Este texto busca mostrar o componente moderno de mudanças que ocorreram em Curitiba entre os anos 1960 e 1970, que tiveram Jaime Lerner como um dos protagonistas. Neste sentido, analisa como as ideias gestadas nos países centrais e as demandas nacionais se traduziram no espaço urbano de Curitiba, especialmente na região central, consolidando a cidade moderna.
Com tal intuito, investiga o contexto que justifica o processo de linearização da cidade, proposta por Jorge Wilheim, no seu Plano Preliminar de Urbanismo, aqui definido como traçado moderno, em contraposição ao modelo Beaux-Arts de Alfred Agache; a participação da equipe local liderada por Jaime Lerner, na execução do Plano Preliminar de Urbanismo; e os fatos que resultaram no tombamento da rua XV de Novembro. Neste caso, estiveram envolvidas ações de renovação urbana e preservação, associando o processo de mudanças locais com debates que já haviam ocorrido em eventos internacionais.
O texto, portanto, estrutura-se com o estudo das principais ideias dos grupos que iniciaram a oposição ao urbanismo moderno clássico, da Carta de Atenas, e das mudanças efetivadas em Curitiba, analisando a incorporação das discussões havidas nos países centrais e diretrizes nacionais do período; e, na sequência, demonstra como as ações que resultaram no tombamento da rua XV se articulavam a uma política efetiva de preservação. Anteriormente a tudo isso, apresentam-se as condições do quadro urbano de Curitiba no período das mudanças e as expectativas para sua realização.
A metodologia utilizada na pesquisa integra o levantamento de dados empíricos, utilizando principalmente fontes primárias, como jornais e documentos de época, confrontados e complementados com artigos científicos, livros e textos acadêmicos, dissertações e teses. Esses documentos são utilizados ora na contextualização das questões locais, ora na articulação das ideias que nortearam as ações em Curitiba, com princípios e diretrizes definidos anteriormente na Europa e Estados Unidos, acerca do urbanismo moderno, da fase posterior à Carta de Atenas.
Urbanismo no pós-guerra
O planejamento das cidades brasileiras na segunda metade do século 20 incorporou as ideias do urbanismo moderno da Carta de Atenas — materializadas na criação de Brasília — mas, também, adotou as novas diretrizes elaboradas pelo Grupo do Team 10 (1), que expressaram ideias gestadas ainda nos anos 1940 e foram apresentadas oficialmente no 10º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, o Ciam 10. Naquele momento, os princípios funcionalistas da Carta de Atenas foram substituídos pelo conceito de coração da cidade, cujos temas foram concretizados posteriormente no Manifesto de Doorn (2), que propunha em seu primeiro artigo a relação entre a casa e a rua, numa crítica ao abstracionismo do urbanismo da primeira fase do Ciam. O documento marcava o afastamento definitivo da arquitetura “inevitavelmente sujeita às necessidades mais amplas da política e da economia”, conforme divulgado no Documento de La Sarraz, de 1928, e seu retorno à origem, como atividade ligada ao desenvolvimento da vida humana (3). Sem desprezar as contribuições do período anterior, quanto à quebra de tradições formais e à necessidade de “redistribuição da terra”, as novas ideias vinham a reboque do pós segunda guerra mundial, quando caíram por terra os paradigmas iluministas do progresso.
“As diversas contribuições dos mestres do movimento moderno [...] tinham em comum a confiança de que o novo universo da máquina [...] transformaria radicalmente o estatuto de objeto, obras de arte, edifícios e cidades. Após a segunda guerra mundial, esse paradigma da máquina se debilita [...]. Uma das correntes mais coerentes é aquela que, influenciada pelos existencialismos e pelo auge das ciências do homem [...] propõe como referência predominante o humanismo” (4).
No Ciam 6 (1947), os organizadores enfatizavam a necessidade de buscar um ambiente físico capaz de satisfazer as necessidades do homem, como prerrogativa de superar a “esterilidade da cidade funcional” (5). Anteriormente, um grupo de arquitetos do Ciam (6) havia divulgado em 1943 um manifesto no qual ressaltavam a importância dos monumentos na cidade, reconhecidos como marcos criados pelo homem como símbolos de seu ideal; e a intrínseca relação entre arquitetura e urbanismo.
“Today modern architects know that buildings cannot be conceived as isolated units, that they have to be incorporated into the vaster urban schemes. There are no frontiers between architecture and town planning, just as there are no frontiers between the city and the region. Correlation between them is necessary. Monuments should constitute the most powerful accents in these vast schemes” (7).
As diferenças de pensamento dos diversos grupos internos não permitiram a discussão de tais temas no Ciam 6 (8). Mas, a partir de então, Josep Luis Sert, um dos autores do Manifesto de 1943, assumiu a direção do evento e suas ideias tiveram mais possibilidades de reconhecimento, principalmente no que concerne à necessidade de preservação das áreas históricas das cidades. Mesmo assim, apenas no Ciam 8, realizado em Hoddesdon no ano de 1951, o tema do “core” defendido por Sert, foi reconhecido. Neste sentido, colaborou o grupo inglês denominado Modern Architecture Research Society — Mars, responsável pela organização do encontro (9). Sert, no discurso de abertura, constatava a expansão dos subúrbios, a descentralização das cidades e a necessidade de aproximar o homem do homem no espaço urbano, possibilitando com isso o livre intercâmbio de ideias. Para tal fim, era importante valorizar os centros urbanos, criando áreas de pedestre. Conforme aborda Eric Mumford, “un aspecto clave seria la aplicación general de la idea de reservar las áreas centrales solo para los peatones” (10) de forma tal que “desde el más grande al más pequeño, el corazón debería ser siempre uma isla para el peatón” (11).
No Ciam 9, cujo tema era o Habitat humano, houve o rompimento definitivo com os princípios da Carta de Atenas, protagonizado pelo grupo responsável por organizar o Ciam 10. A preocupação do grupo, conhecido como Team 10, era encontrar “uma relação mais precisa entre a forma física e a necessidade sociopsicológica do homem” (12). O evento foi realizado em Aix-em-Provence, no ano de 1953, e no lugar de “um conjunto alternativo de abstrações [...] pesquisaram os princípios estruturais do desenvolvimento urbano e a unidade significativa imediatamente acima da célula familiar” (13).
Tais ideias, que resultaram no desenvolvimento dos conceitos de identidade e associação, foram alimentadas pela filosofa existencialista, por pesquisas empíricas com moradores da região, pelas fotografias de Nigel Henderson, que retratava a realidade física e social das ruas do East End de Londres, mas, principalmente, pelas visitas dos Smithson a Bethnal Green, onde Henderson morava. Em seu livro Urban Structure, os arquitetos definiram o conceito de associação, para os elementos urbanos e arquitetônicos, no qual propuseram uma “cidade multi-nivelada, com ruas-aéreas residenciais, [...] ligadas juntas em um complexo contínuo multinivelado” (14), como contraponto ao isolamento das unidades de habitação propostas pela Carta de Atenas. Mas, à parte essas teorias, as realizações dos Smithson não se afastavam muito da racionalidade da fase inicial dos Ciam. Seu projeto para Golden Lane estava longe de representar o conceito de comunidade, expressando a contradição entre teoria e prática (15).
Em síntese, enquanto a Carta de Atenas registrava o pensamento de Le Corbusier para as cidades, cujos princípios embasavam-se na convicção de criar espaços racionalizados, perfeitos e transparentes, com o emprego de formas simples, para atender a um “hombre ética e moralmente entero, de costumbres puritanas, de una funcionalidad espartana”, para os arquitetos do Team 10, que publicaram o Manifesto de Doorn, a cidade deveria ser vista não apenas campo de experimentações técnicas, mas como lugar de manifestações “humanas e materiais” (16). Contudo, mantinham como premissa a continuidade do espírito da modernidade.
No Brasil, o período coincide com iniciativas de expansão urbana e criação de subcentros, com a consequente necessidade de preservação dos centros tradicionais, que foram aos poucos perdendo o protagonismo social, político e econômico nas cidades, revestindo-se de uma dimensão histórico-simbólica. Tais foram, por exemplo, os casos de São Paulo e Salvador que, aparte suas especificidades, traduzem bem essas mudanças. No caso de São Paulo,
“A proliferação de centralidades, principalmente econômicas e/ou produtivas, faz parte do processo de expansão da centralidade, mas que, dialeticamente, promove a desvalorização dos centros tradicionais e ou históricos. [...] Nessa lógica, empresas passam a se deslocar para os novos centros em razão das vantagens que lhes apresentam as incorporadoras: acesso fácil às vias de trânsito rápido, o que descomplica o escoamento da produção e a chegada de clientes; prédios com garagens permitindo o estacionamento de funcionários, clientes e representantes, que, no centro tradicional, sofrem restrições; edifícios modernos, capazes de incorporar as tecnologias de comunicações que alguns prédios do centro antigo só poderiam fazê-lo se sofressem mudanças estruturais” (17).
