicação, a filosofia e a arquitetura. Ora encarando o som a partir de suas premissas físico-acústicas (como muitas vezes se debruça a acústica arquitetônica e urbana), ora através de um enraizamento cultural (como na etnomusicologia), aspectos sociais das sonoridades permitem perceber na escala urbana algumas percepções espaciais distintas. Abordaremos, então, alguns aspectos desses processos de constituição das espacialidades através da experiência corpórea, e mais especificamente da percepção das sonoridades como mediadoras privilegiadas nesses agenciamentos.

Lugares sonoros

Partindo de uma conceituação antropológica confirmada pela geografia, os lugares, enquanto modo de constituir/conceber/compreender espacialidades, seriam marcados pelos processos de apropriação e significação. Atrelados à memória coletiva, lugares estabeleceriam processos de enraizamento e pertencimento de grupos sociais. As sonoridades, constituídas a partir desta perspectiva de significação simbólica, permitiriam acessar memórias e laços afetivos comunitários a partir de remissões nas quais processos de reconhecimento se estabelecem a partir da experiência. Souza enfatiza o caráter cultural-simbólico do conceito de lugar a partir de uma síntese das principais acepções do termo que se consolidam a partir da década de 1970.

“No caso do conceito de lugar, não é a dimensão do poder que está em primeiro plano, [...] mas sim a dimensão cultural-simbólica e, a partir daí, as questões envolvendo as identidades, a intersubjetividade e as trocas simbólicas, por trás da construção de imagens e sentidos dos lugares enquanto espacialidades vividas e percebidas, dotadas de significado, marcadas por aquilo que Tuan (1980) chamou de topofilia” (4).

A contribuição de Yi-Fu Tuan para o conceito evidencia justamente a experiência fenomenológica e corporal, permitindo uma compreensão do lugar enquanto relação espacial diferenciada, corporificada e experimentada.

“O próprio som pode evocar impressões espaciais. Os estrondos do trovão são volumosos; o estrídulo do giz no quadro negro é ‘comprimido’ e fino. Os tons musicais baixos são volumosos, enquanto os agudos parecem finos e penetrantes. Os musicólogos falam de ‘espaço musical’. Em música, criam-se ilusões espaciais completamente independentes do fenômeno de volume e do fato de o movimento logicamente implicar espaço” (5).

Por outro lado, há no conceito de lugar vinculado a aspectos de uma memória coletiva enraizada, aspectos críticos que tornam imprescindível uma discussão ampliada sobre sua acepção. Ulrich Oslender destaca uma necessária cautela com o termo:

“Um tal enfoque nostálgico do lugar tem sido mais recentemente criticado como uma super-romantização, em contraste com um ‘sentido global de lugar’ mais progressista, o qual vê os significados dos lugares menos como amarrados no tempo no espaço e mais como flexível e criativamente conectados a abrangentes redes globais de relações sociais e entendimento” (6).

Neste sentido, a proposta de nos aproximarmos das sonoridades das feiras a partir de um conceito provisório de lugar sonoro, pressupõe certamente uma compreensão delas enquanto potencializadoras de engendramentos corpóreos e de senso de reconhecimento. No entanto, percebemos que as sonoridades também são passíveis de modificações, novos entrelaces e que certas experiências de memória podem ser ativadas/vividas sem necessariamente propor uma petrificação das vivências urbanas.

Como exemplo desta capacidade elástica da experiência de reconhecimento podemos citar os sinos que tocavam para chamar fiéis para comparecerem às missas nas pequenas cidades do interior brasileiro. Com as dificuldades de manutenção dos sinos, bem como para reduzir o trabalho nada romântico de subir às torres e forçosamente fazer os sinos badalarem, a sonoridade tradicionalmente associada passou a ser gravada e tocada do alto das torres através de autofalantes.

Escutar a feira enquanto lugar permite pensá-la como espacialidade permeada pela significação, mas não por uma concepção enrijecida de memória urbana na qual a mudança poderia (ou deveria) ser evitada.

