Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este ensaio trata de duas vertentes arquitetônicas revivalistas que floresceram no Brasil — a neoclássica e a neocolonial — e revisita o debate iniciado nas primeiras décadas do século 20 acerca da identidade arquitetônica nacional.

english
This essay deals with two revivalist architectural trends that flourished in Brazil — the neoclassical and the neocolonial — and revisits the debate started in the first decades of the 20th century about the national architectural identity.

español
Este ensayo aborda dos lenguajes arquitectónicos revivalistas que florecieron en Brasil — el neoclásico y el neocolonial — y revisa el debate iniciado en las primeras décadas del siglo 20 sobre la identidad arquitectónica nacional.


how to quote

RABELLO, Jessica Soares de Araújo; CAVALCANTI FILHO, Ivan. Os neos do Brasil. Reflexões sobre a identidade arquitetônica nacional. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 267.01, Vitruvius, ago. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.267/8570>.

No campo das artes e da arquitetura, o prefixo “neo” (novo) tem sido atribuído, em geral, à nomenclatura de revivalismos artísticos: neobizantino, neobarroco, neogótico, e muitos outros. No Brasil, o termo recebe interpretações ambíguas no que concerne às linguagens neoclássica e neocolonial, que frequentemente têm sido incorporadas à categoria de ecletismo. Nesse sentido, é importante ressaltar que, enquanto as vertentes revivalistas adotam elementos formais que lhes são próprias e que as filiam a determinada linguagem arquitetônica do passado; o ecletismo, por outro lado, tem por base a liberdade compositiva dentro de um repertório de diversos estilos, o que Annateresa Fabris chama de “atitude poliestilística”, que põe fim à ideia de unidade e aspira ao múltiplo, ao diversificado, privilegia o instável e o relativo em detrimento do absoluto e do eterno (1). Amparado nessa definição, o presente ensaio não visa exercer juízo de valor sobre as referidas produções arquitetônicas, antes busca se ater aos discursos que as fundamentaram em seus respectivos contextos.

No caso da arquitetura brasileira, paradoxalmente, os revivalismos reagiriam contra um passado recente, aspirando ao novo e ao progresso sob a égide de tradições arquitetônicas anteriores (ou “superiores”). Nesse contexto, duas vertentes poderiam ser destacadas como resultantes desses anseios em suas respectivas épocas. Primeiro, no período imperial, quando a arquitetura neoclássica passa a ser difundida como uma ferramenta de transformação urbana e superação da imagem colonial das cidades, tendo como referência as metrópoles europeias. E posteriormente, com as mudanças sócio-políticas do regime republicano e a aproximação do Centenário da Independência (1922), quando o neocolonial surge como reflexo de um discurso nacionalista que pretendia resgatar formas arquitetônicas coloniais em reação aos influxos estrangeiros expressos na arquitetura brasileira do século 19 até início do século 20.

Nesse sentido, o presente ensaio intenta explorar as reflexões que embasaram essa produção, figurando nos debates acerca da identidade arquitetônica nacional no início do século passado. Considera-se pertinente, portanto, elencar os principais embates e controvérsias presentes na narrativa histórica, partindo do pressuposto de que “nem sempre a história oficial é a única versão por aceitar, principalmente se existem outros fatores envolvidos, nem sempre dignos de mérito ou prenhe de virtudes” (2).

Para atingir seu objetivo, o ensaio aborda, na sua primeira seção, o contexto sócio-cultural que ensejou a produção arquitetônica neoclássica no Brasil, destacando seu ideário inovador com relação às práticas coloniais. A segunda seção trata do Neocolonial como ferramenta de desconstrução e substituição da imagem do edifício e da cidade, antes pautada no modelo Beaux Arts, por uma nova arquitetura composta a partir de elementos formais do passado colonial. Uma vez feitas as devidas ponderações nos termos propostos pelo trabalho, o mesmo conclui com uma reflexão sobre a pertinência de mergulhos mais profundos sobre o tema dados os diferentes contextos e agentes que o envolvem.