Em Salvador, por sua vez, a desvalorização do centro tradicional ocorreu, segundo Santos, em finais dos anos sessenta, fruto de ações que articularam interesses nacionais e locais,
“Do ponto de vista urbanístico é possível descrever a modernização da cidade como um processo, que foi a cada passo organizando o espaço urbano, [...] para adaptá-lo aos novos interesses capitalistas, gerando, por outro lado, a desvalorização funcional do centro urbano tradicional, que passou a ser progressivamente valorizado como centro histórico” (18).
No caso de Curitiba, o processo de expansão dos anos 1960 coincidiu com a valorização da área central, mais especificamente da rua XV de Novembro, fazendo coincidir ações de preservação e renovação urbana.
Curitiba na segunda metade do século 20
A capital do estado do Paraná, Curitiba, experimentou um expressivo crescimento demográfico ao longo do século 20, mas, entre 1950 e 1960, o número de habitantes dobrou, potencializando o processo de expansão territorial e a demanda por melhoramento e ampliação da infraestrutura e dos serviços urbanos, de ordenação do uso do solo e do sistema viário.
O centro de Curitiba abrigava as principais atividades comerciais e de serviços, concentrando 50% do total de empregos da cidade (19). A região e especialmente a sua via mais importante, a rua XV de Novembro, receberam, ainda na primeira metade do século 20, ações de melhoramentos e embelezamento, materializando e simbolizando a modernidade e modernização da cidade. Uma das marcas deste processo foi a construção de inúmeros arranha-céus, a partir da década de 1930, com vários padrões de apartamentos, inovando a forma de morar, de escritórios, de galerias comerciais etc (20).
O processo de verticalização, acentuado nos anos 1950, veio acompanhado da intensa circulação de veículos e dos problemas decorrentes, como engarrafamentos e acidentes. O trânsito era considerado o “grande problema de Curitiba” (21). Em especial, a rua XV de Novembro chegou a ser considerada “obsoleta e acanhada” pela sua reduzida largura e “uma das causas do congestionamento do trânsito do centro” (22). Mesmo abrigando os principais edifícios comerciais, as lojas sofisticadas, os cafés e cinemas concorridos, a XV de Novembro já não oferecia “comodidade alguma aos comerciantes e aos consumidores, devido a impossibilidade de estacionamento” (23).
Outro fato, simultâneo aos dois primeiros, era a transformação de edificações antigas da área central em cortiços, um dos problemas provenientes da “degeneração urbana” denunciada por Arzua. Em 1962, uma reportagem revelou a existência de cem famílias vivendo em condições precárias nas proximidades das ruas XV de Novembro, Barão do Rio Branco e Marechal Deodoro, entre outras (24).
Neste contexto, Ivo Arzua iniciou seu mandato com o compromisso de realizar a revisão do Plano Agache (1943), parcialmente executado e considerado ultrapassado (25). Em 1964, a Companhia de Desenvolvimento do Paraná — Codepar (26) ofereceu o financiamento de um Plano Diretor de Curitiba, que deveria conter as seguintes etapas: 1. esclarecer potencialidades e carências de cidade; 2. redigir regulamento baseado nos levantamentos da etapa anterior; 3. realizar o concurso; 4. conceber um plano preliminar de urbanismo para discussão das hipóteses apresentadas; e 5. redigir o plano diretor e promulgá-lo. Também havia as diretrizes de adotar uma abrangência metropolitana, constituir um órgão permanente de planejamento e definir um distrito industrial (27). Foi aberta uma concorrência nacional vencida pela Sociedade Serete de Estudos e Projetos Ltda. e o escritório de arquitetura Jorge Wilheim Arquitetos Associados. O Plano Preliminar de Urbanismo foi entregue em junho de 1965. Um grupo de técnicos locais, composto por dezesseis engenheiros e arquitetos — entre os quais Jaime Lerner, Saul Raiz, Dulcia Auríquio e Francisca Richbieter (28) — acompanhou o processo de elaboração do Plano, como determinou a Codepar.
