“Deus me livre m’ermão! Sou o homem mais feliz do mundo. E o meu sossego? Não quero abandonar ele, não” (1). Essa teria sido a primeira resposta de Mário de Andrade a Paulo Duarte, chefe de gabinete do governo do município de São Paulo, ao receber convite para com ele projetar e implantar um Departamento de Cultura, no início da gestão do prefeito Fabio Prado (1934-1938).
A despeito dessa primeira reação, o convite foi aceito por Mário, e as ideias que vinham sendo desenhadas desde os anos 1920 por um grupo de intelectuais amigos do qual faziam parte dentre outros, além dos dois, Júlio Mesquita Filho, Fernando de Azevedo, Sergio Milliet e André Dreifuss, concretizaram-se com a criação do departamento, matriz seminal das políticas culturais da cidade de São Paulo.
Nas palavras de Antonio Candido, o Departamento de Cultura foi feito para pesquisar, divulgar e ampliar ao máximo a fruição dos bens culturais — “desde o requinte dos quartetos de corda até o incentivo às manifestações folclóricas, desde a pesquisa sociológica e etnográfica até a recreação infantil pedagogicamente orientada” (2).
Esse departamento implantou bibliotecas e a discoteca pública, os parques infantis, e enviou ao Nordeste missão de pesquisas folclóricas com o propósito de identificar e registrar manifestações culturais variadas. Esses equipamentos e ações desenvolveram-se como modelos para outras regiões do país e como semente das estruturas oficiais que se organizaram a partir do final dos anos 1930 em São Paulo e no governo central.
O Departamento de Cultura está também ligado às origens do Complexo Esportivo do Pacaembu. Paulo Duarte narra episódios ocorridos no primeiro mês da gestão Fabio Prado, que havia posto em andamento processos administrativos parados que, há anos sem seguimento, jaziam esquecidos nas prateleiras da Prefeitura. Dentre eles encontrou empoeirada pasta de papéis, caída atrás de um armário.
“Aberta (a pasta), descobri algumas plantas e uma velhíssima proposta da City oferecendo o terreno no Pacaembu para a construção de um Estádio! Junto, algumas folhas anotadas nas quais zelosos funcionários esclareciam a esperteza daquela companhia imobiliária querendo valorizar uns buracos que possuía às custas dos cofres públicos; havia ainda cálculos sobre quanto a companhia iria ganhar e patati patatá. Só não havia nenhuma referência a quanto a cidade iria lucrar” (3).
Eis aí o relato de uma primeira demonstração dos embates que cercam essa área do Pacaembu desde sua origem. O que ainda hoje persiste é o empenho dos que buscam defender o que seriam os mais legítimos interesses públicos frente às estratégias dos empreendedores privados de valorização de suas posses. Em princípio as expectativas de lucro de empresários serão reconhecidas como válidas, se houver contrapartida que efetivamente seja um ganho para a comunidade. E garantir o equilíbrio dessa balança tem se provado cada vez mais difícil de assegurar.
Nesse caso das terras do Pacaembu oferecidas pela Cia. City em meados dos anos 1920, uma área de 50 mil metros quadrados, Paulo Duarte identificou o potencial para o atendimento em grande escala a um programa de acesso à educação pública pelo esporte. De quebra, a possibilidade para criação de um estádio para o esporte cujo apelo popular se consolidava exponencialmente na década de 1930. E assim, contrariando juízos técnicos iniciais, convenceu o prefeito Fabio Prado de que a troca parecia justa.
O fato é que por ação de Paulo Duarte a Prefeitura de São Paulo acabou recebendo a área de mais de 75 mil metros quadrados, ampliada com mais terras em relação à oferta inicial, também por sua iniciativa. E em menos de um ano iniciava-se a construção de detalhado projeto de complexo esportivo, idealizado e implantado pela Construtora Severo Villares (4).