Paisagem sonora

O conceito de paisagem é em si mesmo polissêmico. Dentre várias raízes etimológicas que o vinculam à relação espacial de enraizamento entre espaço e quem o percebe/habita, o termo passa a ser associado à produção de um recorte determinado pelo ponto de vista e pelo enquadramento — portanto, através da relação homem-espaço. Sua primeira expressão artística aparecerá nas pinturas das paisagens flamengas e o conceito de paisagem será, por muito tempo, associado à visualidade e à contemplação.

Na geografia cultural a paisagem se converte, ela própria, em quadro de significação que se constrói através da relação entre aspectos concretos, objetivos, dados pela dimensão material do espaço e aspectos subjetivos, numa experiência simbólica incorporada.

“De fato o que está em causa não é somente a visão, mas todos os sentidos; não é somente a percepção, mas todos os modos de relação do indivíduo com o mundo; enfim, não é somente o indivíduo, mas tudo aquilo pelo qual a sociedade o condiciona e o supera, isto é, ela situa os indivíduos no seio de uma cultura, dando com isso um sentido à sua relação com o mundo (sentido que, naturalmente, nunca é exatamente o mesmo para cada indivíduo)” (7).

Se a paisagem se expande para além da visualidade contemplativa, é através dela que se inicia uma reflexão sobre a espacialidade a partir da sonoridade. O termo soundscape (paisagem sonora) apareceu na língua inglesa em fins do século 20 e se refere à totalidade dos sons que chegam a nossos ouvidos em determinado momento, constituindo certa noção de lugar. A criação do termo é atribuída ao compositor canadense R. Murray Schafer, entusiasta e estudioso da sonoridade de diversos habitats.

Por paisagem sonora, o autor compreende os eventos acústicos componentes de um lugar. “O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente” (8). Desta forma, o ambiente sonoro como um todo comporá a paisagem sonora, incluindo sons desejáveis ou não, contínuos ou esporádicos, ainda que para o autor o objetivo estivesse em compreender a paisagem sonora existente para, em certa medida, “higienizá-la”.

Engendrado ao conceito de paisagem cultural, o conceito de paisagem sonora pode ser revisto e ampliado ao denotar não apenas a ideia de uma paisagem de escuta saudável e clariauditiva, mas principalmente a noção de uma paisagem construída pelos laços constitutivos e constituidores de identificações culturais. Por esse motivo não poderíamos falar de paisagens sonoras enquanto boas e ruins, mas apenas enquanto parte integrante dos sistemas culturais de reconhecimento. A paisagem sonora da feira surge, assim, como ambiência ruidosa e culturalmente significativa.

Territórios sonoros

O conceito de paisagem sonora pode ser deslocado a partir da crítica deleuziana, substituindo o conceito de paisagem (que implica um recorte geralmente constituído pelo observador/ouvinte) pelo de territorialização (em que o ouvinte atua em diálogo com o meio, territorializando-o ao mesmo tempo em que é territorializado por ele).

“Um TS [Território Sonoro] não existe de antemão, ele se constrói e é fabricado, levantando muros sônicos, que podem proteger, mas também aprisionar. A dinâmica do ritornelo, de territorializar e desterritorializar o som, está imbricada na produção dos TSs. [...] Um TS está sempre prestes a se desterritorializar” (9).

Esta condição deleuziana dos territórios de se (des)(re)constituírem pressupõe uma percepção do território enquanto marca expressiva. “O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a marca que faz o território. As funções de um território não são primeiras, elas supõem antes uma expressividade que faz território” (10).

É preciso, pois, pensar o quanto o ouvido não é também personagem atuante desse mesmo drama, produzindo e destruindo territórios, por ato auditivo ativo e afirmativo. Assim, propõe-se o jogo entre som (como expresso pelo ritornelo deleuziano) e escuta estabelecendo uma dupla possibilidade de rasura, atuando no deslizamento do que se quer dizer música, do que se quer dizer ruído e do que se quer dizer silêncio.

Não é especialmente difícil pensar nos processos que indicam, na feira, territórios sonoros. Se pensarmos nos jargões, muitas vezes em disputa, dos feirantes especialmente no momento da xepa, encontramos aí marcas expressivas que territorializam.