O neoclássico anti-colonial

A difusão da estética neoclássica no Brasil remete a meados do século 19 e tem sido, em geral, associada à chegada da Família Real em 1808, momento consagrado pela historiografia como início de um período de aceleração cultural no país. Fugindo das tropas napoleônicas, a Corte Lusitana se transfere de Lisboa para o Rio de Janeiro, a única cidade colonial do mundo a tornar-se capital de seu império (3). Dentro de um cotidiano de escravidão, violência e desigualdade social, a retórica grandiloquente da realeza estava longe de corresponder à idealização neoclássica de heroísmo. No entanto, buscava-se reafirmar a imagem civilizada e constitucional da monarquia através de ações de embelezamento e modernização nas principais cidades brasileiras. Afinal, a então capital do Brasil não se encontrava à altura das exigências da corte, cuja referência era a Lisboa pombalina, reconstruída após o terremoto de 1755 sob as tendências do neoclassicismo europeu (4). Nesse contexto, no ano de 1811, desembarcava no Rio de Janeiro o Primeiro Arquitecto das Reais Obras, o português José da Costa e Silva, formado na Academia Clementina de Bolonha junto a mestres de reconhecido mérito. Apesar da avançada idade, quase 65 anos, Costa e Silva concebeu diversos projetos e também intervenções em espaços e edifícios preexistentes. Além dele, pode-se destacar a atuação de inúmeros profissionais de índole estrangeira vinculados ao iluminismo e ao gosto neoclássico, dentre os quais o grupo mais afamado seria aquele de origem francesa, que será tratado mais adiante.

Para além do apelo estético, Mário Barata destaca que as transformações ocorridas na arquitetura desse período também estariam ligadas a uma nova demanda de usos civis: “A Côrte e as capitais das províncias vão exigir instalações condígnas para secretarias de govêrno, assembléias, hospitais, escolas, faculdades, instituições de crédito” (5). A nova arquitetura funcionaria, portanto, como uma ferramenta de transformação urbana na medida em que a ordem era suplantar a imagem colonial das cidades de modo que correspondessem ao novo status político do território português na América.

“Pois bem, o século 19 traduz o completo repúdio a essa arte colonial [o barroco], como se a evolução política realizada em nosso país, transformando-o em reino e, logo a seguir, em império, exigisse, de momento, um ambiente inteiramente novo, tendo, por pano de fundo, as formas da arquitetura neoclássica” (6).

Para os apologistas da chamada Missão Francesa, teriam sido seus integrantes os introdutores da linguagem classicizante no Brasil. A missão compreendia um grupo de artistas franceses que, após a queda do império napoleônico, se refugiaram no Brasil em 1816 e, dez anos mais tarde, inauguraram a Academia Imperial de Belas-Artes. Dentre eles, estavam Joachim Lebreton, líder do grupo, os irmãos Taunay, Jean Baptiste Debret e o arquiteto Grandjean de Montigny (7). Essa versão, que adquiriu destaque na historiografia, foi defendida por Adolfo Morales de Los Rios Filho em sua obra Grandjean de Montigny e a evolução da arte brasileira, de 1941: “com a vinda da Missão Artística, a arte brasileira, mormente a arquitetura, sofreu influência daqueles que estavam imbuídos do espírito neoclássico, ou acadêmico” (8).

Vale destacar que o ano da sua publicação coincide com um momento de acirrados confrontos entre o modernismo emergente e as diversas tendências historicistas. Morales de Los Rios Filho esteve profundamente envolvido nesses debates, por um lado, devido a sua própria formação, e por outro, devido a seu pai, homônimo seu, que foi um dos arquitetos mais destacados na virada do século no Rio de Janeiro, o mais premiado nos concursos da avenida Central e alvo preferido do escárnio dos modernistas (9). Günter Weimer destaca que, ao relevar a personalidade de Montigny, Los Rios Filho conseguiu privilegiar a Academia que ele fundou, a de Paris onde fora docente e onde se formou também o seu pai, Adolfo Morales de Los Rios. Nesse sentido, o autor enaltece principalmente o classicismo tido, por ele, como a base de todo o fazer arquitetônico (10).

Se por um lado Los Rios Filho realça o progresso artístico promovido pela Academia, por outro uma série de estudiosos questionam o pioneirismo dos artistas franceses e o controverso qualificativo missão (11), introduzido no século seguinte à vinda da colônia Lebreton por Afonso de Taunay em A Missão Artística de 1816. O termo utilizado pelo autor não encontra eco em obras anteriores que trataram da questão. O próprio Jean-Baptiste Debret, integrante do grupo, utiliza a expressão “notre colonie” ao relatar a história dos artistas emigrados para o Rio em sua Voyage Pittoresque et Historique au Brésil (1834–1839). O termo “colônia” é retomado por seu discípulo, Manuel de Araújo Porto-Alegre e, anos mais tarde, por Félix Ferreira em Belas Artes: estudos e apreciações (1885), e também por Gonzaga Duque, que se refere à “colônia Lebreton” em sua A arte brasileira (1888) (12). Na verdade, o termo missão evidencia a visão do próprio Taunay acerca de um suposto papel civilizador dos franceses na cultura do Império. Nesse sentido, o historiador não pouparia críticas ao cenário artístico brasileiro às vésperas da chegada dos estrangeiros:

“Mau grado os esforços encomiasticos de alguns escritores, inspirados por exagerado nacionalismo, o que resalta aos olhos julgadores imparciaes é que a arte brazileira dos principios do seculo 19 era, e fôra até então, quasi nulla.
Salvo uma ou outra manifestação de mediocre intuição do officio, neste ou naquelle primitivo, os nossos pintores e esculptores só haviam dado mostras de rudimentariedade artistica. Nas nossas feíssimas igrejas, excepção feita de uma ou outra, a decoração interna e as telas e paineis provinham de verdadeiros pintamonos” (13).

