Em tempos de eleições municipais, temas de grande importância, por vezes esquecidos no dia-a-dia, emergem como debate sobre o futuro das cidades brasileiras. No Rio de Janeiro, quase como pautas obrigatórias nas discussões sobre a região metropolitana da qual faz parte, ressurgem, periodicamente, debates aquecidos por apelo popular, promessas e expectativas. Nas eleições de 2020 não foi diferente e esse artigo destaca um tópico trazido à baila por veículos de imprensa e confrontado a candidatos e candidatas: propostas para a avenida Brasil.
Um dos trechos urbanos da rodovia BR-101, com mais de 58 km de comprimento, a via corta toda a extensão longitudinal da cidade, ao longo de áreas que margeiam a Baía de Guanabara, a leste, e se aproximam dos municípios da Baixada Fluminense (1), a norte e noroeste. Vetor crucial para o processo de metropolização da região, é, ainda, locus da experiência cotidiana de milhares de pessoas. Marcada pela sobreposição de ampliações e prolongamentos da infraestrutura urbana, pela contraposição entre ocupações de escalas e tipologias variadas, além da mescla entre fluxos intra e interurbanos, a avenida Brasil faz parte do que, diante de uma representação hegemônica, se pode compreender como o “lado B do Rio”, cuja área supera, em muito, a pequena porção territorial identificada a belas paisagens e incrustada entre o mar e maciços montanhosos.
No Brasil, a construção deste tipo de infraestrutura e o uso do automóvel como meio de transporte prioritário se ligam ao que Flávio Villaça define como principal “força determinante da estruturação do espaço intra-urbano” (2). Dados os altos preços do solo em regiões centrais e a baixa qualidade dos sistemas de transporte público, eixos viários, ainda que minimamente estruturados, costumam atrair intensa ocupação, somada a grandes volumes de tráfego.
Assim, rodovias implementadas inicialmente em áreas periféricas, são progressivamente incorporadas pelo crescimento metropolitano, absorvendo, em primeiro lugar, um excedente populacional que não pode arcar com localizações centrais e, em segundo, sistemas de transporte que surgem como “subproduto do sistema interurbano” (3).
A falta de integração, do ponto de vista do planejamento e do projeto, entre infraestrutura e território, resulta em cenários frequentemente identificados ao caos, à desordem e ao erro. Frente a um crescimento desordenado, baseado em fluxos e localizações logísticos e na especulação imobiliária, estes eixos viários condicionam a formação urbana, seja ao proporcionar as bases para sua expansão ou ao depreciá-la, por meio de má qualidade ambiental ou falta de diálogo com suas adjacências.
Lógicas autônomas e funcionalistas de ocupação e mobilidade motivam a fragmentação do espaço, a justaposição de escalas discrepantes, o conflito entre velocidades e a sobreposição de usos. Diante de um cenário polimórfico e heterogêneo, das carências de acessibilidade e da dependência em relação a áreas centrais, coloca-se uma necessidade premente de melhor compreensão e definição das características físico-espaciais dos territórios urbanizados a partir dessas avenidas/rodovias (4), a partir de um repertório conceitual e projetual mais aderente à realidade.
A avenida Brasil, diante dos problemas urbanísticos que suscita, torna-se objeto para a projeção de uma série de clichês. À parte questões relativas à violência urbana, ao declínio da atividade econômica associado à obsolescência de plantas industriais e ao colapso do tráfego rodoviário (problemas comuns a praticamente toda a porção da cidade do Rio de Janeiro situada fora dos cartões postais), o tratamento dado às políticas públicas e intervenções urbanísticas vem acompanhado de um entendimento genérico e simplista da infraestrutura rodoviária e dos diferentes tecidos urbanos ou substratos territoriais que a margeiam.
Nessa toada, abundam queixas e questionamentos sobre invasões a imóveis, buracos na pista e engarrafamentos, acompanhados por ideias ou pretensas soluções, levantadas pelas candidaturas ao executivo municipal, destinadas à revitalização da área (como se todo um território ao longo de mais de 58 km pudesse ser definido como uma só área), à “ligação do BRT com o Centro” e a um redirecionamento do que se pretende como novo “eixo de desenvolvimento do Rio” (5).