Escutando feiras

Pensadas enquanto lugares, paisagens e territórios urbanos, as feiras livres especificam também um modo de ocupar as cidades que dialoga com conceitos que correm nas margens do planejamento, do urbanismo e da gestão das cidades marcados pelo julgo moderno da higienização e da priorização da apreensão visual.

“O fato de o vocabulário modernista em geral não ter conseguido penetrar na superfície do gosto e dos valores populares parece ser resultado de sua ênfase visual e intelectual injusta; a arquitetura modernista em geral tem abrigado o intelecto e os olhos, mas tem deixado desabrigados nossos corpos e demais sentidos, bem como nossa memória, imaginação e sonhos” (11).

No caso das feiras livres tradicionais, especialmente as do território nordestino, falamos de espaços que são atravessados por aromas e fedores, gritos e musicalidade, apertos e desvios. Percorrer a espacialidade de uma feira livre é engendrar um corpo que se impregna, se suja, sua, cansa, prova, carrega, esbarra. Nesta experiência a massa sonora disforme e seus pontos de destaque constituem e determinam parte do processo de identificação e territorialização.

Neste ponto do artigo propomos a escuta simultânea à leitura, do experimento “Áudiovisual Sonoridades de feiras” (12). Destacamos que tal proposta de escuta não pretende ilustrar o que está sendo descrito no texto, mas antes promover contaminações entre texto escrito e sonoridades percebidas, engajando o corpo-leitor na tecitura do artigo. Ambos os discursos, que a partir deste momento de leitura aparecem como complementares (ainda que possam ser discrepantes, diruptivos, sobressaltantes), provêm de experiências incorporadas em diferentes feiras livres, em anos de pesquisa em seus territórios, mas também enquanto frequentadores usuais destas.

Montagem — territorialização e temporalidade

No silêncio da madrugada, aos poucos sons de motor, marteladas, choques metálicos e vozes povoam ruas ainda imersas nas luzes artificiais da iluminação pública. Os sons da feira a se montar antes do dia clarear penetram as casas próximas antes mesmo dela ser vista. A montagem da feira ocorre nas primeiras horas do dia para que no começo da manhã esteja repleta de consumidores.

Quando pensamos o agenciamento sonoro da montagem de uma feira livre, percebemos muito claramente um processo de territorialização que toma os espaços da cidade e os transforma em outra experiência. O tornar-se em casa da feira estabelece relação com o que Deleuze e Guatarri propõem ao nos fazer ouvir a territorialização de uma criança no escuro.

Se o montar é gestual e envolve força, gestos e ações de organização, a sonoridade produzida neste ato nos permite compreender parte da territorialidade criada. Se as bancas são de madeira ou metal compreende-se o tipo de infraestrutura que oferece a feirantes e passantes. Se são muitos feirantes, e consequentemente muitas barracas, o som de vozes começa cedo também.

A sonoridade, tal qual a luminosidade, se modifica e se ajusta à passagem do tempo. Se nas primeiras horas do dia, quando o sol ainda nem apareceu, é a montagem das barracas que modifica o ambiente sonoro, nas primeiras horas da manhã o movimento intenso de passantes acompanha o calor crescente e a feira se mostra em sua maior intensidade sonora. Os jargões se modificam quando o horário avança e os produtos precisam ser vendidos para não se perder mercadoria. A hora da xepa é marcada por anúncios que evidenciam a quantidade e o preço, com promoções anunciadas em tom de voz cada vez mais alto. Ao final do dia, a desmontagem das barracas muitas vezes se emaranha com o som proveniente de bares efêmeros ou fixos, dos bêbados que deram feira ou vieram atrás do movimento.

Nessa passagem do tempo que conforma um dia de feira, percebemos diferentes relações espaciais a partir das sonoridades. A temporalidade pode ser percebida também na mudança dos anúncios que se ajustam para vender novos produtos, nos brinquedos que passaram das traquitanas de madeira para o elétrico latido do cachorro de pelúcia cor de rosa. A feira possui, ela própria, uma historicidade alongada que também se conta através do ouvido.