O texto de Taunay foi editado pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro — RIHGB em 1911 e também em separata no ano seguinte, sendo aparentemente bem recebido pelos contemporâneos, pois recebeu um prêmio do mesmo Instituto em 1917 (14). Nesta obra, porém, os interesses pessoais são bem mais claros, uma vez que o autor dá um destaque por demais evidente a seu bisavô, o pintor Nicolas-Antoine Taunay, que foi o primeiro integrante do grupo a retornar à França antes mesmo da inauguração da Academia Imperial de Belas-Artes (15).

Em concordância com Weimer, não se pretende ignorar a influência dos franceses no desenvolvimento cultural do Brasil, tampouco cair no exagero de atribuir-lhes uma pretensa importância transcendental nos rumos das artes no país. Afinal, as primeiras manifestações de índole classicizante foram lentamente concebidas ao longo da segunda metade do século 18 e refletiram a progressiva mudança da mentalidade nacional em suas relações com o império português desde Pombal (16). Tais manifestações se faziam sentir através de traços básicos do edifício, sobretudo de fachada, onde sua composição era capitaneada por frontão clássico e pela disposição simétrica e equilibrada de aberturas e demais elementos formais de seu alçado, como cornija, cunhais, entre outros elementos (17).

De fato, Montigny nascera no ano de 1776, quando o Palácio dos Governadores, o projeto mais conhecido do arquiteto italiano residente em Belém do Pará Antonio Landi, já tinha dez anos de concluído. A literatura ainda destaca a Igreja de Santa Cruz dos Militares, a Igreja de Nossa Senhora da Candelária, o Teatro de São João, no Rio de Janeiro, e o prédio da Associação Comercial da Bahia, em Salvador, entre outros exemplares de caráter classicizante que foram construídos antes da chegada da Missão em 1816 (18).

Palácio dos Governadores, Belém PA
Foto Ivan Cavalcanti Filho, 2012

Mesmo no âmbito do ensino da arquitetura, sabe-se que foram incorporadas orientações artísticas da Renascença no currículo da Academia Militar: “Vitrúvio, Alberti, Vignola, Palládio, Sérlio e outros autores codificaram proporções da antiguidade clássica, e seus princípios ainda encontram aplicação, embora limitadas, nas Casas de Câmara e Cadeia” (19). Alguns autores, inclusive, preferem referir-se a uma permanência do gosto renascentista herdada dos engenheiros portugueses, uma linguagem que de maneira nenhuma repudiou a tradição colonial, antes a absorveu e refinou.

Alberto Sousa chega a recusar o termo neoclássico em referência à arquitetura brasileira oitocentista e defende que aquele por ele denominado “classicismo imperial” constituiu uma linguagem de personalidade própria, miscigenada como a cultura e a sociedade do país, negando-se a ser uma mera reprodução brasileira daquele estilo que havia conquistado a Europa (20). O autor ainda acrescenta:

“O classicismo do Segundo Reinado representou um dos melhores momentos de nossa evolução arquitetônica, principalmente por ter constituído a primeira arquitetura efetivamente brasileira, de fato (já que nosso barroco era na verdade uma vertente da arquitetura portuguesa) e de direito — por ter sido o primeiro estilo desenvolvido pelo Brasil independente. Com ele, nossa arquitetura liberou-se da matriz cultural lusitana sem recorrer ao amparo da afiliação a uma outra matriz estrangeira, mas antes, construindo, através da fusão de suas tradições coloniais com influências italianas, francesas e inglesas, selecionadas com sensatez, uma expressão nacional original da linguagem classicista. Com ele, nossa arquitetura civil alcançou a maioridade, através da produção de inúmeros edifícios de qualidade, com funções, escala e complexidade incomuns até então” (21).

Em contraposição à perspectiva de Afonso de Taunay e Morales de Los Rios Filho, o reexame de Alberto Sousa e de outros estudiosos do tema permite ampliar a compreensão acerca da arquitetura do Brasil Imperial, uma vez que passa a considerar a atuação dos engenheiros militares e a produção arquitetônica de províncias menores do Império como integrantes do repertório arquitetônico nacional. Nesse sentido, é o debate sobre essa nacionalidade arquitetônica que enseja a seção que segue.