É ainda Paulo Duarte que relata o objetivo maior da administração de criar espaços para as práticas esportivas e exercícios ao ar livre, criando campos de atletismo e amplo programa de parques infantis. Com relação ao Pacaembu, então chamado Estádio Municipal, diz:
“Vale a pena contar a história do Estádio Municipal do qual tanto se falou e se fala ainda, mas tão poucos o compreenderam. Hoje toda gente pensa que foi ele construído para ser o Estádio de São Paulo. Puro engano, o Estádio Municipal foi apenas um complemento dos campos de atletismo, ápice do programa de educação social dos menores paulistas, aqueles que não podiam frequentar os clubes de pagamento, aqueles para os quais a administração pública só olhava quando os metia na cadeia...
[...]
A lei determinou que o Estádio do Departamento de Cultura se destinara à realização de competições, campeonatos, demonstrações ou torneios esportivos ou atléticos nacionais e ainda de grandes solenidades cívicas” (5).
Mas a construção destinava-se, do ponto de vista da administração, inegavelmente, a atender ao anseio por espaço adequado para a prática de futebol com dimensões condizentes ao crescente público interessado no espetáculo.
“A paixão futebolística crescia muito mais depressa do que as providências administrativas dos clubes ou do governo podiam acomodar ou sequer acompanhar, estabelecendo a infraestrutura de recursos e serviços urbanos capaz de garantir a sua plena vazão e desenvolvimento” (6).
Paulo Duarte, exageradamente, lamentava que o que haviam planejado como função primordial do complexo, atendimento ao programa educacional, tivesse sido limitado pelas sucessivas gestões e tivesse servido apenas “... o trivial do seu destino, como campo de futebol, lutas de box, e às vezes, comícios políticos” (7). Não é o que rememoram gerações de paulistanos que ali aprenderam a nadar, frequentaram competições esportivas variadas e participaram de demonstrações escolares e cívicas. E, sim, mas não exclusivamente, público que consagrou o Pacaembu como o templo máximo de memoráveis jogos, espaço que abrigou sua paixão pelo futebol.
Mesmo assim, com o tempo, acumulavam-se queixas dos próprios administradores do local, com relação à falta de atenção e orçamento adequados para a manutenção e modernização dos equipamentos. Algo que ocorria em maior ou menor grau. dependendo dos interesses do executivo e à mercê da pouca transparência sobre os recursos efetivamente alocados. Espaço querido da população, o Pacaembu foi intensamente utilizado por décadas, até ser fechado recentemente, após concessão por trinta anos a grupo privado.
O progressivo abandono pelo poder público, em descompasso com o afeto a ele dedicado, foi fundamental para viabilizar afinal o que vinha se almejando há anos em setores da prefeitura: livrar-se do que era considerado um fardo, o “ônus” de cuidar do Pacaembu.
O interesse em privatizar e o tombamento
O político Jânio Quadros à frente da prefeitura de São Paulo entre 1986 e 1988 foi o primeiro a falar sobre a concessão do estádio municipal de São Paulo à iniciativa privada. O neoliberalismo da britânica Margaret Thatcher inspirava naquele momento administradores a, como ela, transferir ou conceder para a iniciativa privada equipamentos e funções até então consagradas como públicos. Sem muitas explicações, a desoneração de despesas, cujas planilhas jamais eram apresentadas ao escrutínio da comunidade, passaram a partir daí a ser o recorrente argumento.
Nesse período, em São Paulo, as divisões administrativas municipais de apoio e gestão da cultura muito tinham se ampliado em relação ao departamento criado na década de 1930 por Paulo Duarte e Mário de Andrade. Em 1975 foi implantada uma Secretaria Municipal de Cultura, da qual fazia parte um Departamento de Patrimônio Histórico, DPH, com funções de valorizar e estudar o patrimônio cultural da cidade. Um conselho com atribuições legais e poder de preservação, passou a existir apenas dez anos depois, e foi efetivado somente em 1988 (8).