Ambiência — reconhecendo paisagens

Se a experiência da montagem nos permite perceber o agenciar territorial da feira se fazendo nas ruas, há do mesmo modo uma massa sonora que caracteriza e permite reconhecer os momentos, o tamanho e as características das feiras. Esse conjunto, que apresenta uma espécie de composição sonora própria, apresenta destaques, é entrecortado de falas, conversas, batidas, musicalidades, que apesar de se fazerem diferentes a cada instante, nos tornam perceptível a paisagem.

Na mesma medida que os dejetos dos produtos que ganham o chão das ruas próximas, os ruídos indistintos das feiras ampliam sua espacialidade e permitem reconhecê-la. Ao se atravessar a espacialidade percebe-se também que a paisagem é alterada com o compasso do movimento — novos sons passam a ser percebidos e a compreensão geral que se tem do espaço pode ser identificada a esta trajetória. Como uma paisagem que se estrutura na caminhada, a sequência da percepção das formas sonoras, suas sobreposições e interpenetrações variam também com os recortes e enquadramentos produzidos pela escuta.

Comércio falado — defender o território

Talvez um dos elementos mais marcantes nas feiras livres tradicionais, o comércio falado aparece como uma constante ao percorrer seus espaços. Expressão de um modo de troca que se estabelece na relação de confiança entre feirante e comprador, é comum que os jargões sejam utilizados como meio de atrair os possíveis fregueses e uma das características desse meio expressivo é o uso de bordões bem-humorados, entoados de maneira melodiosa e repetitiva.

O uso dos jargões conforma um dos modos dessa enunciação, mas por outras vezes o enunciado apresenta apenas o valor dos produtos, que são repetidos ritmicamente e por vezes certa melodiosidade da voz exprime atrativos e entrecorta a massa repetida de R$ 2,00, R$ 10,00, R$ 5,00...

Nem sempre se anuncia o produto, já que a estratégia é primeiramente se destacar numa paisagem sonora ruidosa, para depois negociar. Deleuze e Guattari destacam, ao tratar de territorializações, justamente o grito dos feirantes como uma territorialização “de ofício”.

“Há aqui como que o tema nascente da especialização ou da profissão: se o ritornelo territorial atravessa tão frequentemente ritornelos profissionais, é que as profissões supõem que atividades funcionais diversas se exerçam num mesmo meio, mas também que a mesma atividade não tenha outros agentes num mesmo território. Ritornelos profissionais cruzam-se no meio, como os gritos dos feirantes, mas cada um marca um território onde não pode se exercer a mesma atividade nem ecoar o mesmo grito. No animal como no homem, são as regras de distância crítica para o exercício da concorrência: meu cantinho de calçada. Em suma, há uma territorialização das funções que é a condição de seu surgimento como ‘trabalhos’ ou ‘ofícios’. É nesse sentido que a agressividade intraespecífica ou especializada é necessariamente primeiro uma agressividade territorializada, que não explica o território, porque dele decorre” (13).

Estas marcas territoriais sonoras implicam no estabelecimento e no desafio às fronteiras sem que estas conformem barreiras físicas. Por vezes é nas zonas de respiro de um vendedor que outro se destaca. Por vezes um jargão dialoga com outro ou com algo que passa.

Autofalantes — hierarquias, repetições e poder

Modo particular da expressão do comércio falado, o uso de autofalantes se faz presente nas feiras a algum tempo, porém se torna ainda mais presente à medida que os aparelhos que permitem a amplificação se tornaram mais acessíveis. Como modo de lidar com a fadiga que os jargões tradicionais produzem, é comum que se utilizem tanto microfones para anúncios ao vivo quanto gravações, que se repetem cansativa e initerruptamente.

No entanto, se por um lado o uso deste recurso permite ao feirante um menor desgaste da voz, por outro ele impõe àqueles que o cercam uma escuta longa (tanto no sentido espacial quanto temporal) dos seus anúncios e a necessidade de aumentar ainda mais a amplitude da voz. Em certa medida o autofalante permite, através do volume e alcance, ampliar o espaço de venda de um produto, tecendo com os compradores uma experiência de distanciamento e procura, já que se chega ao produto ofertado seguindo o som. Por outro lado, a massa sonora se torna ainda mais densa.