O neocolonial anti-Beaux-Arts

Como se buscou demonstrar acima, a ideia de uma Missão Francesa criou profundas raízes na historiografia posterior a Taunay. Entretanto, poucos anos após sua publicação, surgem as primeiras críticas contundentes acerca do papel desempenhado pela colônia Lebreton. O artigo “Das artes plásticas no Brasil em Geral e no Rio de Janeiro em particular” foi publicado na RIHGB em 1916 por Ernesto da Cunha de Araújo Viana, neto de Candido José de Araújo Viana, o Marquês de Sapucaí. O autor não era apenas estudioso de artes, mas também professor na Escola Nacional de Belas Artes, e aproveitou o curso que ministrou para defender posições bastante diferentes das de Taunay (22). Ao contrário do colega, Araújo Viana pretendia valorizar as manifestações artísticas do período colonial, uma vez que, para ele, possuíam um estatuto de autenticidade:

“Vimos e repito que, em todo o Brasil, antes do advento da Família Real Portuguesa, muito antes, portanto, da vinda da missão artística francesa e do rei fundar o ensino oficial de Bellas-Artes no Rio de Janeiro, já se cuidava, com esmero, das Artes plásticas, cujos exemplos perduram na Bahia, Minas Gerais, Paraíba do Norte, Pernambuco, em outros estados e nesta cidade; exemplos de arte ornamental, não igualados até hoje, quanto mais excedidos, no talento da invenção, na interpretação decorativa executada, e na solidez das arquiteturas” (23).

Como se sua defesa da arte colonial não fosse por si só eloquente, Araújo Viana encaminhou-se para uma posição de total repúdio à influência beaux-artiana, que chamou de “anarquia do século 19” (24). Em alguns trechos, o autor assume tons bastante incisivos em relação aos supostos missionários da civilização: “A audácia forasteira, tão bem hospedada, atira-se com axiomática incompetência a rabiscar, que nunca tivemos nem temos arte nacional!” (25). E enuncia preocupações que norteariam o pensamento artístico-intelectual a partir de então: “Os brasileiros não poderão se desnacionalizar acompanhando a perversos escrevinhadores, que já não se contentam com a propaganda manhosa na palestra” (26). Aqui, a referência a Taunay parece bastante clara.

As posições divergentes dos dois autores a respeito da produção artística nacional são representativas da polarização que iria caracterizar, por um tempo, as reflexões sobre arte no país (27). Nesse sentido, as ideias de Araújo Viana não vieram isoladas; afinal, fazia apenas dois anos que Ricardo Severo havia proferido sua conferência “A arte tradicional brasileira”, em que defendia os valores da arquitetura produzida em tempos de colônia. Ao mencionar a Missão, no entanto, o engenheiro e arqueólogo português foi mais sutil e preferiu atribuir a “degeneração da arquitetura colonial” ao ecletismo de finais do século 19:

“[A Missão] não constitui aqui uma escola; ensinou porém e propagou a gramática da arte, a técnica perfeita do desenho, e criou uma academia de artistas que foi o laço entre o meio colonial e a orientação da renascença artística do século 19 Nenhum dos discípulos, porém, reproduziu rigorosamente os modelos desse aticismo greco-romano; o meio tradicional emoldurou-os na sua influência absorvente, e foram persistindo os tipos coloniais do barroco até a independência da nação brasileira” (28).

Para Severo, a Independência do Brasil provocou a febre de criar uma nova nacionalidade, diferente da colônia e da Metrópole. Com isso, os artistas nacionais tornaram-se mais receptivos aos influxos das civilizações estrangeiras e, emancipados, passaram a transportar materiais, modelos e estilos com que compuseram obras sem um caráter definido, no esforço por diferenciar-se e construir uma nova pátria que nada tivesse dos tempos do domínio português, que fosse somente brasileira (29).

Foi dentro dessa possibilidade de incorporar culturas diversas que, talvez, o ecletismo tenha manifestado a primeira formulação de uma arquitetura nacional, como afirmou Menotti Del Picchia (30). Severo, entretanto, argumentava que a negação do passado colonial e o caráter dispersivo e desnacionalizante do ecletismo teriam culminado com a desorientação artística do país. Portanto, era necessária a retomada da tradição brasileira que fora interrompida no século 19 e que, para ele, seria a alma da nacionalidade (31).