Evidentemente, buracos, violência e engarrafamentos são problemas e devem ser, preferencialmente, evitados. No entanto, diante de uma infraestrutura urbana de tamanha magnitude, que atravessa 32 bairros, com problemas de tão longa data, não deixa de impressionar a superficialidade do entendimento e dos discursos envolvidos. Aparentemente bem-intencionadas, tais ideias não fazem mais que replicar alguns termos e diretrizes aceitos e consentidos sob o viés da eficiência, do embelezamento e da competitividade urbana, utilizados globalmente em contextos tão distintos quanto distantes, como alternativas pinçadas de uma espécie de cardápio standard de soluções urbanísticas.
Infraestrutura rodoviária como questão de projeto
Duas linhas de atuação, partidas desse repertório, têm se destacado, quando o tema é a discussão a respeito de grandes eixos rodoviários e cidade, no Rio de Janeiro. Uma delas se liga a esforços de apagamento destas obras sobre os tecidos urbanos aos quais servem; outra, liga-se à reprodução de polos de desenvolvimento econômico conectados a partir da infraestrutura.
A primeira se materializa a partir da demolição, do cobrimento ou do enterramento de eixos de mobilidade, sobre os quais instalam-se grandes plataformas ou superfícies orientadas a pedestres, na forma de espaços recreativos ou turísticos, segundo os moldes de cidades tradicionais, compactas e contínuas. Atraentes a investimentos sobre equipamentos culturais, à preservação ou à restauração de lugares identificados à noção de patrimônio, tais intervenções situam-se sob “a condição de isca ou imagem publicitária” (6) de fragmentos de cidade tidos como globais, que buscam competir em âmbito internacional.
Exemplo notório foram as obras de demolição do elevado Juscelino Kubitschek (popularmente conhecido como Perimetral) e de construção do túnel Marcello Alencar, parte da operação Porto Maravilha. O caso guarda similaridades com outra gigantesca e não menos controvertida intervenção, realizada em Boston: o Big-Dig, megaprojeto de escavação na região central, que direcionou ao subsolo o tráfego rodoviário, criando espaços bucólicos sobre a superfície, às custas de cifras exorbitantes e enorme atraso. São grandes as similaridades entre o exemplo estadunidense e a empreitada carioca, na qual, em lugar de esforços ou estratégias voltados à integração da infraestrutura às demais camadas e fenômenos urbanos, sendo alguns recorrentes de adaptações realizadas pela própria população (7), optou-se por seu apagamento ou invisibilidade.
A segunda linha de atuação se relaciona à aposta pela criação de centralidades, via oferta de trabalho e serviços, junto a estações de transporte, com a determinação de usos do solo e incentivos ao adensamento. O procedimento do Transit Oriented Development — TOD, abraçado pelo recente Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (2018), em uma metrópole tão desigual, marcada por intensa concentração de riqueza e oferta de trabalho junto ao Centro, termina por reforçar, por meio da provisão de transporte e incentivo à mobilidade urbana, a dependência, em relação à centralidade principal, de bairros periféricos, nos quais a atividade econômica se limita a serviços de proximidade e pequenos negócios, característicos de subúrbios-dormitório (8).
De qualquer maneira, mesmo em cidades melhor distribuídas ou metrópoles polinucleares, o desenvolvimento alavancado pelo transporte rodoviário tende a adotar um caráter fechado, por voltar-se ao seu próprio interior, privilegiando espaços controlados, seletivos, cercados e vigilados, eficientemente conectados, tanto pela infraestrutura de mobilidade quanto pela de telecomunicações. Os espaços externos, alheios a essas dinâmicas, assumem, em contraposição, traços residuais, identificados ao caos e à desordem.
Diante do distanciamento de modelos transplantados para com as realidades locais sobre as quais se implantam, cabe questionar se não seria mais pertinente, antes da atuação propositiva, buscar descrever as características físico-espaciais dos tecidos, infraestruturas e territórios sobre os quais se pretende intervir. Ou, nas palavras de Pier Vittorio Aureli (9), pensar uma teoria do espaço urbano baseada na missão de “construir pontos de observação sobre nossa condição, de tal modo que possamos operar em seu interior”, com base em uma visão intencionada, um enfoque, entre tantos quantos sejam possíveis.
Nesse sentido, o exercício teórico situa-se em um “plano anterior” (10) ao do planejamento e da execução; aquele das palavras, conceitos e categorias, a partir do qual se pode representar o universo (urbano, neste caso) sobre o qual se pretende discutir e atuar. É preciso, portanto, deixar de lado, mesmo que temporariamente, a noção de projeto como intervenção objetual, realizada a partir de um diagnóstico, que denota uma visão negativa e pressupõe uma atuação positiva, na forma de espaço construído.
Em se tratando de rodovias e cidades, é interessante observar o que Keller Easterling define como “disposição”, relativo à propriedade, manifesta por sistemas infraestruturais, de organizar o espaço para além de formas aparentes ou objetivas (11). Para a autora, o termo remete a formas ativas, cujas consequências vão muito além das funções específicas para as quais são declaradamente projetadas.
Interessa também a maneira como Antonio Font i Arellano, Carles Llop, Josep Maria Vilanova (12) define a noção de “estrutura espacial”, compreendida como a distribuição geográfica de elementos físicos, representados por estratos construídos e territórios suporte, e as relações espaciais que entre eles se estabelecem, representadas pelas redes de infraestrutura, canalizadoras de fluxos metropolitanos.
Com base nesses entendimentos, a descrição da forma urbana vai além da arquitetura de edifícios ou de um registro estático, passando a vincular-se aos desdobramentos possibilitados pelas interações entre infraestrutura e cidade. Infraestruturas viárias, além de possibilitarem a mobilidade e o deslocamento de pessoas e objetos, organizam o aproveitamento do território, ampliando ou reduzindo, franqueando ou restringindo continuidades, conexões, acessos e ocupações sobre o espaço.
Disposições espaciais na avenida Brasil
Retornando ao exemplo da avenida Brasil, é possível partir de três parâmetros, ditados pelo ideário urbanístico do segundo quarto do século 20, no contexto do Rio de Janeiro, que orientaram seu projeto e sua implementação e que se podem utilizar como marco de referência para discutir desdobramentos sobre a configuração do espaço.
O primeiro diz respeito ao caráter ostensivamente especializado da infraestrutura, voltado estritamente ao transporte rodoviário e à ampliação de sua eficiência. O segundo aponta à finalidade de conquista de novas áreas para a ocupação urbana, o que, para o bem ou para o mal, motivou a estruturação do crescimento, tanto adjacente quanto indiretamente, a partir do eixo viário e de novos assentamentos. A terceira perspectiva diz respeito à separação funcional entre os espaços construídos, cujas compartimentação e desarticulação deu margem a apropriações e adaptações não planejadas.
Construída durante o Estado Novo, governo ditatorial de Getúlio Vargas, sob o mandato do prefeito Henrique Dodsworth, a avenida refletiu um “urbanismo de projetos fracionados” (13), que prescindiu do planejamento ou de metodologias que indicassem estratégias ou diretrizes de intervenção sobre o território, optando por grandes obras e reformas de transformação e expansão da cidade.
Somada a pressões políticas em prol do progresso e de uma imagem desenvolvimentista do país, a construção do eixo viário foi uma resposta prática a dois temas importantes, no contexto de finais dos anos 1930. Em primeiro, à necessidade de escoamento do tráfego rodoviário, saturado, já àquela época, na área dos subúrbios da Leopoldina (14), cuja infraestrutura não comportava as demandas de então (15). Em segundo, aos desejos de políticos e técnicos de facilitar a conexão entre o Rio de Janeiro, então capital federal, e outras importantes áreas do país, como Minas Gerais e São Paulo.
Especialização viária: entre hierarquia e aderência
A prioridade rodoviária no urbanismo brasileiro recebeu influência de organizações institucionais, atores políticos e de uma classe investidora, intimamente conectada ao Estado, cujos capitais se direcionavam direta ou indiretamente à provisão de infraestrutura (16). No Rio de Janeiro, as principais preocupações relacionadas ao debate urbanístico, em uma fase de formação da metrópole, diziam respeito a conexões e bases técnicas que fornecessem condições para a expansão urbana. A avenida Brasil formaria, com a avenida Litorânea (17), o anel rodoviário do Distrito Federal, funcionando como estrada “de penetração e conquista” (18), que possibilitaria a ampliação da quilometragem das redes de mobilidade urbanas e viabilizaria melhores condições técnicas para o tráfego rodado.
Os esforços sobre o encurtamento dos tempos de deslocamento se sobrepunham à estruturação urbana e à promoção de diretrizes de crescimento. O projeto previa pistas centrais de alta velocidade e vias laterais de tráfego local e acessos laterais, mas pouco se pensavam ou discutiam relações possíveis entre ocupação e acessibilidade, com foco predominante sobre a possibilidade de transformação da infraestrutura em via expressa.
Mesmo 75 anos após sua inauguração, a lógica de operação da avenida se mantém alinhada ao que Bernardo Secchi (19) define como tubos: canais de circulação que, por meio de operações de especialização e setorização, estabelecem relações de intensa e marcada hierarquia com seu território. São tipos de infraestruturas separados programaticamente de seu entorno, cujo acesso se dá por grandes nós, estações, trevos, alças ou agulhas viárias, que tendem a constituir barreiras e a promover a construção de enclaves sem qualquer caráter poroso ou permeável ao território.
Em oposição à noção de tubos, o autor comenta o conceito de esponjas, ligado à ideia de que malhas de menor calibre e impacto formam sistemas de maior contato com o substrato. A esponja se coloca, portanto, como uma superfície porosa, flexível e adaptativa, integrada ao território, capaz de se autorregular e modificar com o tempo, e de absorver as complexidades e mutações da vida urbana.
À noção de porosidade pode-se acrescentar a de aderência, ligada ao grau de registro que uma rede exerce sobre o território no qual se implanta (20). Uma baixa aderência corresponderia a infraestruturas autônomas e ligadas unicamente às suas próprias regras de circulação, enquanto que a característica de alta aderência se associaria à qualidade de capilaridade, entre infraestrutura e território e, portanto, ao potencial de acessibilidade, entendido aqui como a medida da capacidade de um lugar de ser alcançado ou de alcançar outras localidades.
No que se refere à avenida Brasil, a especialização se reforça ainda mais quando se observam, por um lado, as relações de transversalidade ou paralelismo estabelecidas com outros importantes eixos de mobilidade metropolitana, tanto rodoviários quanto ferroviários; por outro lado, quando se percebem os diferentes arranjos, ao longo de sua extensão, entre pistas centrais, pistas de canto e ocupações de borda. É nítido que a via não responde a um padrão único e oferece diferentes configurações para que se pensem integrações modais, complementaridade entre escalas e espaços destinados à mobilidade ativa, geralmente relegados, quando muito, a superfícies exíguas e mal pavimentadas.
Apesar da rígida especialização, acumulou-se um sem número de ocupações habitacionais (em parte providas pelo poder público, em parte autoconstruídas), de serviços ligados ao modal rodoviário e industriais. Some-se a isso passarelas, viadutos e alças rodoviárias e resulta um espaço dominado por dispositivos de tráfego, porém todo o tempo contraposto à realidade da escala humana e de usos que subvertem a lógica tecnocrática.
Expansão urbana: entre fechamento e abertura
Quanto às relações entre a infraestrutura rodoviária, os eixos e tecidos transversais, ocupações adjacentes e a área metropolitana expandida, mesmo considerado o caráter marcadamente especializado de sua implantação, é possível realizar uma leitura que atente ao âmbito dos padrões de assentamento e crescimento urbano, contrapostos ao eixo linear da avenida Brasil e ao território.
Bernardes atribui ao processo de formação do Rio de Janeiro “uma forma original e bastante complexa, que não se enquadra em nenhum dos tipos conhecidos” (21). Apesar de orientado pelas linhas da infraestrutura ferroviária, primeiramente, e rodoviária, em seguida, o crescimento metropolitano não apresentou eixos lineares claramente definidos ou contiguidade evidente, desenvolvendo-se de maneira fragmentada, como resultado da condição litorânea da região, da configuração de seu relevo e das diferentes atrações exercidas pelas infraestruturas de mobilidade, que ora guiaram trechos de expansão linear, ora preencheram “bolsas” vazias com crescimento em malha, ora pontuaram estes vazios com ocupações isoladas.
Quanto aos mais de 58km de comprimento da avenida Brasil, apesar das inúmeras variações e diferenças, é possível observar como, em relação ao papel exercido pela via enquanto vetor de expansão e adensamento, podem-se aferir duas formas básicas de comportamento: uma como espécie de cidade linear, cujas ocupações existem em total dependência para com a infraestrutura de mobilidade, e outra como uma espécie de campo de influência, cuja expansão, em malha, se funde a tecidos estendidos desde outras centralidades, resultando em uma mancha construída contínua.
A respeito desta ideia de continuidade, Albert Pope, citando Rosalind Krauss (22), ressalta que o sistema do gridiron, como campo espacial de crescimento centrífugo, tende ao infinito. Segundo esta leitura, a malha urbana, enquanto princípio de expansão e lógica de organização, é uma estrutura à qual qualquer ponto pode ser incluído, sem que se estabeleçam limites definidos. As coordenadas da malha, para as quais não se pode determinar um exterior são, basicamente, todo e qualquer lugar. Apesar de comumente associar-se a ideia de malha urbana a sistemas reticulados, o autor ressalta que o gridiron pode prescindir do ângulo reto, absorvendo curvas, irregularidades e ritmos diversos, desde que mantenha sua lógica operativa.
É este o esquema básico da cidade do século 19, que se expandiu de maneira contínua e, até que lhe fossem impostos limites, ininterruptamente. Foi assim no Rio de Janeiro que, a partir da construção da atual Estrada de Ferro Central do Brasil se expandiu rumo a norte e noroeste da ocupação inicial da cidade, com a instalação de estações ferroviárias que originaram pequenos núcleos urbanos, loteamentos, acréscimos de outros sistemas de transporte e progressiva expansão urbana.
A este esquema espacial se opõe o que seria uma organização centrípeta, descontínua e fechada, à qual Pope (23) associa ao diagrama do ladder (24), ocupação típica dos anos do pós-segunda guerra e de lógica oposta à da malha centrífuga, definido como uma figura formada por um eixo linear, a partir do qual se destacam afluentes ou degraus, fechados sobre si mesmos, que podem ser, eventualmente, resquícios de uma malha outrora contínua que resulta obstruída, descontinuada. Com vias em cul-de-sac, conectadas entre si apenas por eixos arteriais, a figura emerge, portanto, como sistema hierarquizado, distribuído a partir do que Christopher Alexander (25) chamou de configuração em árvore, composta por pequenos trechos de grids isolados.
No arranjo espacial centrípeto, marcado por forte diferenciação entre forma urbana e espaço, ou figura e fundo, mais que uma organização interna, reproduz-se um exterior, um lado de fora cuja condição se associa vigorosamente ao termo residual. Externos à formação protagonista do ladder, surgem inevitáveis subprodutos do desenvolvimento centrípeto, aquilo que sobra, entre eixos viários e enclaves fechados sobre si próprios, em permanente estado de desorganização, por distinção a seu oposto e frequentemente associado a áreas de urbanização precária, marcadas pela informalidade, onde a ocupação costuma se vincular ao acesso a infraestruturas de mobilidade.
Estas concepções diagramáticas de diferentes sistemas de expansão e organização urbana permitem pensar três diferentes categorias, em relação aos padrões de crescimento ligados ao eixo rodoviário da avenida Brasil.
1. Enclaves existentes em total dependência da via, acessados por apenas um, ou poucos pontos e fechados sobre si mesmos. São condomínios residenciais, ocupações institucionais ou industriais e shopping centers, nos quais a lógica centrípeta determina suas relações com o território.
2. Tecidos urbanos em continuidade com outras malhas ou urbanizações provenientes de momentos históricos e origens distintas. Podem ser reticuladas ou orgânicas, porém mais aderentes ao eixo linear e ao território.
3. Grandes ilhas, ou assentamentos cuja existência ocorre em total dependência do eixo rodoviário, porém, cuja evolução e adensamento marcam-se por uma expansão urbana em malha, porém desconectada e autônoma, em relação a outros tecidos metropolitanos.
Subúrbios rodoviários: entre o específico e o espontâneo
Para além da especialização viária e da expansão urbana, uma terceira característica marca o advento da avenida Brasil, determinando o caráter das ocupações atreladas a seu eixo e, mais que isso, a interação entre elas. Nas palavras de François Ascher (26), a “cidade fordista”, marcada por grande confiança na ordem e na racionalização, decompõe a complexidade urbana em funções elementares, buscando, na eficiência da monofuncionalidade, “tipificar o alojamento e industrializar a construção”, fazendo da autoestrada um “transportador”, que organiza e distribui a cadeia produtiva.
Antes mesmo da abertura da avenida Brasil, uma série de debates e projetos prepararam o caminho para sua posterior execução. As principais propostas trazidas à baila tiveram como marca, por um lado, o foco sobre a expansão urbana, com vias especializadas que conferissem maior eficiência à mobilidade automatizada, e, por outro lado, a construção de zonas destinadas a ocupações monofuncionais, em geral de caráter industrial ou residencial proletário. É o caso do Projeto para o Bairro Industrial de Manguinhos, de Macedo Vieira (1927), do Plano Agache (1930), que previa sua zona industrial ao longo da Orla Norte da Baía de Guanabara, e também dos planos de conjunto e rodoviários, desenvolvidos pela prefeitura de Dodsworth (1937–1945).
Ademais, a expansão urbana sobre tábulas rasas, sem a preocupação de articulá-las ou torná-las complementares entre si, acentua a pouca importância dada a determinadas áreas do Rio, a partir de finais do século 19 e ao longo do século 20. Os chamados subúrbios das zonas Norte e Oeste, marcados por um crescimento acentuado, se vincularam à ocupação industrial e às classes sociais rejeitadas pela cidade central e mais rica. Essa fase inaugura, portanto, uma prática frequente de priorização de uma região restrita quanto a investimentos públicos, enquanto grandes áreas passam a ser excluídas dos processos de melhoria, modernização, intervenções urbanas e da representação de um ideal forjado da cidade e de seus habitantes, ligado a belas paisagens, espaços urbanizados e habitados por classes burguesas de procedência europeia.
Essa prática se confirma com a não execução, ou execução parcial, de projetos como o Parkway Faria-Timbó e o Parque Uruçumirim (27), que promoveriam a articulação entre equipamentos urbanos, infraestrutura rodoviária e a ocupação de áreas da Zona Norte da cidade diretamente conectadas ao eixo da avenida Brasil. Diferentemente destes exemplos, em 1965 conclui-se o Parque do Flamengo, parkway de conexão expressa entre o Centro e a Zona Sul pela orla da Baía de Guanabara, de reconhecido impacto metropolitano, que resolve fluxos de pedestres e veículos, organiza e retém a ocupação imobiliária, valoriza a paisagem natural e oferece uma série de equipamentos para a população, demonstrando que, já àquele tempo, realizavam-se não apenas projetos de qualidade, como obras sofisticadas, para muito além do cumprimento de requisitos técnicos.
Um dos objetivos da construção da avenida Brasil foi impulsionar o crescimento de áreas de baixa densidade demográfica nos subúrbios do Rio de Janeiro e municípios da Baixada Fluminense. Boa parte dos terrenos ocupados ao longo desta expansão urbana recebeu grandes conjuntos habitacionais, financiados por Institutos de Previdência, que se distanciavam da área central, em busca de espaços amplos e terrenos baratos. Além das áreas residenciais, estariam conectadas e distribuídas por uma grande “espinha dorsal” (28) rodoviária as zonas de atividades militares, industriais, portuárias, agrícolas e universitárias.
Mais que identificar as funções que inicialmente configuraram a avenida Brasil, deve-se ter em conta que as tipologias arquitetônicas e de ocupação do espaço foram variadas e, quando possível, absorveram adaptações e conversões de seus usos originais. A infraestrutura rodoviária torna-se, assim, uma espécie de “corda onde tudo se pendura” (29), abarcando programas de acordo com necessidades e conveniências, justaposições, sobreposições e mesclas que subvertem o pensamento funcionalista, tornando-o insuficiente para a compreensão do cenário estabelecido, que agrega e contrapõe escalas, fluxos e velocidades, formalidade e informalidade.
Considerações finais
O tipo de rodovia metropolitana dentro do qual se pode classificar a avenida Brasil representa uma classe de infraestruturas urbanas que, inicialmente implantadas sobre territórios periféricos e não povoados, promoveram o adensamento e a intensificação de seu uso, com a sobreposição de atividades múltiplas. Hoje, parcialmente superado um ideário funcionalista apoiado sobre modelos conclusivos e abstratos, faz-se necessária, também, a superação do estigma do erro e de termos depreciativos, na tarefa de lidar com o que talvez seja um terceiro estatuto conceitual desses grandes eixos rodoviários: o potencial de manifestar-se positivamente como sistema linear, atravessado por uma série de lógicas que permitem pensar uma distribuição mais equilibrada das qualidades metropolitanas ao longo do território.
Nesse sentido, dada a pluralidade de situações e a heterogeneidade inerente à topologia de grandes metrópoles, as disposições, ou relações espaciais estabelecidas entre infraestrutura, tecidos urbanos e matrizes territoriais não respondem a padrões uniformes. Por transitarem entre o que é da ordem do prescritivo e, ao mesmo tempo, do imprevisto, requerem abordagens projetivas, que podem adaptar-se a situações distintas mais do que teorias ou classificações assertivas.
Descrições do fato metropolitano mais atentas a lógicas e dinâmicas de caráter complexo e interferência mútua podem contribuir para interpretações propositivas das possibilidades que oferecem. Dessa maneira, é possível ir além, por um lado, de zoneamentos e divisões administrativas ou funcionais; por outro, da noção de projeto enquanto intervenção necessariamente objetual, legível e formalmente definida. O agenciamento de fluxos, a continuidade entre sistemas, a ligação entre âmbitos separados, a valorização da mobilidade ativa e da escala humana podem ser conseguidos com pequenas ações, que potencializem arranjos latentes, porém subaproveitados.
Ademais, pode-se flexibilizar a noção de planificação que, compreendida como uma sequência de estratégias, deve integrar, em lugar de separar, planejamento territorial e projeto urbano como instâncias complementares e mutuamente condicionantes, desde a escala local, ou arquitetônica, à geográfica, ou metropolitana.
A noção de projeto, assume, portanto, o caráter de lógica, de catalisador entre potenciais, antecipando-se a parâmetros e instrumentos, que não devem ser mobilizados nem desconsiderados a priori, mas dispostos e aplicados conforme façam sentido e dialoguem com as descrições e interpretações advindas da cidade real e praticada.
notas
1
A Baixada Fluminense é uma região de planícies, adjacente aos limites a norte do município do Rio de Janeiro. Com treze cidades, tem uma população de mais de 3.5 milhões de habitantes.
2
VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel, 2001, p. 329.
3
Idem, ibidem, p. 82.
4
COSTA, Renato da Gama-Rosa. Entre avenida e rodovia: a história da avenida Brasil (1906–1954). Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Prourb UFRJ, 2006.
5
MAGALHÃES, Luiz Ernesto. Avenida Brasil: Saiba quais são as propostas dos candidatos a prefeito para recuperar uma das principais vias do Rio. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 28 out. 2020 <http://glo.bo/3S9qle3>.
6
ARANTES, Otilia. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In ARANTES, Otilia; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000, p. 47.
7
Exemplos amplamente conhecidos são a feira de antiguidades da praça XV, que acontecia sob a sombra e proteção do elevado da Perimetral e foi deslocada para uma área adjacente, porém árida, e o Baile Charme do viaduto de Madureira, realizado aos sábados, sob o viaduto Negrão de Lima.