Em muitos casos relações de poder são expressas também pelo uso das caixas de som e amplificadores. Dotadas de melhor infraestrutura, as lojas formais dos centros da cidade — onde é comum que as feiras tomem lugar — usam com mais frequência os equipamentos eletrônicos, estabelecendo uma hierarquia sonora que por vezes será reproduzida também pelos feirantes em suas barracas. Se no comércio falado o humor e a interação direta com os consumidores se fazem primordial, a introdução cada vez mais constante do som amplificado produz novas disputas por espaço.

Musicalidades — experiência de territórios sobrepostos

Quando pensamos em feiras populares no Nordeste, pensamos em várias expressões sonoras musicais e na literatura oral dos cordéis de feira. Em alguns municípios as feiras também se tornam cenário para que artistas populares mostrem sua criatividade, seja através do pífano, da sanfona ou mesmo das toadas e desafios de repentes improvisados pelos cantadores. Hermeto Pasqual ao falar da feira livre de Arapiraca, cidade do agreste alagoano, no documentário A última feira destaca a influência desta numa experiência sonora “universal”.

“Toda segunda feira eu ia. Eu ia a cavalo, ia com meu pai, com a minha família. Tocava muito na feira. Aprendi muito com aquela feira. Tinha cantadores, tinha todo tipo de música. É por isso que eu faço música universal, porque lá a música já era universal. Você tava de lado via um cara tocando uma viola, tocava um pandeiro, o outro tava vendendo cocada o outro rapadura, vendendo banana. E é por isso que eu faço essa música universal, que é muito misturada e o começo de tudo isso foi justamente a feira de Arapiraca e de Lagoa da Canoa” (14).

Entretanto, ao percorrer esses espaços na contemporaneidade é bastante comum que esses sons ao vivo estejam cada vez menos presentes. Por outro lado, a marca da musicalidade continua através da venda de CDs piratas em carrinhos que deambulam por entre as barracas. É comum escutar simultaneamente um funk, um arrocha e música gospel, por vezes emboladas e muitas vezes substituindo as canções tradicionalmente executadas ao vivo.

Jogos e o rapa — informalidades, ilegalidades e interdições

Feiras livre são em muitos aspectos territórios da informalidade. Ainda que permeadas por tentativas de controle, há dimensões do jogo entre os poderes institucionalizados e os praticantes das feiras que escapam do ordenamento e mesmo da legalidade. Com a venda de animais vivos ainda muito presente, o cacarejo, o pio das aves e o berro de bodes e cabras permitem perceber rapidamente onde encontrar tais animais. Ainda que algumas espécies, com venda proibida, sejam escondidas dos olhos da rua, para evitar o acesso de fiscais, vez por outra a melodia de um canário da terra atinge o corpo de quem passa.

São marcas sonoras, também, que indicam para os vendedores não formalizados a necessidade de desaparecer temporariamente quando a fiscalização se aproxima. O som agudo de apitos e assobios se desloca pela feira com maior eficiência que os fiscais, e basta que um ambulante dê o sinal para que outros reproduzam o alerta, indicando uma rede de solidariedade e organização igualmente notável. Os assobios entre informais avisando da fiscalização constituem um jogo no qual os fiscais em alguns momentos dialogam com o ritmo, permitindo sem permitir as movimentações em seu território.

Há brechas sonoras que espacializam com clareza ilegalidades sobre as quais se faz “escuta grossa”. Como não escutar a roleta do jogo do bicho ou o carteado sobre os quais se fazem apostas? Por outro lado, quando se trata dos jogos de poder entre praticantes das feiras, as vozes masculinas predominam em certos espaços, onde não se pode aproximar tranquilamente se se for a “moça bonita que não paga, mas também não leva”.

Cortes, máquinas e bichos — espaço e modos de fazer

É muito comum que, por questões sanitárias, a venda de carnes seja realizada em mercados públicos, ou recintos fechados de outra natureza, que permitam a refrigeração. Devido a características desses ambientes (como o fechamento e o revestimento em azulejo que facilita a limpeza) a sonoridades desses espaços tendem a produzir reverberação, aumentando a sensação e inquietude que certas sonoridades apresentam.

O som de cortes empreendidos com uso de extrema força se faz muito presente nesses espaços, tornados ainda mais inquietantes quando acrescidos ao abate de animais vivos que produzem seus próprios sons de resposta à degola. O corte de peças de carne, a separação de ossos, a máquina que permite fatiar queijos, se juntam ao cacarejo das aves e são reverberadas pelo espaço físico.

Tais sonoridades também indicam ofícios e se articulam com o fazer. Nestas sonoridades de ofício o som das facas sendo amoladas para cortar peixes e carnes e o som de marteladas são exemplos intensos, mas há outros mais sutis, como o farfalhar da água sendo aspergida para manter ervas e hortaliças frescas.

Doença e remédio — tradição e outras espacialidades

Em decorrência das características tradicionais das feiras populares, nordestinas em especial, o comércio de ervas, tratamentos, unguentos, lambedores e fórmulas que prometem a cura de males e doenças físicas e emocionais, se faz presente em inúmeros anúncios de produtos repetidos initerruptamente nas feiras.

Desfiando um conjunto aparentemente interminável de doenças que seriam curadas pelo produto oferecido, os anúncios têm um ritmo e uma relação muito própria com os compradores, fazendo uso muitas vezes de brincadeiras, comentários maliciosos e a relação com aspectos espirituais para validar a qualidade dos produtos oferecidos.

A presença mesma destes produtos e seu anúncio típico marcam, além da permanência de uma prática vinculada à medicina popular tradicional, também a conexão das feiras com um modo de plantio, cultivo e trato com ervas, plantas, madeiras e outros produtos naturais não industriais ligados a espacialidades não urbanas, mesmo que esse plantio possa ocorrer no quintal de uma casa na cidade.

Silêncio — a anti-clariaudiência da feira livre

Até este momento do texto falamos com mais frequência de sons e sonoridades. Em alguns momentos, estes foram relacionados às suas fontes, em outros a uma narrativa gestual ou ainda às relações que se estabelecem entre eles. Neste ponto, consideramos fundamental falar de outro componente das urbanidades sonoras: o silêncio.

O campo sonoro é palco de uma constante batalha de destruições de paradigmas e conceitos que definem o que é o musical, o ruído e o silêncio. Uma vez que o contexto determinaria os limites estéticos do que deve ser classificado por som, música, ruído e silêncio, essas construções devem, por sua vez, responder à construção contextual (social, político, cultural, construída por um discurso) ora desafiando o limite ora subordinando-se a ele.

“Entendemos que seja possível pensar o som num outro contexto, não como poluição, pois a poluição não é uma simples questão ecológica, mas de produção, que está diretamente vinculada a um modo de viver no mundo, um modo de se aglomerar, de concentrar corpos no espaço, de marcar e ocupar território” (15).

É, pois, no tensionamento da escuta enquanto um modo de existir, ocupar e habitar que inventamos com ela som, ruído, murmúrio e música. O sonoro se desloca assim entre o silêncio e o ruído, mas não sem drama ou conflito. Desta forma, o silêncio que tratamos inicialmente, ao falar da montagem da feira e como ela o corta, aparece como outra referência ao nos encaminharmos para seus limites territoriais, onde o som vai se desfazendo pouco a pouco. O silêncio marcaria a princípio zonas de limiar entre feira e não-feira.

Mas também podemos pensar o que seria o silêncio dentro da feira. Como compreender sonoridades e seus limiares menos por uma espécie de normativa e mais pela compreensão de que estes limites entre o som e o ruído, o barulho e o silêncio sejam conformados por redes contextuais que engendram corporalidades sociais.

Talvez ao pensar os silêncios depois de percorrer uma feira falemos de pausas e respiros, descanso para os ouvidos que são intrigados, ativados e fatigados pela experiência. Mas talvez também possamos escutar silenciamentos. Atos arbitrários de tornar inaudíveis espacialidades atávicas à nossa cidade, mas que não se dão à clauriaudiência ou uma experiência corporal higienizada. Escutar os silêncios das feiras livres pode ser um caminho enriquecedor para dar ouvidos a outras cidades subjacentes — cidades inaudíveis.