“Aqui, a arquitetura teve um cunho estético e um caráter próprio enquanto foi tradicional, muito embora tenham sido humildes os seus princípios; deixou, porém, de ter essa particular expressão artística quando foi cópia de estilos ou de modelos estrangeiros. Readquirirá os foros de arte brasileira, quando se reintegrar no seu meio local e tradicional, mesmo com modelos importados e desde que estes provenham de uma civilização ou raça afim da nossa e se amoldem por completo às condições mesológicas nacionais” (32).

Nesse sentido, o discurso de Ricardo Severo filiava-se diretamente à matriz lusitana, uma vez que, para ele, as origens da arte tradicional brasileira remontavam ao período histórico da colonização portuguesa. Durante a primeira década do século 20, suas conferências já anunciavam a visão que se tornaria a pedra de toque do movimento conhecido como neocolonial, que também teve como defensor o médico e mecenas pernambucano José Marianno Filho (33). Paralelamente a Severo, Marianno protagonizou o discurso que acompanhou e justificou o movimento, escreveu inúmeros artigos que primavam por revelar a profundidade de suas investigações acerca da arquitetura e da arte brasileiras, sendo por vezes realçados por uma intransigência impaciente com os que julgava incapazes de compreender ou resistentes a aceitar suas teses (34).

Em concordância com Severo, o médico pernambucano acreditava que as raízes da arquitetura nacional teriam sido estabelecidas no encontro da tradição portuguesa com o ambiente brasileiro. Sua tese, desenvolvida cuidadosamente, ancorava-se em dois argumentos principais: “a inevitabilidade da adaptação ao meio físico e a superação das outras duas culturas — a do índio e a do negro — no processo de plasmar-se através dos séculos” (35). Nesse sentido, em seu arraigado nacionalismo de ascendência estritamente lusitana, Marianno condenava com a habitual veemência o academicismo francês:

“O grande erro de orientação artística da arte brasileira — erro inicial, aliás — provem indubitavelmente da influência marcadamente francesa que a Escola de Belas Artes tem exercido [...]. Fundada por uma missão francesa, não para fomentar, criar ou incentivar a formação de uma corrente artística de características nacionais, mas deliberadamente para nos impor os modelos seculares, os cânones e preconceitos acadêmicos da escola francesa, ela não podia ser o que é: uma sociedade propagadora da arte francesa. Com um século de existência, a Escola Nacional de Belas Artes nada criou, como obra coletiva [...]. Não inventariou, como lhe competia, as manifestações nativas no dominio da arte, anteriores à vinda da missão francesa. Ignorava sistematicamente a tradição nacional da arte [...] há um século, a Escola Nacional de Belas Artes porfia em nos impor em nome do academicismo francês os pomposos estilos de arte dos Luises” (36).

Em oposição ao “fachadismo” eclético e às formalidades beaux-artianas, Marianno alegava não se preocupar com as qualidades plásticas da arquitetura tradicional brasileira. Mais do que as virtudes artísticas, o encanto das linhas ou o esplendor dos detalhes, buscava compreende-la como instrumento social de nacionalidade, através de qualidades orgânicas, de virtudes sadias e fundamentos estruturais, dos quais resultaria a perfeita concordância do sentimento arquitetônico com a alma da nação (37).

Entretanto, na prática, o intelectual literalmente patrocinou a catalogação e a reprodução do vocabulário formal da Colônia, promovendo viagens de arquitetos, entre eles Lúcio Costa, Nereu Sampaio e Nestor de Figueiredo, ao interior de Minas Gerais, com a intenção de documentar o que houvesse de mais significativo na arquitetura e no mobiliário do período colonial. Além disso, promoveu concursos de projetos (como o de sua própria residência, o Solar Monjope) cujo balizamento estético explícito impulsionava a produção arquitetônica dita tradicional, que ganharia visibilidade, principalmente, a partir do Centenário da Independência em 1922 (38).

Nesses termos, o edifício neocolonial, apesar de ser concebido segundo as necessidades de então, devia reproduzir traços da arquitetura colonial civil ou religiosa, os quais lhe conferiam a tão almejada identidade nacional. Os frontões com contracurvas, as volutas, os pináculos, os painéis de azulejos, as cercaduras em relevo, as colunas retorcidas, e os beirais salientes guarnecidos com andorinhas nas extremidades figuravam entre os componentes formais que aludiam à arquitetura fabricada no período colonial, arquitetura essa regiamente revisitada na sede do Museu de Arte da Bahia, construído no segundo decênio do século passado (39).