O diagnóstico apresentado no Plano Preliminar de Urbanismo constatou expressivo e desordenado crescimento demográfico e territorial, caracterizado por uma ocupação de baixa densidade populacional, que dificultava a implantação de equipamentos e serviços públicos em todo o município. Em relação à área central, o plano reafirmava problemas de congestionamentos ocasionados pela concentração de atividades comerciais e de serviços, pelo sistema viário, organizado no modelo radioconcêntrico de Agache, que impunha a passagem obrigatória pelo centro nos deslocamentos diametrais; e pelo excessivo número de veículos. Identificou nisso uma ameaça de descaracterização da área, fato que punha em risco o tradicional ponto de encontro dos curitibanos. Outra constatação do documento foi a carência de “símbolos citadinos”, apontando a possibilidade de uso mais total e característico da rua XV, “promovendo o enriquecimento de sua vida recreativa e cultural” (29).
As bases para as ideias de Wilheim em seu diagnóstico, de valorização do centro e reconhecimento da sua importância como área de convívio dos moradores, estavam alinhadas com as mudanças que introduziram o conceito de coração da cidade, conforme abordado anteriormente.
O Plano Preliminar propôs duas ações primordiais para contornar os problemas no centro principal: a implantação do Anel Perimetral de Tráfego Lento, impondo o contorno da área pelo tráfego de veículos mais intenso e veloz; e a pedestrianização da rua XV, praça Generoso Marques e parte da praça Tiradentes. Ambas tinham o objetivo de ressaltar as “características diferenciais” da área e devolver à população o seu tradicional ponto de encontro.
Nesse contexto, o Plano Preliminar de Urbanismo enfatizou a importância da localização do Paço Municipal e da preservação do seu edifício histórico, transformando-o em museu ou espaço cultural. A esse respeito, Wilheim completava: “o esplendido largo em sua frente, praça Generoso Marques, entregue ao pedestre, poderia facilmente transformar-se num ponto de encontro, bom bares e mesinhas nas calçadas e a promoção ou criação espontânea de concertos e outras atividades culturais ao ar livre” (30).
Contudo, a alteração mais importante proposta pelo Plano Preliminar de Urbanismo foi o redirecionamento do processo de expansão urbana de Curitiba, que assumiu uma diretriz linear, utilizando como eixos os antigos caminhos, que Agache já usara na definição das vias radiais em 1943. Com base em dois grandes eixos que tangenciavam o centro principal, o plano previa a criação de subcentros, que potencializavam uma tendência em alguns bairros. Com isso, Curitiba apresentava-se definitivamente como uma cidade moderna, de fluxo contínuo, em grande escala, articulando sob novas bases os diversos bairros que antes dependiam da passagem pelo centro. Revelando domínio da teoria e da história do planejamento urbano, bem como proximidade com os debates que vinham ocorrendo desde os anos 1950 nos países centrais, Wilheim criou a possibilidade da cidade se desenvolver, sem os entraves do centro e, ainda assim, resgatando os caminhos tradicionais. Tais ideias não passaram despercebidas por Jaime Lerner, que ficou à frente da equipe responsável para dar continuidade ao Plano.
De Plano de Urbanismo a Plano Diretor
Após a entrega do Plano Preliminar de Urbanismo, em julho de 1965, foi realizado o Seminário Curitiba de Amanhã, com o objetivo de mostrar o trabalho à população. A equipe responsável por tal apresentação era formada pelos arquitetos Jaime Lerner, Almir Fernandes, Francisca Maria Rischbieter, Alfredo Willer, Lubomir Ficinski Dunin, Domingos Henrique Bongestabs e pelo economista Reinhold Stephanes (31). Além dos debates ocorridos no evento, a prefeitura abriu inscrições para propostas de planos preliminares urbanísticos para Curitiba, que poderiam contribuir para a elaboração do futuro Plano Diretor (32).
Após o seminário, os técnicos, que acompanharam a elaboração do Plano Preliminar, desenvolveram a proposta do Plano Diretor de Curitiba e foram incorporados na Assessoria de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba — Appuc (33). A criação desse órgão foi o primeiro passo para o atendimento às determinações da Codepar, em relação à constituição de um órgão permanente de planejamento no âmbito municipal. No final de 1965, tal condição foi atendida com a transformação da Appuc no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba — Ippuc, autarquia responsável por elaborar e encaminhar ao legislativo o projeto de lei do Plano Diretor (34).
Em 20 de maio de 1966, foi encaminhada a proposta do Plano Diretor de Curitiba à Câmara Municipal. Na Mensagem que acompanhou o documento, o prefeito Ivo Arzua ressaltou a importância do Plano para assegurar o desenvolvimento integrado e o bem-estar da comunidade, assim como privilegiar as “características de Cidade Humana, com tradicionais pontos de encontro, como a rua XV e o Passeio Público, que mantêm viva a coesão humana e social de seus moradores” (35).