Conclusões

Enquanto a experiência de percorrer uma feira livre é um convite em si para experimentarmos nossas relações espaço-sensórias, por outro lado, várias camadas dessa experiência permitem perceber as implicações da constituição de certas relações socialmente mediadas com o espaço. Perceber os jogos de poder implícitos numa disputa territorial por clientes através de jargões jocosos, ou a relação com camadas da memória urbana a partir do canto dos passarinhos vendidos ilegalmente nas feiras, nos abre outras possibilidades de nos relacionar com as sonoridades urbanas, que se ampliam para além das especificidades dos sons que nos permeiam.

As camadas sonoras das feiras, que podem ser percebidas como uma massa ruidosa numa primeira escuta (assim como a feira é sempre relatada como um espaço labiríntico a um primeiro olhar), com a ativação de uma escuta encarnada podem fazer compreender transformações territoriais, agenciamentos, aproximações e distanciamentos entre espaços da cidade.

Na prática de um planejar e pensar urbano muitas vezes descarnados, a atenção aos territórios engendrados pela experiência sonora pode nos ajudar a escutar novos arranjos, empreender outras aproximações, como compreender os espaços a partir do limite de escuta do grito de um feirante. Na medida das memórias coletivas marcadas por essas mesmas experiências, a reflexão sobre o memorar incorporado, enquanto prática e percepção desloca a atenção do objeto para as práticas, usos, sentidos e movimentos manifestos nas complexas relações estabelecidas entre corporalidades e espacialidades.

O estudo das territorialidades sonoras em sua relação com as práticas cotidianas que engendram grupos e lugares de significação permite ampliar a compreensão das relações culturais de pertencimento, marcadas pelas permanências, novos agenciamentos e linhas de fuga. A discussão sobre a qual nos debruçamos aqui e que propomos ser ampliada, procura introduzir as apreensões corporais como expressão de modos de vida e dos territórios experenciais da cidade. Parafraseando Calvino, pensamos em escutar cidades inaudíveis como operação de aproximação com outras camadas do urbano.

notas

NA — A discussão apresentada neste artigo é fruto de pesquisa em andamento financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico — CNPQ e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas — Fapeal, intitulada “Feiras Populares: territórios do persistir”, desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa Nordestanças.

1
RODRIGUES, Rodrigo Fonseca e. Som e sonoridade: as imagens do tempo na escuta musical. Per Musi, n. 16, Belo Horizonte, 2007, p. 82.

2
PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre, Bookman, 2011, p. 37–38.

3
Ver SCHAFER, Raymond Murray. O ouvido pensante. São Paulo, Editora Unesp, 1991.

4
SOUZA, Marcelo Lopes de. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2013, p. 115.

5
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Londrina, Eduel, 2015, p. 24.

6
OSLENDER, Ulrich. Apud SOUZA, Marcelo Lopes de. Op. cit., p.118.

7
BERQUE, Augustin. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemática para uma geografia cultural. In CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (org.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro, Eduerj, 1998, p. 87.

8
SCHAFER, Raymond Murray. A afinação do mundo. São Paulo, Editora Unesp, 2011, p. 366.

9
OBICI, Giuliano. Condição da escuta. Rio de Janeiro, 7letras, 2008, p. 100.

10
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro, Editora 34, 1995, p. 121.

11
PALLASMAA, Juhani. Op. cit, p. 19.

12
GRUPO DE PESQUISA NORDESTANÇAS. Sonoridades de feira. YouTube, San Bruno, 18 abr. 2022 <https://bit.ly/3wIuE7h>.

13
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Op. cit., p. 129.

14
Ver FIGUEIREDO, Hermano. A última feira. YouTube, San Bruno, 23 ago. 2015 <https://bit.ly/3pW09XG<>

15
OBICI, Giuliano. Op. cit., p. 49.

sobre os autores

Juliana Michaello Macêdo Dias é professora associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas. Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo Ippur UFRJ e líder do grupo de pesquisa Nordestanças.

Walcler de Lima Mendes Junior é professor titular do Centro Universitário Tiradentes e do Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Tecnologias e Políticas Públicas. Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo Ippur UFRJ e líder do grupo de pesquisa Nordestanças.

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