Museu de Arte da Bahia, avenida 7 de Setembro, Salvador BA
Foto Ivan Cavalcanti Filho, 2019

Detalhe da fachada do Museu de Arte da Bahia, Salvador BA
Foto Ivan Cavalcanti Filho, 2020

Com efeito, Yves Bruand julga como “contradição básica” o fato de Marianno limitar suas preocupações aos aspectos formais da arquitetura. Afinal, o vocabulário arquitetônico e decorativo do período colonial correspondia ao emprego de materiais específicos, a usos específicos e, evidentemente, a uma sociedade específica, portanto, “desejar manter parte desses elementos, limitando-se a fazer algumas variações sobre os mesmos temas, quando seu significado profundo e sua verdadeira razão de ser tinha desaparecido, era o mesmo que cair no anacronismo que ele queria evitar” (40).

Talvez a contradição máxima do ideário nacionalista neocolonial tenha sido a absorção de elementos de outras “colônias” americanas, a exemplo do Mission Style californiano e da arquitetura mexicana, que seriam misturados à produção brasileira pelas décadas de 1930 e 1940 em diante, sob o olhar amargurado de José Marianno (41). Com forte influência estadunidense (42), tal mistura geraria uma linguagem híbrida traduzida principalmente em edificações de uso residencial, onde outros componentes formais seriam incorporados à sua composição final, via de regra coroada por movimentado jogo de cobertas, a exemplo de arcos em suas diferentes versões, falsas aduelas, torreão circular, e do ornamento em ferro sob forma de gradis decorativos (43).

Imóvel n. 350, Parque Solon de Lucena, Centro, João Pessoa PB
Foto Ivan Cavalcanti Filho, 2019

Imóvel n. 216, Parque Solon de Lucena, Centro, João Pessoa PB
Foto Ivan Cavalcanti Filho, 2020

Por fim, o neocolonial seria superado, ironicamente, pela influência francesa de Corbusier através do Movimento Moderno, cujo principal símbolo de triunfo no Brasil foi o edifício do Ministério da Educação, a respeito do qual Marianno afirma: “O grotesco edifício do Ministério da Educação, obra excelsa do Ministro Capanema, espécie de Lourenço de Médicis de Pitangui, representa o coroamento, o remate final da obra diabólica executada pelos inimigos da tradição brasileira” (44).

Dentre os “inimigos” destacava-se a figura de Lúcio Costa, nomeado para a elaboração do projeto. O arquiteto renegou sua filiação ao que chamaria de “equívoco neocolonial”, e aderiu à profissão de fé nas ideias de Le Corbusier, envolvendo-se numa ácida polêmica com o seu antigo mentor José Marianno. Em reação à criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Sphan, na mesma época, o médico pernambucano chega a reivindicar: “Até Lucio Costa, que fez a apostasia solene do credo tradicionalista para abiscoitar a direção da Escola de Belas Artes, volta-se contrito aos arraiais passadistas, tecendo bestialógicos sem sentido à arte que ele ultrajou” (45).

O esforço totalizante e a batalha de ideias que Marianno havia prolongado praticamente sozinho encerrou-se em definitivo com o seu falecimento em 1946, e o triunfo do modernismo resultou no descrédito do ideário neocolonial, que passou a ser visto, na mais simpatizante das interpretações, como uma vertente do desprezado passado eclético.

Considerações finais

Como foi visto, o desenvolvimento ideológico da arquitetura brasileira foi marcado pela descontinuidade histórica, decorrente da negação de um passado mais ou menos distante em detrimento da valorização de determinado período ou cultura. Enquanto no Império a linguagem neoclássica representaria o repúdio à herança colonial, com o advento da República, o neocolonial reagiria contra o academicismo clássico sob o pretexto de recuperar uma tradição autenticamente brasileira. O interessante é que nesse ponto as contribuições de Taunay e Araújo Viana parecem convergir: criaram a imagem de um Brasil oitocentista europeizado.

Considerando as posteriores revisões da narrativa histórica, porém, constata-se que não houve de fato uma interrupção da tradição colonial sob a imposição dos moldes franceses. Ao contrário, o classicismo já vinha sendo introduzido no país mesmo antes da chegada da Corte e ele mesmo adaptou-se à realidade física e ao desenvolvimento técnico local. Afinal, como declarou Sérgio Buarque de Holanda: “a experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida” (46).

A discussão acerca de uma identidade arquitetônica nacional perpassa, portanto, controvérsias herdadas dos conflitos ideológicos das primeiras décadas do século passado, que, agora sim, seriam interrompidos pela ascensão do Movimento Moderno. Daí a proposta de Elvan Silva de retomar O inconcluso debate sobre a brasilidade arquitetônica, partindo da constatação de que as ambiguidades da querela entre José Marianno e Lúcio Costa não foram dissolvidas (47).