A proposta continha avanços em relação ao Plano Preliminar de Urbanismo, proporcionados pelo estudo mais detalhado e pelas várias contribuições advindas do Seminário Curitiba de Amanhã. Além da introdução dos temas de Saneamento, Sistema Rodoviário Municipal, Educação e Saúde e Habitação Popular, foram acrescentadas duas diretrizes básicas: as políticas de Renovação Urbana e de Preservação e Revitalização dos Setores Histórico-Tradicionais. A primeira foi definida “como um sistema destinado a evitar a decadência das áreas e equipamentos urbanos, um instrumento para a revitalização das zonas em declínio ou exauridas, e como um meio de efetiva promoção social da comunidade”; e a segunda, “com a finalidade de resguardar os valores históricos e urbanos de determinadas áreas” (36). O Plano Diretor de Curitiba foi promulgado em 31 de julho de 1966 (37).
Em relação ao centro principal, o Plano Diretor manteve grande parte das propostas e diretrizes traçadas pelo Plano Preliminar. Na futura área de domínio de pedestres, que incluía a rua XV de Novembro e adjacências, localizavam-se os principais pontos de encontro da cidade. A retirada dos carros e a devolução da via à população proporcionariam a criação de uma paisagem urbana própria, o necessário “símbolo citadino”. O centro principal passou a denominar-se Zona Comercial Principal — ZC-1, sendo permitidos usos comerciais, culturais e de prestação de serviço (38); e permissíveis, incluindo, entre outros, edifícios de recreação e culto, garagens coletivas e edifícios de apartamentos de área útil mínima de 45m². A área foi delimitada por um anel perimetral, impondo o tráfego lento em seu interior, tangenciado por avenidas rápidas estruturais, que possibilitariam o deslocamento em maior velocidade. A ZC-1 seria composta por ruas, praças e alamedas de uso preferencial de pedestres (39).
Renovação versus preservação no tombamento da rua XV de Novembro
O debate que se abriu com o Plano Diretor de Curitiba visava consolidar a cidade moderna e colocar lado a lado a renovação urbana com a preservação e revitalização dos setores históricos tradicionais, estando expresso de forma exemplar nas mudanças promovidas na rua XV de Novembro, que culminaram no tombamento da sua paisagem. Conceitualmente, as ações de renovação e preservação são aparentemente antagônicas. A renovação urbana, de acordo com a Carta de Lisboa (40), pressupõe a demolição e substituição de “estruturas morfológicas e tipológicas” degradadas, enquanto a preservação, que está incluída em muitos documentos de referência no campo do patrimônio, está definida na Carta de Burra como "a manutenção no estado da substância de um bem e a desaceleração do processo pelo qual ele se degrada” (41).
Ou seja, enquanto uma ação se refere à transformação contínua, a outra atenta para a manutenção do bem como princípio essencial. Ainda que hoje tais questões estejam relativizadas, principalmente quando vistas na perspectiva de Gustavo Giovanoni (42), no momento de elaboração do Plano Diretor de Curitiba, os dois conceitos situavam-se antagonicamente nas ações de proteção do patrimônio, o que tornava a iniciativa local no mínimo peculiar.
Por outro lado, na realidade local, ainda predominava o pensamento tradicional, voltado à renovação e ignorando a preservação, apesar do discurso híbrido. Em 3 de novembro de 1966 foi realizado o Seminário “O centro da cidade brasileira” promovido pela Companhia de Urbanização de Curitiba — Urbs. O objetivo era “debater as características que assume, em nosso país, o ‘core’ dos núcleos urbanos”. Para os organizadores, o centro urbano representava a vitalidade de uma cidade, irradiando uma força polarizadora que manteria a coesão do organismo social. Na sequência do evento, foi promulgado o Decreto 2391, de 31 de dezembro de 1966, que estabeleceu o “projeto de Renovação da rua Quinze”, o qual incorporou os objetivos do artigo 48 do Plano Diretor de 1966, ou seja, 1. restabelecer as edificações em seus usos originais ou dar-lhes destinação adequada e 2. recuperar as edificações decadentes, ou erradicá-las, quando evidenciada a inconveniência da recuperação. A medida foi justificada pela importância da avenida Luiz Xavier e da rua XV de Novembro como “ponto de concentração de atividades de interação social”. Entre as ações previstas constavam a “remodelação de fachadas”, com pintura e restauração (43).