Os conflitos inerentes às iniciativas de preservação do patrimônio cultural já se fizeram sentir fortemente desde a origem do departamento e intensificaram-se sob a gestão do Prefeito Jânio Quadros. Sem mediações essa administração erradicava aquilo que impactava negativamente visões urbanas higienistas: erradicou uma favela localizada entre a ponte Cidade Jardim e a Marginal Pinheiros, e todo o casario das ruas Jandaia e Assembleia no centro da cidade, conjunto de casas das primeiras décadas do século 20 que, embora íntegras, estavam encortiçadas.
Coube ao Condephaat, conselho estadual de preservação do patrimônio cultural, acolher o pedido de tombamento encaminhado por zelosos técnicos do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura, empenhados em salvar de um futuro incerto bens como o Mercado Municipal da rua Cantareira e o Complexo do Pacaembu.
Necessário dizer que nos anos 1980, quando foram solicitados os tombamentos ao Condephaat, o processo de reconhecimento de prédios de fatura eclética, apenas se iniciava. A preservação de edifícios modernos então era também incipiente e, a arquitetura dos anos 1930 e 1940 pouco havia sido estudada no âmbito acadêmico, menos ainda sido considerada passível de preservação oficial (9).
O desafio, portanto, foi o de, além de reconhecer o valor cultural da construção, inegavelmente vinculado às práticas ali desenvolvidas e ao apreço expresso pela comunidade, o de estudar criticamente sua arquitetura e a história em torno de sua implantação e urbanismo. Investigação que foi feita ampliando a pesquisa realizada pelo Departamento de Patrimônio Histórico municipal junto com a solicitação de tombamento (10).
Em 1988 o Complexo Esportivo do Pacaembu foi tombado pelo Condephaat (11) e, posteriormente, quando foi legalmente possível, também pelo conselho municipal. O tombamento estadual destacou como valores, dentre outros aspectos, os objetivos que nortearam o projeto do complexo como patrimônio destinado ao público e como parte integrante, complementar e indispensável do projeto cultural do departamento; a generosidade de seu programa ambicioso; a qualidade do projeto arquitetônico, minuciosamente desenvolvido e detalhado pela Construtora Severo-Villares, bem como os acertos de sua execução. Ressaltou também a sabedoria das soluções técnicas e construtivas que passavam pelo aproveitamento das condições naturais do sítio, como orientação solar e características topográficas, além de sua marcante presença na paisagem.
O projeto e as instalações
O terreno era sim “uns buracos” como haviam registrado os analistas do município a respeito da oferta inicial da Cia. City. Atoleiros seria a tradução do tupi-guarani para a palavra Pacaembu. O grotão do ribeirão Pacaembu era cercado por terras descampadas que subiam em direção à urbanização. Os bairros de Perdizes em direção a oeste, e de Higienópolis do lado mais próximo ao centro da cidade já vinham sendo progressivamente ocupados desde as décadas anteriores do século 20.
O parcelamento do Pacaembu fora oficializado em meados da década de 1920, depois de alterações de legislação urbanística municipal. A legislação, em processo de cujas deliberações e juízos técnicos também tomou parte a Cia. City, passou a permitir a acomodação de parte das ruas às curvas da topografia, rompendo com padrões que, desde os anos 1880 vinham parcelando as antigas chácaras paulistanas, como o do tabuleiro de xadrez que já se impunha nos novos loteamentos da cidade.
O desenho do loteamento organizou-se, com larga avenida sobre o leito do curso d´água canalizado e, depois de muitas tratativas com relação aos dispositivos urbanísticos, dividindo as terras em lotes, distribuídos em vias que buscavam acomodar-se, sem muitas ladeiras nas curvas naturais do terreno. Vale notar que os novos lotes em torno do complexo esportivo só tiveram significativo movimento comercial, após a inauguração do Estádio em 1940.
O setor mais ingrato foi o doado para a construção das instalações esportivas. O projeto, contudo, acomodou as arquibancadas do estádio sobre os taludes naturais e propôs edificar as demais instalações segundo orientações favoráveis às práticas esportivas. O complexo esportivo, implantado no local de mais difícil urbanização, adaptou-se com sabedoria às características do local.
“O projeto em execução teve como equação principal do seu problema técnico e aproveitamento, dentro dos limites econômicos que lhe foram traçados, de todas estas circunstâncias naturais da morfologia do terreno, situação e orientação, adaptando a esse quadro e à natureza do próprio edifício as condições técnicas e estética da sua arquitetura” (12).
A fachada monumental do estádio, precedida por ampla praça aberta, capaz de acomodar multidões, intercepta a paisagem ao fundo do vale, ali se acomodando harmoniosamente. A ala de ingresso ao prédio, de planta semicircular, acomodou administração e alojamentos, e ainda as estruturas das arquibancadas norte, que não se apoiaram diretamente sobre o terreno, como as laterais ao campo.
O restante do programa implantado foi ambicioso com quadras de tênis, piscina e ginásio poliesportivo com dimensões oficiais. Além disso, expressivo de seu vínculo com os objetivos culturais, com uma concha acústica dedicada a espetáculos. Uma pista de atletismo rodeava o campo de futebol, espaço organizador de todo o conjunto que era ainda regido por eixo de simetria que alinhava a maior parte das construções no mesmo sentido do vale.
Plasticamente a edificação vinculou-se à estilização geométrica e monumental da linguagem clássica em voga nos anos 1930 no panorama internacional. Eventualmente chamada art déco essa estética, é sóbria e caracterizada por geometrismos.
Eventualmente empregava elementos e formas dos grandes transatlânticos, com janelas circulares, como escotilhas e guarda corpos de tubos de metal como os dos tombadilhos. Essa estética muito presente em São Paulo dos anos 1930 e 1940 já foi chamada estilo barco (13).
O apelo do clássico agigantado em suas proporções e reduzido a linhas sóbrias encontrou eco em diferentes nações, como a França e os EUA, mas tem sido mais frequentemente evocado associado à Alemanha de Hitler e à Itália de Mussolini. Daí a ser referido como arquitetura fascista, o que retardou apreciações analíticas de suas características.
Art déco, arquitetura barco, totalitária ou fascista são todas classificações insuficientes ou prejudiciais a apreciações críticas. O mais pertinente talvez seja reconhecer o Pacaembu como participante da linhagem que na década de 1930, internacionalmente, se desvencilhava das roupagens ornamentais do ecletismo que não chegaram a ser empregadas em alguns dos primeiros estádios do século 20.
Em busca de feição mais contemporânea, sem, porém, filiar-se às vanguardas internacionais. Essa tendência ancorou-se na escala monumental; agigantava as dimensões e geometrizava as formas sem, contudo, abandonar as lições de proporcionalidade da tradição acadêmica. E que, também expressão de seu tempo, utilizava técnicas e sabedoria construtivas contemporâneas.
Manifestações presentes na Alemanha e Itália totalitárias, mas na França e nos EUA, e em todas as novas obras da gestão do Engenheiro Francisco Prestes Maia em São Paulo realizadas entre 1938 e 1945, tais como a Ponte Grande, o Viaduto 9 de Julho, a adaptação da fachada da Biblioteca Municipal e o Estádio Municipal (14).
Concebido atendendo a todas as perspectivas educativas e culturais na administração Fabio Prado, o complexo foi afinal inaugurado em 1940 pelo prefeito Prestes Maia, e pelo presidente Getúlio Vargas, sob outras circunstâncias políticas. O complexo, além de abrigar as atividades de formação e amplo acesso ao esporte para a população, foi parte integrante do processo de apego ao futebol na sociedade paulistana.
Transformações físicas no complexo e em seu entorno
A primeira transformação na estrutura física do conjunto de instalações deveu-se a essa paixão pelo futebol. Quando afinal o país regozijou-se como tricampeão mundial na Copa do Mundo em 1970 novos estádios foram construídos em todo o país.
Em São Paulo o então prefeito Paulo Maluf buscou de todas as maneiras tirar partido político da euforia. Além de premiar os jogadores envolvidos no feito, decidiu ampliar a capacidade do estádio do Pacaembu.
Com a mesma desfaçatez de cunho pragmático com que desequilibrou os bairros porque passou com seu viaduto Minhocão, construiu nova arquibancada no mesmo local em que ficava a chamada Concha Acústica, parte do projeto original que fez demolir. O Tobogã, apelido também jocoso referido a um tipo de brinquedo, escorregador gigante presente nos parques de diversões dos anos 1970, foi imediatamente alvo de questionamento. Junto do Minhocão acumulou polêmicas e debates sobre a pertinência de sua permanência, e sobre o prejuízo que causava. Recentemente foi demolido no curso das obras em andamento para adaptação aos novos programas que aos poucos vão privatizando o uso do espaço.
Décadas depois, o mesmo Paulo Maluf, mais uma vez à frente da prefeitura em 1992 realizou grande obra, interferindo na antecâmara da fachada monumental do estádio, a denominada praça Charles Miller.
A toponímia indígena já alertava para o potencial de alagamentos que a área tinha: Pacaembu, terras alagadas. Aspecto que só se intensificou com o violento processo de impermeabilização do solo urbano que a cidade de São Paulo sofreu, inclusive nas imediações do estádio. Nas temporadas de chuvas as inundações eram constantes, já que as galerias sob a avenida não tinham capacidade suficiente para absorver as águas que rapidamente desciam as ladeiras asfaltadas do entorno.
Foi então construído sob parte da praça um grande tanque subterrâneo capaz de reter as águas, ralentando a velocidade com que chegavam às galerias. Sua capacidade de armazenamento, 74 mil metros cúbicos de água de chuva, relembra os 75 mil metros quadrados do terreno original do complexo. Chamado, Piscinão do Pacaembu, o tanque tornou-se solução modelo para outras áreas alagadiças na cidade e no país.
Essa obra foi realizada posteriormente aos tombamentos estadual e municipal, e feita sob escrutínio, colaboração e com supervisão dos conselhos de preservação, após intempestivas escavações na praça, que destruíram o paisagismo original. Deste modo, o impacto causado foi amenizado e em parte corrigido com operações que lograram proteger a espacialidade da praça e, ao menos como referência, referiu-se à imagem e os volumes do paisagismo original.
As interferências feitas para a instalação do Museu do Futebol, inaugurado em 2008, também são pouco perceptíveis no exterior do prédio do Estádio. Com projeto e obra controlados minuciosamente pelos órgãos de preservação, o museu ocupa 6.900 m² localizados sob a arquibancada norte, a que corresponde ao reverso da fachada monumental voltada para a praça Charles Miller.
Nesse processo foram autorizadas demolições de paredes internas e a união de segmentos antes estanques por meio de passarela, sem, contudo, ferir a percepção externa dos volumes, fachada principal e arquibancadas (15).
Concessão e destruição
Não é exatamente o que se encontra em curso em 2022. Afinal o intento iniciado por Jânio Quadros nos anos 1980 não encontrou mais barreiras ou resistências suficientes para impedir que a administração do espaço deixasse de ser pública. A concessão do espaço à iniciativa privada finalmente ocorreu em 2017 durante a administração de João Doria frente è prefeitura. Eleito, com a autodescrição como um outsider da política, o empresário lançou um agressivo pacote de privatizações e concessões de equipamentos públicos, como o Autódromo de Interlagos, o Centro de Convenções Anhembi, os mercados municipais e os parques municipais. Logrou conceder dentre estes o Parque do Ibirapuera e o Complexo do Pacaembu, este por trinta e cinco anos.
As expectativas de ganho da empresa concessionária do Pacaembu veem se desenhando sem obstáculos. Tem sido aceitas e concretizadas alterações dos espaços, e viabilizadas as interferências provenientes de alegadas necessidades de destruir estruturas edificadas para melhor acomodar os novos programas.
Os projetos que ora embasam as transformações já significaram a destruição material das arquibancadas originais e da solução técnica, sempre valorizada, de apoiar as estruturas sobre os taludes naturais. Também ocorre o encurtamento definitivo do campo de futebol, da pista de atletismo e de parte das arquibancadas laterais quando forem reconstruídas.
Novo edifício separa a área do estádio do restante do complexo e prevê usos variados, além de intensificação da frequência ao complexo. O novo volume, erigido no local dos anteriormente demolidos, tobogã e concha acústica, prevê altura que não deve exceder a das arquibancadas originais e separa o campo do restante dos equipamentos esportivos. Cabe perguntar, continuarão esses espaços de livre acesso ao público em geral, como na origem do Pacaembu?
O Complexo Esportivo do Pacaembu que, cumprindo os desígnios propostos por Paulo Duarte, era acessível a qualquer cidadão paulistano, tem futuro incerto. Quanto ao futebol...
Cadeiras
“Íamos sempre na geral. Sentávamos no concreto sem encosto e tomávamos de frente o sol da tarde, olhando, ofuscados, os privilegiados das numeradas, sentados à sombra, nas cadeiras de madeira pintadas de verde” (16).
As acomodações do estádio eram, nas primeiras décadas de funcionamento, simples e diferenciadas de acordo com a hierarquia dos setores, como se vê no relato acima. Feito por quem assistiu entusiasmado às obras e frequentou o estádio desde a origem. A falta de assentos na geral era responsável por alta capacidade que aos poucos diminuiu, mercê de legislações que, visando a segurança, limitaram o número de lugares, inclusive mediante a exigência de assentos individuais e demarcados.
Esses assentos, na origem feitos de madeira pintada, eram, por ocasião da concessão do Estádio do Pacaembu à iniciativa privada em 2020, conchas plásticas afixadas à estrutura de concreto. Peças industrializadas, feitas em série, e reproduzidas a partir da difusão de modelos de cadeiras criadas por Charles e Ray Eames. Casal de designers que realizaram pesquisas e desenvolveram, em meados do século 20, uma série de cadeiras revolucionárias que moldavam assentos em concha, pesquisando diferentes possibilidades de emprego de matérias primas variadas.
Hermann Miller foi o industrial responsável pelo processo de concretização dos protótipos que objetivavam tornar acessível, por meio da produção em massa, mobiliário contemporâneo com boa qualidade. Utopia perseguida pelas vanguardas modernas.
De todas as maneiras
“Criada a partir das primeiras investigações de Charles e Eero Saarinen com moldagem de madeira compensada na Cranbrook Academy em 1939, e continuada com Ray no Eames Studio em Venice, Califórnia. A cadeira moldada é um exemplo do processo interativo dos Eames e seu desejo de fazer “o melhor para a maioria por menos”. Com cada nova forma, acabamento e configuração, o casal Eames continuou a testar os limites do que o molde da cadeira poderia ser: depois de experimentar com compensado de forma única e metal estampado, eles usaram fibra de vidro e experimentaram arame dobrado; quando a produção de fibra de vidro se mostrou prejudicial para o meio ambiente, eles decidiram transferir a produção para um plástico mais seguro” (17).
A vulgarização do desenho a partir dos primeiros modelos Eames fez com que as cadeiras em concha fossem largamente industrializadas com adaptações por toda parte, sem que a atribuição da autoria original tenha permanecido como referência.
Paradoxalmente, ocorrem hoje em dia, tanto uma indústria de cópias mais indiferenciada, quanto a venda de reproduções mais fiéis e com a atribuição recuperada, mas com preços relativamente modestos, e ainda, cadeiras com fidelidade aos modelos rigorosamente controlada. Nesse último caso, vendidas com preços elevados.
Os assentos retirados do Estádio do Pacaembu em 2022 são conchas plásticas, com desenhos de cantos retos e fazem parte de leva indiscriminada de produtos industrializados de ampla aceitação a partir das ideias das conchas Eames originais. Contrafacções que vêm se dando ao longo do tempo, e sobre as quais não ocorre a ninguém relembrar a origem ou autoria do modelo. Do mesmo modo que poucos sabem que a caneta Bic e as centenas de suas congêneres desenvolveram-se a partir da compra de patente de um protótipo criado pelo húngaro László Bíró (1899-1985), no mesmo período em que Charles Eames começava suas pesquisas para disseminação de assentos com bom desenho e valor baixo, por volta dos anos 1950.
Assim, não se sabe quais e quantas indústrias as produziam no Brasil na década de 1990 quando, com vistas a adequar o estádio a novas exigências legais, a série de cadeiras foi adquirida para o Pacaembu. Dado talvez irrelevante quando, no processo de rentabilização da área concedida, esses assentos vêm sendo vendidos recentemente com um outro tipo de atribuição de valor. “Os assentos, que pertenciam à arquibancada laranja do estádio, estão disponíveis para compra na loja Tok & Stok por preços que variam de R$ 1.499 a R$ 1.799” (18).
Tirando partido de um processo de fetichização de objetos e do inegável apreço da população pelo espaço do estádio do Pacaembu antes frequentado, por causa das partidas de futebol que lá ocorreram, a concessionária pôs à venda os assentos industriais ressecados pelo sol, impregnados de marcas do tempo. As cadeiras retiradas das arquibancadas demolidas foram oferecidas para venda lado a lado, no mesmo site, com cadeiras Eames novas que custam dez vezes menos.
O que então está sendo vendido?
Vende-se um suporte para a lembrança do que se perdeu por sua própria ação de transformação do espaço. E, os vendedores prosseguem, ampliando as justificativas para a operação: “Entendemos ser correto e adequado o reaproveitamento de parte das cadeiras, evitando seu descarte e dando a elas um novo propósito” (19).
Se a ideia era a de atender agendas de respeito ao meio ambiente e realizar ações em prol da sustentabilidade, por que parte das cadeiras? E ainda, por que não dar destino ecológico às grandes quantidades de concreto oriundas das estruturas do tobogã e das arquibancadas demolidas? Falta de imaginação talvez, se lembrarmos que os fragmentos do muro de Berlim em 1989 permaneceram comercializadas como souvenir nas ruas do entorno das paredes demolidas por muito tempo. Que destino tiveram todo o concreto do Pacaembu e as conchas de plástico por demais estragadas, consideradas inadequadas para venda?
A venda das cadeiras é um ato extremado, apartado dos princípios generosos que nortearam a criação do Complexo do Pacaembu, quando dar oportunidade de aprendizado, lazer e fruição de bons espaços para a população em geral era considerado atribuição inerente ao poder público.
Por fim, usar o lema “o meu, o seu, o nosso Pacaembu”, o bordão com que o público era recebido pela locução nos alto falantes do estádio em dias de jogos soa como escárnio. Expropriação imaterial maior do que comercializar partes integrantes de um bem público cuja concretude não foi afinal cedida. O direito de usar os espaços não é sinônimo de apropriar-se de matéria tornada rejeito por sua própria ação. Mas, menos ainda, usar o patrimônio imaterial representado pelas palavras proferidas pelas torcidas e seus animadores.
E destinar a verba para alguma benemerência não parece aplacar a crueza do ato. Talvez como na venda de indulgências, acalme a consciência dos que vem afastando o bem público de seu destino consagrado.
E afirma ainda a concessionária: Por fim, reiteramos que não há qualquer restrição legal ou contratual à iniciativa. Alegra” (20).
De fato, as tentativas de efetiva reflexão ponderada sobre os destinos do equipamento público foram afastadas. Diretrizes estabelecidas pelo tombamento e pelo edital de concessão foram abrandadas com o beneplácito do poder público. E, embora tenha havido esforços para tentar restringir as alterações maiores e garantir a continuidade de acesso à população, as intervenções prosseguem aceleradamente sem nenhum empecilho legal. Validadas pelas esferas governamentais que poderiam assegurar seu caráter democrático e a permanência de aspectos essenciais de sua arquitetura.
“Nada substitui o contato com a massa, a festa da entrada dos times em campo, as infindáveis discussões sobre quem marcou, sobre se houve um impedimento, sobre quem deve ser substituído. Se nunca mais voltar ao Pacaembu, espero um dia ter inspiração suficiente para compor uma Valsinha cujo título está pronto, Saudades da Geral (21).
notas
1
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo, Secretaria de Ciência, Cultura e Tecnologia, 1977, p. 52.
2
Idem, ibidem, p. XVI-XVII.
3
Idem, ibidem, p. 88. City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited foi a empresa loteadora que introduziu o modelo urbanístico Garden city no Brasil, pioneiramente em São Paulo, e responsável pelo desenho e comercialização das terras do Pacaembu onde se insere o Estádio. Cf. WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América. São Paulo, Edusp, 2015.
4
WOLFF, Silvia Ferreira Santos. São Paulo e seu estádio. In WENZEL, Marianne; MUNHOZ, Mauro. Museu do Futebol: arquitetura e requalificação no Estádio do Pacaembu. São Paulo, Romano Guerra, 2012, p. 34-94.
5
DUARTE, Paulo. Op. cit., p. 88.
6
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo, Cia. das Letras, 1992, p.22.
7
Idem, ibidem, p. 89.
8
Revista do Arquivo Municipal, n. 207. 45 anos do DPH — Departamento do Patrimônio Histórico da Cidade de São Paulo 1975-2020. São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura / Prefeitura do Município de São Paulo, 2021 <https://bit.ly/3DoQAIN>.
9
WOLFF, Silvia Ferreira Santos; ZAGATO, José Antonio Chinelato. A preservação do patrimônio moderno no Estado de São Paulo pelo Condephaat. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 194.07, Vitruvius, jul. 2016 <https://bit.ly/3BGj7Z5>.
10
São Paulo (PMSP) DPH. Divisão de Preservação. Seção Técnica de Crítica e Tombamento. Arq. Eduardo de Oliveira Elias. “Pacaembu” (mimeo).
11
São Paulo (ESTADO) Processo: 26288/88. Relativo ao processo de tombamento do Estádio do Pacaembu e Praça Charles Miller.
12
Memorial Descritivo e Especificação das Obras de Construção do Estádio Municipal do Pacaembu, PMSP P 42924/36, fls. 74-90.
13
ARGENTA, Juan Pedro. Navegantes de la Costa, Estilo Barco em Uruguay 1935-1945. Conferência realizada no 7º SAL, Seminário de Arquitectura Latino Americana. São Carlos, IAU USP, ago. 1996 (mimeo).
14
WOLFF, Silvia Ferreira Santos. São Paulo e seu estádio (op. cit.).
15
WENZEL, Marianne; MUNHOZ, Mauro. Op. cit.
16
FAUSTO, Boris. Negócios e ossos. São Paulo, Cia das Letras, 1997, p. 170.
17
Website Herman Miller. Cadeira Eames Molded Fiberglass <https://bit.ly/3dcyAXy>.
18
BERGAMO, Mônica. Ministério Público é acionado contra a venda de cadeiras do Pacaembu. Folha de S.Paulo, São Paulo, 28 jul. 2022 <https://bit.ly/3S8YWZi>.
19
Idem, ibidem.
20
Idem, ibidem.
21
FAUSTO, Boris. Op. cit., p. 173.
sobre a autora
Silvia Ferreira Santos Wolff, docente e pesquisadora FAU Mackenzie, arquiteta aposentada UPPH/Condephaat, Governo do Estado de São Paulo.