Nesse sentido, defende-se a ideia de olhar novamente para os neos do Brasil, compreendendo a inegável importância dessa produção arquitetônica que tantas vezes é considerada como variante do ecletismo, e reconhecer, portanto, seu papel na formação de uma identidade nacional que não se encerra num passado mítico, tampouco nos cânones internacionais de arquitetura.

notas

1
FABRIS, Annateresa. Arquitetura eclética no Brasil: o cenário da modernização. Anais do Museu Paulista, n. 1, Nova Série, 1993, p. 134.

2
SILVEIRA, Marcelo; BITTAR, William. No centro do problema arquitetônico nacional: a modernidade e a arquitetura tradicional brasileira. Rio de Janeiro, Riobooks, 2013, p. 12.

3
ROCHA-PEIXOTO, Gustavo. Reflexos das luzes na Terra do Sol: sobre a teoria da arquitetura no Brasil da Independência 1808–1831. São Paulo, ProEditores, 2000, p. 293.

4
MOURA FILHA, Maria Berthilde. O cenário da vida urbana: a definição de um projeto estético para as cidades brasileiras na virada do século 19 / 20. João Pessoa, Editora Universitária, 2000, p. 48.

5
BARATA, Mario. A arquitetura brasileira dos séculos 19 e 20. In Aspectos da Formação e Evolução do Brasil. Rio de Janeiro, Jornal do Commercio, 1954, p. 4.

6
BOLTSHAUSER, João. História da Arquitetura, vol. 6, Belo Horizonte, UFMG, p. 3.339.

7
WEIMER, Günter. A Missão que não era. In MIZOGUCHI, Ivan; MACHADO, Nara (org.). Palladio e o Neoclassicismo. Porto Alegre, Edipucrs, v. 1, 2006, p. 323-326.

8
LOS RIOS FILHO, Adolfo Morales de. Grandjean de Montigny e a evolução da arte brasileira. Rio de Janeiro, A Noite, 1941, p. 21.

9
WEIMER, Günter. Op. cit., p. 334.

10
Idem, ibidem, p. 335.

11
Dentre os autores que revisitam o tema, pode-se destacar Günter Weimer, A Missão que não era; Letícia Squeff, Revendo a Missão Francesa; Alberto Sousa, Arquitetura Neoclássica Brasileira: um reexame e Lilia Moritz Schwarcz, O Sol do Brasil.

12
SQUEFF, Leticia. Revendo a Missão Francesa: a Missão Artística de 1816, de Afonso D’Escragnolle Taunay. Anais do 1º Encontro de História da Arte do IFCH, Campinas, Unicamp, 2005, p. 564.

13
TAUNAY, Afonso d'Escragnolle. A missão artística de 1816. Revista do Instituto Historico e Geographico Brazileiro. Rio de Janeiro, Typografia do Jornal do Commercio, Tomo 74, Parte 1, 1911, p. 06. A expressão pintamonos era comum no Brasil imperial e faz alusão a um mau pintor, a um pintor ordinário. MICHAELIS. Dicionário brasileiro da língua portuguesa. São Paulo, Melhoramentos, 2015.

14
SQUEFF, Leticia. Op. cit., p. 566.

15
WEIMER, Günter. Op. cit., p. 335.

16
ROCHA-PEIXOTO, Gustavo. Op. cit., p. 62.

17
Sobre o tema, ver RABELLO, Jessica; CAVALCANTI FILHO, Ivan. O neoclassicismo na arquitetura: gravuras históricas na cidade da Parahyba. Anais do 1º Congresso do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Imagem: o borboletar do método, Belo Horizonte, UFMG, 2016, p. 368–383

18
WEIMER, Günter. Op. cit., p. 330–331.

19
BARRETO, Paulo Thedim. Casas de Câmara e Cadeia. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 11, Dphan, 1947, p. 184.

20
SOUSA, Alberto. Arquitetura neoclássica brasileira: um reexame. São Paulo, Pini, 1994, p. 69–70.

21
Idem, Ibidem, p. 109–110.

22
SQUEFF, Leticia. Op. cit., p. 566.

23
ARAÚJO VIANA, Ernesto da Cunha. Das artes plásticas no Brasil em geral e na cidade do Rio de Janeiro em particular. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 78, vol.132, parte 2, 1916, p. 538.