Nos anos seguintes, um grupo político contrário ao Plano Diretor nos moldes estabelecidos assumiu a prefeitura e nada foi feito. Em 1971, tal situação foi revertida com a posse, como prefeito, do engenheiro, arquiteto e planejador urbano Jaime Lerner, que definiu como um dos objetivos de sua gestão a implementação do Plano Diretor. Dentre as ações realizadas, algumas repercutiriam diretamente no centro principal da cidade.
Neste sentido, houve a criação do setor histórico, atendendo a Política de Preservação e Revitalização de Setores Históricos-Tradicionais estabelecida no Plano Diretor de 1966 (44); as obras de implantação do Sistema Viário Básico, com a hierarquização de vias; e a definição e implementação do Anel Central de Tráfego Lento e das vias estruturais Norte e Sul.
Em 1972, a rua XV de Novembro foi transformada em área de uso exclusivo de pedestre, conforme estabelecia o Plano Diretor de 1966. Além do fechamento do leito da rua, a área foi arborizada e ganhou um mobiliário urbano exclusivo — bancos, luminárias e quiosques — desenhados pelo arquiteto Abraão Assad. Uma matéria publicada em 24 de maio afirmou que “o projeto da nova rua XV tem origem num princípio urbanístico moderno segundo o qual o homem deve ter uso pleno do espaço urbano” (45). Ao implantar o calçadão, houve a criação de alguns dos “símbolos citadinos” clamados desde o Plano Preliminar de Urbanismo.
A nova paisagem foi marcada pelos desenhos dos símbolos identitários do Paraná nas calçadas de pedra a portuguesa, o petit pavê; pelos postes modernos recriando a composição das araucárias; pelas bancas de revista em estrutura metálica; e pelos espaços de convívio cobertos com cúpulas de acrílico em tom roxo; além de floreiras em madeira, distribuídas em todo o trecho. A composição, que transformava a paisagem urbana no trecho que envolvia a praça Osório, a avenida Luís Xavier, a rua XV de Novembro, até a praça Santos Andrade, foi tombada pelo Estado em 1974 (46).
No processo de tombamento constam três objetivos: a preservação de uma obra pioneira de arquitetura e urbanismo, o calçadão, com as estruturas de animação; a despoluição visual de cartazes e placas nas edificações do trecho; e o controle de mudanças bruscas em fachadas e prédios novos que colidissem violentamente com o conjunto (47).
Há referência específica de proteção à experiência pioneira no Brasil de transformação da via em calçadão e da inserção de mobiliário urbano exclusivo, assim como a intenção de impedir alterações na referida nova paisagem, que mesclava o recém implantado calçadão, um significativo número de edifícios de múltiplos andares, erguidos após 1940, e muitas edificações datadas entre 1890 e 1940 (48).
Considerações finais
As mudanças que ocorreram em Curitiba nos anos de 1960 forneceram as bases para, nas duas décadas seguintes, a cidade assumir uma posição de destaque no planejamento urbano e servir de palco para uma sequência de inovações, que a tornaram referência e modelo urbano.
O texto revelou que o processo de mudanças articulou ações políticas; conhecimento dos problemas urbanos locais; e, principalmente, uma aproximação com os debates que vinham ocorrendo em países da Europa e Estados Unidos no período, tornando-a, mais que referência de planejamento, o resultado material de uma experiência empírica, que trouxe resultados confiáveis e duradouros.
As ações políticas foram desencadeadas por Ivo Arzua no início dos anos 1960, diante da constatação do estado de “degeneração urbana” do centro. Tais ações levaram à elaboração do Plano Preliminar de Urbanismo, em 1965, que foi efetivamente implementado no início da década de 1970, com a gestão do arquiteto Jaime Lerner como prefeito.
O conhecimento da cidade foi revelado no diagnóstico realizado pelo arquiteto Jorge Wilheim, no Plano Preliminar de Urbanismo, cujas propostas articularam o desenho da cidade moderna com demandas e referências histórico-espaciais, mas também na solução final adotada pela equipe responsável pela execução do Plano Diretor de Curitiba, tendo Lerner como principal articulador.
O domínio das teorias estava presente nos discursos dos governantes, nas propostas dos arquitetos Wilheim e Lerner e nas ações que levaram ao tombamento da rua XV, que, mais que o interesse de preservar a antiga rua das Flores, com suas edificações históricas, buscava consolidar a imagem da cidade moderna, que havia sido criada, tendo a rua XV como cartão postal do processo. A imagem da cidade moderna propunha a preservação de um “estilo de vida”.
Neste sentido, o conjunto urbano mais antigo atuava como cenário na paisagem, dando destaque aos equipamentos urbanos recém-criados. Unindo experiência acumulada, capacidade de realização e visão de oportunidade, a equipe liderada pelo prefeito e arquiteto Jaime Lerner, deu sequência às ideias modernas de Jorge Wilheim, forjando num período muito curto uma nova Curitiba, que se transformou numa cidade linear, moderna, apoiada no traçado dos antigos caminhos históricos, revelando um modo especial de ser moderna. No conjunto das mudanças promovidas, a nova paisagem da rua XV e imediações foi a parte mais visível.
O tombamento garantiu a preservação do calçadão e, por algum tempo, das coberturas e luminárias acrílicas modernas, mas o trecho foi, pouco a pouco, adquirindo uma feição histórica, com a substituição destas últimas por postes republicanos, que apagaram a curiosa iniciativa anterior.
notas
1
Assim ficou conhecida a equipe de arquitetos responsável pela organização do Ciam 10.
2
Documento produzido após o Ciam 10 pelos Smithson (1974), a partir de versão anterior intitulada Habitat, elaborada pelos arquitetos do Team 10. RAMOS, Fernando Vázquez. Team 10: Manifesto de Doorn. Revista Arq.Urb, n. 9, 1º sem. 2013 <https://bit.ly/3Sj2Grt>.
3
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
4
MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno: arquitetura da segunda metade do século 20. Barcelona, Gustavo Gilli, 2001, p. 56.
5
FRAMPTON, Kenneth. Op. cit.
6
Josep Luis Sert, Fernand Lèger e Siegfried Giedion.
7
GIEDION, Siegfried. Architecture you and me: the diary of a development. Cambridge, Harvard University Press, 1958, p. 49.
8
Ainda havia grupos vinculado à racionalidade construtiva e produção de assentamentos. MUMFORD, Eric. El discurso del Ciam sobre el urbanismo, 1928–1960. Revista Bitácora Urbano Territorial, vol. 11, n. 1, Bogotá, Universidad Nacional de Colombia, ene./dec. 2007 <https://bit.ly/3DTcDHH>.
9
No convite para o Ciam 8, o grupo relacionava o conceito do coração da cidade com as quatro funções básicas do urbanismo da Carta de Atenas — habitação, trabalho, transporte e moradia — com os cinco níveis-escala metropolitana — vila ou grupo de vivendas primárias; pequeno centro de mercado ou bairro; povoado ou setor da cidade; cidade; e metrópole com milhões de habitantes, cada uma das quais teria seu próprio centro.
10
MUMFORD, Eric. Op. cit., p. 112.
11
ROGERS, Ernesto Nathan; SERT, Jose Luis; TYRWHITT, Jacqueline [1952]. Apud MUMFORD, Eric. Op. cit., p. 112
12
FRAMPTON, Kenneth. Op. cit., p. 330.
13
Idem, ibidem.
14
SMITHSON, Alison; SMITHSON, Peter. Apud DAVI, Laura Mardini. Alison e Peter Smithson, uma arquitetura da realidade. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2009, p. 28.
15
FRAMPTON, Kenneth. Op. cit.
16
MONTANER, Josep Maria. Op. cit.
17
ALVES, Gloria. O papel do patrimônio nas políticas de revalorização do espaço urbano. Coloquio Internacional de Geocrítica, 10. Diez años de cambios en el mundo, en la geografía y en las ciencias sociales, 1999–2008, Barcelona, Universidad de Barcelona, 26–30 mai. 2008, p. 5 <https://bit.ly/3ffpM3E>.
18
SANTOS, Maria da Graça Rodrigues. Entre a preguiça e o progresso: descaminhos da arquitetura contemporânea de Salvador (1968–1986). Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2002, p. 162–163.
19
PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Plano Preliminar de Urbanismo de Curitiba. Sociedade Serete de Estudos e Projetos Ltda. e o escritório de arquitetura Jorge Wilheim — Arquitetos Associados. Curitiba, Ippuc, 1965, p. 51.
20
CASTRO, Elizabeth Amorim de; POSSE, Zulmara Clara Sauner. Morar nas alturas! A verticalização de Curitiba entre 1930 e 1960. Curitiba, Edição das Autoras, 2017.
21
Trânsito: problema da capital. Jornal Diário da Tarde, Curitiba, 28 nov. 1961, p. 1.
22
Alargamento da rua Quinze. Jornal Diário da Tarde, Curitiba, 18 jun. 1964, p. 5.
23
Idem, ibidem.
24
BACK, Sylvio. Curitiba do avesso. Os subterrâneos do silêncio. Revista Panorama, ano 12, n. 117, Curitiba, fev. 1962.
25
INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE CURITIBA. Memória da Curitiba Urbana. Depoimento de Ivo Arzua. Curitiba, Ippuc, nov. 1989, p. 3.
26
Companhia de Desenvolvimento do Paraná — Codepar, agência de fomento do Estado, criada em 1962, que administrava o Fundo de Desenvolvimento Econômico — FDE. Entre as áreas de atuação constavam a industrialização paranaense e a introdução do Planejamento Integrado.
27
DUDEQUE, Irã Taborda. Nenhum dia sem uma linha. Uma história do urbanismo em Curitiba. São Paulo, Nobel, 2011.
28
GARCEZ. Luiz Armando. Curitiba Evolução Urbana. Rio de Janeiro, 2006. p. 95–96.
29
PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Plano Preliminar de Urbanismo de Curitiba. Sociedade Serete de Estudos e Projetos Ltda. e o escritório de arquitetura Jorge Wilheim — Arquitetos Associados (op. cit.), p. XIII e 128–129.
30
Idem, ibidem, p. 162.
31
PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Decreto n. 1000/1965. Curitiba, Câmara Municipal de Curitiba, 1965; PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Decreto n. 1001/1965. Curitiba, Câmara Municipal de Curitiba, 1965.
32
PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Decreto n. 1150/1965. Curitiba, Câmara Municipal de Curitiba, 1965.
33
PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Decreto n. 1144/1965. Curitiba, Câmara Municipal de Curitiba, 1965.
34
PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Lei n. 2660/1965. Curitiba, Câmara Municipal de Curitiba, 1965.
35
INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE CURITIBA. Plano Diretor de Curitiba — 1966 (Processo n. 91/1966 e Projeto de Lei n. 72/1966). Curitiba, Ippuc, p. 22.
36
Idem, ibidem, p. 45; 47.
37
PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Lei n. 2828/1966. Curitiba, Câmara Municipal de Curitiba, 1966.
38
PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Lei n. 2828/1966 (op. cit.), art. n. 25.
39
Idem, ibidem.
40
Carta de Lisboa sobre a reabilitação urbana integrada. 1º Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação Urbana, Lisboa, 21–27 out. 1995 <https://bit.ly/3LFCRiU>.
41
CONSELHO INTERNACIONAL DE MONUMENTOS E SÍTIOS. Carta da Burra. Paris, Icomos, 1980 <https://bit.ly/2U35Ssh>.
42
No seu conceito de “diradamento”, o arquiteto propõe a perda de unidades antigas, para garantir a preservação de um sítio no sentido mais amplo e a integração dos centros históricos na dinâmica da cidade contemporânea. KUHL, Beatriz. Gustavo Giovannoni, textos escolhidos. Cotia, Ateliê Editorial, 2013.
43
PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Lei n. 2828/1966 (op. cit.).
44
Ancorado no estudo realizado anteriormente, foi promulgado o Decreto n. 1160/1971, que definiu uma área de proteção do patrimônio cultural.
45
Rua das Flores. Dia 3. Jornal Diário do Paraná, Curitiba, 24 mai. 1972, p. 8.
46
PREFEITURA MUNICIPAL DO PARANÁ. Processo de Tombamento n. 45/1974.
47
Idem, ibidem, p. 60.
48
Idem, ibidem.
sobre as autoras
Maria da Graça Rodrigues Santos é arquiteta e urbanista e doutora em Estruturas Ambientais Urbanas pela FAU USP, com estágio de pós-doutorado pelo Ppggeo UFPR e professora do Parc UTFPR. Pesquisadora do ambiente urbano, com ênfase em preservação e desenvolvimento urbano, legislação urbana, teoria e história da arquitetura e urbanismo e teoria da preservação. Coautora de Da sociedade moderna à pós-moderna no Brasil.
Elizabeth Amorim de Castro é arquiteta e urbanista e doutora em História pela UFPR. Professora adjunta do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPR e do curso de especialização Patrimônio, Arquitetura, Cultura da UTFPR. Pesquisa a história da arquitetura e urbanismo, com ênfase nos temas: patrimônio cultural e urbanização/arquitetura de Curitiba. Autora de Morar nas Alturas! A verticalização de Curitiba entre 1930 e 1960, entre outros.