8
LASSANCE, Guilherme; FIGUEIRA, Patricia. Is the Right to Mobility a Right to the City? Examining a Well-Accepted Planning Paradigm. Journal of Civil Engineering and Architecture (online), v. 14, 2020, p. 603–608.
9
AURELI, Pier Vittorio. Habitando la abstracción: notas a Ladders, de Albert Pope. In POPE, Albert. Ladders. 2ª edição. Houston, Architecture at Rice, 2014, p. XXXVII.
10
SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do Social — Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo, Global, 2004, p. 239.
11
EASTERLING, Keller. Extrastatecraft: The Power of Infrastructure Space. Nova York, Verso, 2014, p. 71.
12
FONT I ARELLANO, Antonio; LLOP, Carles; VILANOVA, Josep Maria. La Construcció del Territori Metropolità: morfogènesi de la regió urbana de Barcelona. Barcelona, Mancomunitat de Municipis de l'Àrea Metropolitana de Barcelona, 1999, p. 134.
13
REZENDE, Vera. A Era Vargas, o planejamento de cidades e a circulação de ideias: um olhar a partir do Distrito Federal, a cidade do Rio de Janeiro. In Urbanismo na Era Vargas: a transformação das cidades brasileiras. Niterói, Intertexto, 2012, p. 84.
14
Inclui os bairros de Bonsucesso, Manguinhos, Olaria, Penha, Penha Circular, Vila da Penha, Parada de Lucas, Brás de Pina e Ramos, situados ao longo da Estrada de Ferro Leopoldina.
15
REIS, José de Oliveira. O Plano Diretor. Revista Municipal de Engenharia, Rio de Janeiro, v. X, n. 3, jul. 1943, p. 160.
16
KLEIMAN, Mauro. De Getúlio a Lacerda: um “rio de obras” transforma a cidade do Rio de Janeiro. As obras públicas de infraestrutura urbana na contrução do "novo Rio" no período 1938–1965. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 1994.
17
A avenida Litorânea percorreria o litoral, da Praia de São Conrado até Guaratiba, estendendo-se até Santa Cruz, completando o anel rodoviário com as avenidas das Bandeiras e Brasil.
18
LAVIOLA, A. A. As rodovias da capital da República. Revista Municipal de Engenharia, v. XXI, Rio de Janeiro, out./dez. 1954, p. 198.
19
SECCHI, Bernardo. Isotropy versus Hierarchy. In VIGANÓ, Paola; FABIAN, Lorenzo; SECCHI, Bernardo. Water and Asphalt: The Project of Isotropy. Zurique, Park Books, 2016. p. 34–43.
20
IZAGA, F. Mobilidade e centralidade no Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Prourb UFRJ, 2009.
21
BERNARDES, L. A Faixa Suburbana. In BERNARDES, L.; SOARES, M. T. D. S. Rio de Janeiro: cidade e região. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, v. 3, 1995, p. 147–159.
22
POPE, Albert. Op. cit., p. 22.
23
Idem, ibidem.
24
A figura do ladder representa o que, em português, se conhece por escada de marinheiro.
25
ALEXANDER, Christopher. A City is not a Tree. The Architectural Forum, v. 162, 1965, p. 58–62.
26
ASCHER, François. Metápolis. Acerca do futuro da cidade. Oeiras, Celta, 1998, p. 57.
27
O Parkway (1943) formaria parte de um plano de estruturação da área entre os leitos dos rios Faria e Timbó. O parque Uruçumirim seria construído para os festejos do 4º centenário da cidade (1965).
28
LAVIOLA, A. A. Op. cit., p. 195.
29
DOMINGUES, Á. A rua da estrada. Cidades — Comunidades e Territórios, Porto, dez. 2010, p. 62.
sobre o autor
Pedro Barreto de Moraes é arquiteto e urbanista pelo Instituto Metodista Bennett (2010), mestre pelo Instituto de Arquitetura Avançada da Catalunha (2014) e doutorando no Prourb FAU UFRJ. Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC Rio desde 2014.