24
Idem, ibidem, p. 513.

25
Idem, ibidem, p. 538.

26
Idem, ibidem, p. 538.

27
SQUEFF, Leticia. Op. cit., p. 568.

28
SEVERO, Ricardo. A arte tradicional no Brasil. Revista do Brasil, ano 2, vol. 4, São Paulo, jan./abr. 1917, p. 413.

29
Idem, ibidem, p. 413.

30
PICCHIA, Menotti del. Da estética. Seremos plagiários? Correio Paulistano, São Paulo, 10 abr. 1920, p. 1.

31
SEVERO, Ricardo. Op. cit., p. 418.

32
Idem, ibidem, p. 419.

33
KESSEL, Carlos. Estilo, discurso, poder: arquitetura neocolonial no Brasil. História Social, n. 6, Campinas, 1999, p. 70.

34
KESSEL, Carlos. Op. cit., p. 71–72.

35
Idem, ibidem, p. 73.

36
MARIANNO FILHO, José. Debates sobre estética e urbanismo. Rio de Janeiro, C. Mendes Júnior, 1943, p. 150.

37
MARIANNO FILHO, José. A arquitetura mesológica. Rio de Janeiro, Pongetti e Cia, 1931, p. 9.

38
KESSEL, Carlos. Op. cit., p. 82–83.

39
Para mais informações sobre a linguagem neocolonial, ver CAVALCANTI FILHO, Ivan; LUCENA, Emanoel Victor Patrício de; QUEIROZ, Camila Renata. A presença do Neocolonial: a versão luso brasileira e a variante hispano-americana. In MOURA FILHA, Maria Berthilde; COTRIM, Márcio; CAVALCANTI FILHO, Ivan (org.). Entre o rio e o mar: arquitetura residencial na cidade de João Pessoa. João Pessoa, Editora da UFPB, 2016, p. 176–199.

40
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 55.

41
KESSEL, Carlos. Op. cit., p. p. 91.

42
Sobre o Mission Style e a influência dos Estados Unidos nessa produção no Brasil, ver ATIQUE, Fernando. Arquitetando a “boa vizinhança”: arquitetura, cidade e cultura nas relações Brasil-Estados Unidos 1876–1945. São Paulo, Pontes Editores, 2010, p. 203–287.

43
CAVALCANTI FILHO, Ivan; LUCENA, Emanoel Victor Patrício de; QUEIROZ, Camila Renata. Op. cit., p. 187

44
MARIANNO FILHO, José. Debates sobre estética e urbanismo (op. cit.), p. 156.

45
MARIANNO FILHO, José. À margem do problema arquitetônico nacional. Rio de Janeiro, edição do autor, 1943, p. 120.

46
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1984, p. 11.

47
SILVA, Elvan. O inconcluso debate sobre a brasilidade arquitetônica. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 021.01, Vitruvius, fev. 2002 <https://bit.ly/3cyE2U5>.

sobre os autores

Jessica Rabello é arquiteta e urbanista (2018) e mestranda pela Universidade Federal da Paraíba. Atua na linha de pesquisa “Produção e apropriação do edifício e da cidade” e integra o Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória.

Ivan Cavalcanti Filho é professor associado do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal da Paraíba e PhD pela Oxford Brookes University (2009). Publicou Entre o rio e o mar: arquitetura residencial na cidade de João Pessoa (Editora UFPB, 2016), “Segregação ou Integração? A galilé nos conventos franciscanos no Nordeste do Brasil colonial” e “São Benedito e sua devoção nos conventos franciscanos do Nordeste colonial”, no periódico Arquitextos.

comments

267.01 arquitetura neocolonial brasileira
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

267

267.00 história e teoria da arquitetura

Crítica à modernidade construtiva

Arquitetura Nova e a modernização brasileira

Artur Boligian Neto

267.02 teoria da arquitetura

Arquitetura enquanto sistema evolutivo

Uma discussão sobre a lei constructal e a relação com a produção arquitetônica

Alexandre Bessa Martins Alves, Aloísio Leoni Schmid and Marcelo Risso Errera

267.03 urbanismo

Pensar por paradigmas

O planejamento urbano e o paradigma da direção

Leandro Ludwig, Marcos Antonio Mattedi and Denis Augusto Vicentainer

267.04 patrimônio

Ponte dos Contos

Paisagem de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil

Raíssa de Keller e Costa and Myriam Bahia Lopes

267.05 História da Arquitetura

Diálogos entre Alberti e Francesco del Borgo no cortile do Palazzo Venezia

Cláudio Calovi Pereira and Laura Costa

267.06 espacialidade urbana

Sonoridades de feira

Uma análise da espacialidade das feiras populares a partir da escuta

Juliana Michaello Macêdo Dias and Walcler de Lima Mendes Junior

267.07 políticas habitacionais

Política urbana e Athis

Análise da inserção da assistência técnica em habitação de interesse social como instrumento urbanístico em planos diretores municipais no Brasil

Maressa Fonseca e Souza

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided