“Targ, o vigia do Grande Planetário, sentiu uma alegria súbita, como a que iluminava a vida dos homens nas divinas eras da Água. As plantas continuavam belas! Elas levavam Targ de volta ao início dos tempos, quando os oceanos cobriam três quartos do planeta, quando o homem vivia rodeado de fontes, rios, riachos, lagos e pântanos. […] A vida fervilhava nas profundezas dos mares. […] Um futuro imenso se abria diante dos seres vivos; o homem mal pressentia a existência de longínquos descendentes que tremeriam à espera do fim do mundo.
A impotência do homem concentrava-se em sua própria estrutura: nascido com a água, desaparecia junto com ela”.
J. H. Rosny Aîné, A morte da Terra (1)
No ano de 1723, a água finalmente jorrou no primeiro chafariz da cidade do Rio de Janeiro, construído em frente ao Convento de Santo Antônio. Alimentado pelo aqueduto que captou as águas do Rio Carioca, esse sistema de abastecimento ficou pronto depois de um esforço iniciado ainda no século anterior (2). Com sua nascente nas encostas do Corcovado e desaguando no mar originalmente em dois pontos, na Glória e no Flamengo (3), o Rio Carioca se confunde com a própria história da cidade. Já o aqueduto, essa velha criação da engenharia romana, levou a água ao coração do espaço urbano. A importância de ambos tem sido frequentemente ressaltada pela historiografia. Ocorre, contudo, que embora seja indiscutível a relevância desse sistema de abastecimento, essa certamente não foi a única via de acesso à água a que os moradores daqueles tempos puderam recorrer.
Várias possiblidades de contato com o líquido ainda permeavam o espaço que aos poucos ia se tornando urbanizado, como, por exemplo, fontes naturais (nascentes ou olhos d'água), lagoas, riachos, pequenos córregos e até as chamadas águas vertentes (4), que desciam das encostas depois das chuvas. Além disso, outros meios de abastecimento, como os poços, também tiveram uma presença marcante no Rio de Janeiro setecentista e mesmo ao longo do século 19. Foi para o estudo dessas muitas formas de contato do morador com a água — captada para usos domésticos — que essa investigação se voltou.
Contemporaneamente, os estudos de história ambiental urbana têm reafirmado a centralidade do tema da água na história da cidade (5). E o longo processo de domesticação dos ecossistemas fluviais vem sendo investigado. No Rio de Janeiro, como em tantas cidades, a canalização e a retificação dos cursos d'água acabaram por gerar os tristes rios enterrados "sob o asfalto, em sarcófagos de cimento" (6), tão presentes até os dias de hoje, embora escondidos dos olhos de todos. Ao mesmo tempo, os esforços seculares para a captação de água, nas bordas da área urbana e nas bacias hidrográficas vizinhas, a fim de garantir o abastecimento da população, também têm recebido a atenção de geógrafos, urbanistas e historiadores. O objetivo aqui, no entanto, é olhar para a existência de algumas formas menores e paralelas de obtenção de água para uso doméstico que, convivendo lado a lado com os sistemas de abastecimento, não deixaram de ter a sua importância.
Desde tempos remotos, sobretudo em áreas mais áridas, os suprimentos de água do subsolo têm sido fundamentais. Cavar poços é uma prática imemorial, muito anterior à urbanização e, segundo alguns arqueólogos, talvez seja até mesmo mais antiga do que o Homo sapiens (7). Arquitetos da antiguidade e do renascimento, como Vitrúvio e Alberti, ensinaram em suas obras elaboradas técnicas para a construção de poços. Em seu tratado De Architectura (século 1 a.C.), Vitrúvio, observando que a água "é sumamente necessária para a vida, para as comodidades e para o uso cotidiano", diz que "estará mais acessível se houver mananciais abertos e fluentes", mas "se elas não jorrarem, procurar-se-ão os principais veios subterrâneos e recolher-se-ão". E então passa a ensinar uma das técnicas que prescreve: "sondar-se-á, deitando-nos com o maxilar apoiado no chão […] nos sítios onde se quer encontrar a água […]. Naqueles lugares onde, então, se observarem evaporações ondulantes elevando-se nos ares, aí se escavará" (8).
Referindo-se à América Portuguesa, Sérgio Buarque de Holanda observou, em Caminhos e fronteiras (1957), que "já nos primeiros tempos da colonização europeia, a presença de boas águas determinou muitas vezes a escolha de sítios para a instalação de povoados" (9). Ressaltando a habilidade dos "habitantes dos sertões" na busca pela água — donos de uma "extraordinária capacidade de observação da natureza"– o autor mencionou as práticas dos povos originários dizendo que para abrir um poço costumam "realizar previamente cuidadosa sondagem, servindo-se de um pedaço de pau que possa penetrar profundamente o solo. Se o pedaço de pau sair úmido, é sinal de que a perfuração dará o resultado desejado" (10).
Imagina-se, assim, o poço como esse saber construtivo longamente experimentado; e que chegou aos nossos dias. E ele não esteve ausente no Rio de Janeiro dos primeiros séculos da colonização, como mostram algumas fontes documentais. Sendo este um núcleo urbano à beira mar, é provável que uma parcela dos poços abertos na cidade acabasse por obter água salobra, imprópria para beber (11); útil, no entanto, para outros usos domésticos. Mas há também relatos de casos em que se encontrava água potável.
O jesuíta José de Anchieta narrou, em cartas, os esforços despendidos pelos portugueses em 1565 para se estabelecerem naquele que seria o primeiro núcleo da cidade do Rio de Janeiro, o Morro Cara de Cão. Segundo o seu relato, no último dia de fevereiro ou no primeiro de março, animados com três navios com víveres que haviam chegado, os portugueses, com Estácio de Sá à frente, dedicaram-se a cortar madeira e recolher pedras para a edificação de uma cerca de proteção. As ações seguintes foram descritas assim: "e porque naquele lugar não havia mais que uma légua de ruim água, e esta era pouca, o dia que entramos choveu tanto que se encheu, e rebentaram fontes em algumas partes, de que bebeu todo o exército em abundância, e durou até que se achou água boa num poço, que logo se fez". E Anchieta segue: "além disto se achou uma fontezinha num penedo d'água muito boa, com que todos se alegraram muito, e se vão firmando mais na vontade que traziam de levar aquela obra ao cabo, vendo-se tão particularmente favorecidos da Divina Providência" (12).
Dois anos mais tarde, como se sabe, os portugueses se transferiram para o Morro do Descanso, ou do Castelo, como passaria a se chamar. E há várias referências a um dito Poço do Porteiro, localizado no sopé do morro, em frente à Ajuda, e que teria sido aberto por Mestre Vasco, nomeado porteiro e pregoeiro da Cidade em 1568 (13). Já na outra descida do Castelo há notícias de que existiu o Poço da Misericórdia. Além disso, também está registrado na historiografia o Pocinho da Glória (14). E o engenheiro Rosauro Mariano da Silva, em seu artigo A luta pela água (1965), observa que muitos outros poços "abertos nos quintais das casas, para serventia particular, dessedentaram os cariocas". Ele menciona ainda as cisternas, usadas para armazenar a água das chuvas recolhida na calha dos telhados, lembrando que "uma das mais antigas, remontando ao começo do século 17, encontra-se no Convento de Santo Antônio" (15).
As extensas pesquisas do geógrafo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ, Maurício Abreu, sobre a história do Rio de Janeiro deram origem ao Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara, num levantamento que se estendeu até os primeiros anos do século 19. As escrituras inventariadas trazem informações sobre a existência de diversos recursos hídricos nessas propriedades. É comum a menção a poços, como no documento lavrado em 17 de maio de 1806, com descrição das benfeitorias de uma chácara situada entre os caminhos para Botafogo e Flamengo, em que são vendidos "casa de vivenda coberta de telhas", um "poço de pedra e cal" e um arvoredo (16). Além de poços, outros elementos também surgem, como nascentes e braços de rio. Na escritura de uma chácara no Catumbi, por exemplo, de 5 de dezembro de 1792, há referência a casa de telha e nascente de água (17). Outra propriedade, na mesma região, vendida em 25 de abril de 1804, menciona "casa de vivenda de pedra e cal", arvoredo, cerca e "fonte de água nativa com seu tanque" (18). Também é possível citar uma "fonte de água com seus tanques de pedra e cal e cobertos de telha", listada em escritura de 3 de setembro de 1777 (19). Alguns documentos fazem referência à existência de sulcos abertos para a passagem de água, no geral, derivada de fonte, os chamados "regos", como ocorre na escritura da chácara situada no caminho da Glória para o Catete, de 24 de abril de 1804, em que se diz que nas terras do fundo corre "um rego de água" (20). Ou o caso do tanoeiro José Pereira da Costa, e de sua mulher, que em 9 de janeiro de 1810 venderam uma chácara no Engenho Velho, com "casa de vivenda, plantações e arvoredo, com a posse de um rego de água que lhe passa pelo meio" (21). Já dona Ana Maria de Jesus, e um sobrinho, firmaram a venda de um terreno, na freguesia do Engenho Velho, no caminho para o Andaraí, em 10 de abril 1810. Na escritura, está informada a necessidade de permitir aos vizinhos que se sirvam livremente da água de um braço de rio no limite do terreno (22).
O artista viajante Thomas Ender (1793–1875), embora tenha permanecido no Brasil por curtos dez meses, entre 1817 e 1818, deixou uma vasta produção iconográfica sobre a cidade do Rio de Janeiro e seus arredores. Ender dedicou algumas de suas aquarelas à região do Engenho Velho (atual Tijuca). Nelas, de certa forma, inseriu o tema da água, desenhando, por exemplo, o rio Comprido, introduzindo assim um elemento aquático na paisagem tropical que desejava compor. Também pintou uma aquarela em que parece estar retratada uma fonte, com um tanque de pedra, em cantaria, em local não identificado. Marcam presença em suas composições rios, ou pequenos riachos, e mais de um chafariz ou fonte. E ainda há aquelas que têm como tema central vasilhas para água e carregadores (23).
Voltando às chácaras das escrituras inventariadas por Maurício Abreu, essas propriedades se situavam nos arrabaldes, como eram chamadas as zonas afastadas do núcleo urbano mais antigo. E os poços e tanques mencionados provavelmente integravam os quintais, esses espaços conformados para servirem de apoio ao trabalho doméstico. É possível imaginar que, também na Guanabara, a configuração dessas chácaras estivesse inserida na tradição dos arranjos mais comuns para essas áreas externas — em que muitas vezes se situava a própria cozinha — e que eram compostas de tanque, cisterna, curral, pomar etc., como as definiu o arquiteto Carlos Lemos (24).
Mas as fontes documentais também apontam para a existência de poços em residências edificadas nas áreas centrais da cidade; e até mesmo em pátios internos. Jean-Baptiste Debret, em sua Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834–1839), publicou duas pranchas com plantas arquitetônicas, de casas pequenas e grandes, dentro e fora da área urbana. No texto explicativo, escreveu: "Apresento sob número um a fachada de uma série de pequenas casas térreas e contíguas que constituem a quase totalidade das ruas e praças do Rio de Janeiro". Uma planta baixa do primeiro pavimento mostra um pequeno pátio interno, com um poço, ambos assinalados na legenda: "f — Área, poço". Na planta do segundo pavimento, lê-se: "telhado dos cômodos que cercam a área onde se encontra o poço" (25).
Novos dados sobre recursos hídricos no espaço urbano têm sido fornecidos pela arqueologia. Pesquisas realizadas no coração do centro antigo do Rio de Janeiro, na altura da rua da Assembleia, por exemplo, "trouxeram à tona um poço d'água em alvenaria de pedra" (26), construído provavelmente em finais do século 17. Durante as escavações no terreno também foi encontrado um barril de carvalho, semelhante aos que aparecem nas fontes iconográficas do século 19 e que eram usados para o transporte de água (27).
Outras possibilidades de pesquisa são oferecidas pela imprensa. As seções de compra e venda de imóveis, nos jornais que circularam no Rio de Janeiro oitocentista, trazem informações sobre a presença de alguns recursos hídricos nas moradias (28). Essa documentação parece apontar para a relevância desses elementos na valorização dos imóveis, uma vez que poços, fontes ou tanques surgem listados entre os poucos itens que podiam figurar nas rápidas descrições que os anúncios permitiam.
Um levantamento das menções a poços, para o início do século 19, na Gazeta do Rio de Janeiro, o primeiro jornal a circular na cidade, fundado em 1808, pode fornecer alguns exemplos. Em março de 1809, a Gazeta já anunciava, na rua de S. Salvador, na cidade nova, "uma morada de casas térreas, feitas há pouco, forradas, e assoalhadas […] com poço dentro" (29). Folheando o jornal de 3 de agosto de 1811, o leitor ficava informado: "quem quiser comprar uma morada de casas térreas novas, e com muitos cômodos, bem construídas na rua dos Inválidos, com seu quintal e poço com água; dirija-se à rua do Rosário" (30). No exemplar de 9 de maio de 1812, surge à venda "uma morada de casas de sobrado com muitos cômodos, quintal, um bom poço de água clara, sitas na rua da Prainha, defronte do beco dos Cachorros n. 45" (31). Em janeiro de 1813, lia-se: "quem quiser comprar três moradas de casa acabadas de novo, sitas na rua dos Arcos a sair a do Lavradio com um bom quintal com água de beber e poço para lavar, fale com Custódio da Costa Leite, morador de uma das ditas" (32). Alguns proprietários faziam referência à qualidade da água, como no "poço de água clara" já mencionado. Assim, uma propriedade urbana, com poço e tanque de cantaria, era anunciada com "água muito boa" (33). Já uma chácara próxima à Pedreira da Glória possuía, segundo o jornal, poço com "água deliciosa" (34). Ao longo dos anos seguintes, os anúncios se repetem.
À literatura não escapou a costumeira presença dos poços no cotidiano da cidade. Machado de Assis, em Dom Casmurro (1899), descreveu assim Capitu: "as mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula" (35).
As já mencionadas pesquisas arqueológicas na rua da Assembleia localizaram, no entorno do poço colonial, "uma densa área de dejetos descartados no local". Segundo a arqueóloga Tânia Andrade Lima, "considerando ser a coleta de lixo e a apanha de água uma atribuição de escravos urbanos, o local foi interpretado como um ponto de encontro de cativos envolvidos nessas tarefas" (36). Em torno de um poço estabelecia-se assim uma dinâmica de sociabilidade da diáspora africana. Já a historiadora Jorun Poettering, estudando o sistema de abastecimento de água no Rio de Janeiro colonial, apontou para a existência de um campo de negociações entre o espaço edificado, concebido pelas elites administrativas, e o espaço vivido, dos escravizados que povoavam os chafarizes. Essa tensão teria ajudado a configurar a identidade física e cultural da infraestrutura de abastecimento erguida na cidade (37).
Antes de o sistema de água encanada (a pena d'água) começar lentamente a alcançar as residências, a partir de meados do século 19 (38), o abastecimento era todo baseado nos "aguadeiros". Há inúmeras referências, inclusive na iconografia, de pessoas escravizadas carregando pesados tonéis de madeira ou potes de barro para o transporte de água, recolhida nos chafarizes e em alguns poços ou fontes. E, mais tarde, no sistema de bicas implantado na cidade (39).
Tomando-se o modo de vida das elites, e mesmo das camadas intermediárias, é possível afirmar que o abastecimento, como os demais serviços necessários para o funcionamento da vida cotidiana, tanto nas chácaras como nas residências urbanas, era de tal forma baseado no cativeiro que uma pessoa escravizada podia ser listada entre as benfeitorias de uma propriedade. E mais uma vez o Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara pode fornecer um exemplo. Uma escritura de 26 de março de 1783 descreve as benfeitorias de uma chácara, situada na rua de Matacavalos (atual rua do Riachuelo), nos seguintes termos: "casa de vivenda coberta de telhas, com portão, um poço, várias árvores de espinho e de fruto, e uma escrava" (40).
Também há meios de perceber como essas atividades foram representadas. Além das aquarelas de Thomas Ender, outro exemplo pode ser fornecido aqui. A partir de originais aquarelados do artista Edward Hildebrandt, os litógrafos Ludwig e Briggs produziram, entre 1846 e 1849, trinta estampas para uma publicação a que deram o título de Brasilian souvernir: a Selection of the most peculiar costumes of the Brazils. O material não se afasta dos típicos álbuns de "tipos e costumes", produzidos para atender ao gosto do público europeu pelo "pitoresco". Há duas estampas dedicadas ao tema da água, cujos títulos são: "Pretos d'agua" e "Carroça d'agua" (41).
Antes de 1842, foi criado na cidade um serviço especial de carroças com pipas, para a venda de água de porta em porta, em que trabalhavam homens livres, mas também, em menor número, escravizados e libertos. Trinta anos mais tarde, em 1872, segundo os estudos de Noronha Santos, havia mais de cem desses veículos em circulação. Com a expansão da rede canalizada, eles se tornaram obsoletos. Mas alguns ainda resistiram, como no caso das pipas da popular "água do vintém”, extraída de uma nascente, numa antiga chácara na Tijuca, a que se atribuía poderes medicinais (42). Além disso, algumas fontes de águas férreas, como a Bica da Rainha, no Cosme Velho, foram longamente utilizadas pela população. O Guia do Viajante no Rio de Janeiro, de Alfredo do Vale Cabral, editado em 1882, informa a existência de oito dessas fontes. Segundo o Guia, a que há na rua do Riachuelo n. 35, cuja nascente acha-se na encosta do morro de Santa Teresa, é particular; "cada copo d'água custa quarenta reis" e "passa por excelente" (43).
Para além da simples presença de fontes e poços, um aspecto a ser observado é que desde o período colonial sempre houve interesse, por parte da administração, na gestão da água. Equipamentos urbanos como os chafarizes, e mesmo o aqueduto, serviam de símbolos visíveis do poder da Coroa. Na placa até hoje afixada nos Arcos da Carioca é possível ler: "el Rei d. João V […] mandou fazer essa obra pelo Ilmo. e Exmo. sr. Gomes Freire de Andrade […] Governador e Capitão General das Capitanias […] do Rio de Janeiro, e Minas Gerais. Ano 1750" (44). Já no chafariz do largo do Paço há uma inscrição em latim que, traduzida, diz: "enquanto Phebo com o ignífero [de fogo] carro os povos queima, Vasconcellos [o vice-rei], expele da cidade a sede" (45).
O interesse pelo tema não foi menor durante o império. As sucessivas administrações municipais estiveram atentas, de uma forma ou de outra, às demandas por abastecimento de água. Enquanto grandes projetos de captação expandiam-se pelas várias vertentes do Maciço da Tijuca, e por regiões ainda mais afastadas, os poços e as nascentes seguiam ocupando um lugar secundário, mas importante.
Em 1817, o intendente geral da polícia, Paulo Fernandes Viana, foi o responsável pela construção de um novo chafariz na rua de Matacavalos, abastecido com água trazida de uma nascente na encosta do morro de Santa Teresa. No século anterior, em 1772, por ordens do marquês de Lavradio, e às custas do Senado da Câmara, na mesma região tinha sido erguida a fonte do Menino Deus, com água canalizada de uma mina que brotava no terreno de uma chácara. Na estrada Velha da Tijuca, segundo o Guia do viajante (1882) uma fonte pública tinha a seguinte inscrição: "Fonte de Água Férrea/Descoberta pelo Imperador/ Pedro 1º/ em 24 de dezembro de 1823" (46).
Também houve algumas tentativas, por parte do poder público, de dar apoio mais sistemático aos poços, embora não se saiba se essas iniciativas efetivamente alcançaram algum resultado. Em 1870, o engenheiro civil Charles Bernard recebeu, com parecer favorável da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, o "privilégio por quatro anos, para o seu sistema de perfuração de poços de água límpida e inodora" (47).
Em meados de 1833, quem abria o Diario do Rio de Janeiro podia ler várias mensagens com um apelo aos moradores que tivessem fontes e poços em suas casas ou chácaras para que os franqueassem ao público, por filantropia, enquanto durasse a seca que flagelava a todos (48). Em momentos de escassez no abastecimento, como esse de 1833, nada incomuns na cidade, o tema dos poços e nascentes sempre voltava à baila. E verdadeiros debates travados entre as autoridades e a opinião pública enchiam as páginas dos jornais. O mesmo Diario noticiou, no início de 1868, que o inspetor geral das obras públicas havia escrito ao ministro informando sobre a falta de água na cidade, não só nas ruas alimentadas pelo sistema do Carioca, mas em todas as outras. Segundo o inspetor, a escassez devia-se à estação quente e ao aumento do número de banhos. Seria urgente "proceder-se à compra dos terrenos que encerram as águas aproveitáveis", de maneira a promover a sua captação. E o inspetor, afinal, concluía: "Se não fosse o recurso dos poços e das minas fora da cidade, morrer-se-ia de sede" (49). Já a carta de um leitor, publicada em agosto de 1870, afirmava que havia um meio fácil e barato de se remediar a penúria de água: "À rua de S. Clemente existem muitas chácaras do lado direito com nascentes", assim como em várias outras áreas da cidade, basta que os ministros peçam aos proprietários que "franqueiem suas águas ao povo" (50); a sugestão ecoava, assim, a solicitação de décadas anteriores.
Em meio a acalorados debates, em agosto de 1870, o ministro das Obras Públicas autorizou o inspetor geral a recorrer "a quaisquer meios provisórios, que entender profícuos ao fornecimento d'água à população, como abertura de poços nos locais mais apropriados", enquanto as obras de abastecimento de grande vulto não estivessem concluídas (51). No dia seguinte, um leitor escreveu indignado contra a sugestão do ministro: "esta cidade já teve poços em larga escala; então reinava como que uma epidemia de inchações das pernas e outras partes inferiores do corpo". Em sua opinião, a água de poço era a mais prejudicial para a saúde que existia, sendo uma vergonha que engenheiros do ministério, no jogo de cabra-cega em que se acham, proponham que a capital do Império deixe de seguir em direção ao progresso, para, ao contrário, retornar ao triste e pernicioso tempo dos poços (52).
Afinal, esses modos tradicionais de acesso à água serão deixados para trás, como queria o leitor do Diario. Paralelamente ao fim do trabalho escravo, um dos pilares do antigo sistema de abastecimento, a cidade ingressava na era da rede domiciliar. Esta será, no entanto, sempre distribuída de forma socialmente desigual, não alcançando as moradias populares, onde os afrodescendentes irão viver, majoritariamente, no pós-abolição. Ao mesmo tempo, o Rio de Janeiro irá gerenciar os seus recursos hídricos no sentido da implantação de uma matriz de abastecimento altamente centralizada, o que chegará a seu ponto mais alto no século 20, com o sistema Guandu (53). É verdade que os poços (54), esses velhos conhecidos, ainda não desapareceram totalmente da vida urbana, e seguem como último recurso de populações vulnerabilizadas, mas eles sofrem atualmente com a severa contaminação dos lençóis freáticos.
Hoje, quando autores contemporâneos discutem temas como poluição, desigualdade de acesso à água, exclusão ou insegurança hídrica, talvez seja útil olhar para a história de cisternas, nascentes, poços e outros sistemas descentralizados do passado.
notas
1
J. H. Rosny Aîné [1910]. A morte da Terra. Porto Alegre, Piu, 2023.
2
Nas obras iniciais do aqueduto, que ficaram a cargo dos jesuítas, houve utilização de mão-de-obra de vítimas de sistemas de escravização dos povos originários. AZEVEDO, Moreira de. O Rio de Janeiro, sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Rio de Janeiro, Brasiliana, 1969, v. 1, p. 533–534.
3
Em sua foz, o Carioca se encontrava com um pequeno braço chamado de Rio Catete. Ver SCHLEE, Mônica Bahia; CAVALCANTI, Nireu; TAMMINGA, Kenneth. As transformações da paisagem na bacia do rio Carioca. Paisagem Ambiente: ensaios, n. 24, São Paulo, 2007, p. 267-284 <https://bit.ly/3QDMouJ>.
4
"Aguas vertentes; as que caem de monte, ou serra". MORAES SILVA, Antonio de. Diccionario da Lingua Portugueza. Lisboa, Na Typographia Lcerdina, 1813, v. 1, p. 69.
5
Ver CAPILÉ, Bruno. Os muitos rios do Rio de Janeiro: transformações e interações entre dinâmicas sociais e sistemas fluviais na cidade do Rio de Janeiro (1850–1889). Tese de doutorado. Rio de Janeiro, PPGHS UFRJ, 2018. São muito numerosos os estudos sobre a água urbana, para outras cidades; para apenas dois exemplos, ver: SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. Cidade das águas: usos de rios, córregos, bicas e chafarizes em São Paulo (1822-1901). São Paulo, Senac, 2007 e TEDESCHI, Denise M. Ribeiro. Águas urbanas: as formas de apropriação das águas nas Minas, século 18. São Paulo, Alameda, 2014.
6
SEDREZ, Lise; CAPILÉ, Bruno. Os modernos rios cariocas. In KURY, Lorelai et al. Rios do Rio. Fotografias de Marco Terranova. Rio de Janeiro, Andrea Jakobsson, 2020, p. 80.
7
MACHADO, José Luiz Flores. Águas subterrâneas e poços: uma jornada através dos tempos. Porto Alegre, Est Edições, 2008.
8
VITRÚVIO. Tratado de Arquitectura. Tradução do latim, introdução e notas por M. Justino Maciel. Lisboa, IST Press, [2006], VIII, 1, 1.
9
HOLANDA, Sérgio Buarque de [1957]. Caminhos e fronteiras. São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 41.
10
Idem, ibidem, p. 37.
11
Ver ABREU, Maurício. A cidade, a montanha e a floresta. In FRIDMAN, Fania; HAESBAERT, Rogério (org.). Escritos sobre espaço e história. Rio de Janeiro, Garamond, 2014, p. 299–357.
12
Ao padre Diogo Mirão, da Baía, 9 de julho de 1565. In ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos historicos e sermões (1554–1594). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1933, p. 245–256. Ver CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004, p. 23.
13
AZEVEDO, Moreira de. O Rio de Janeiro, sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Rio de Janeiro, Livraria Brasiliana, 1969, v. II, nota CXCIX, p. 575. Pregoeiros e porteiros eram funcionários encarregados de apregoar ao público decisões da Câmara.
14
Ver CORRÊA, Magalhães. Terra carioca: fontes e chafarizes. Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, s.d.
15
SILVA, Rosauro Mariano da. A luta pela água. In Rio de Janeiro em seus quatrocentos anos: formação e desenvolvimento da cidade. Rio de Janeiro, Record, 1965, p. 318.
16
Arquivo Nacional, 1ON, 195, p. 133. Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara — BDEFRG (1635–1770) <https://bit.ly/47h82e5>.
17
Arquivo Nacional, 1ON, 172, p. 10.
18
Arquivo Nacional, 4ON, 120, p. 159v.
19
Arquivo Nacional, 4ON, 94, p. 128v.
20
Arquivo Nacional, 4ON, 120, p. 154v.
21
Arquivo Nacional, 1ON, 202, p. 57.
22
Arquivo Nacional, 1ON, 203, p. 104v.
23
Ver BANDEIRA, Julio. In LAGO, Pedro Corrêa do (org.). Ender e o Brasil: obra completa. Rio de Janeiro, Capivara, 2022. Catálogo raisonné.
24
LEMOS, Carlos A. C. Cozinhas, etc.: um estudo sobre as zonas de serviço da Casa Paulista. São Paulo, Perspectiva, 1976, p. 65.
25
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo, Livraria Martins, 1940, p. 259–260. Edição original Voyage pittoresque et historique au Brésil. 3 tomes. Paris, Firmin Didot Frères, 1834–1839.
26
LIMA, Tânia Andrade. Arqueologia urbana no centro do Rio de Janeiro: o sítio da Assembleia, século 18. In SOARES, Carmen; RIBEIRO, Cilene Gomes (org.). Mesas luso-brasileiras: alimentação, saúde & cultura. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018, p. 295. Sobre a existência do que seria um poço, ou uma cisterna, no pátio do Paço, ver CAMPELLO, Glauco. A restauração do Paço: revendo 240 anos de transformações. Revista do Iphan, n. 20, 1984, p. 139–151 e SILVA, Regina; MORLEY, Edna; SILVA, Catarina. A pesquisa arqueológica: primeiras notas. Revista do Iphan, n. 20, 1984, p. 158–165.
27
LIMA, Tânia Andrade. Op. cit., p. 302.
28
Para a diversidade de arranjos de moradia na cidade, ver SANTOS, Ynaê Lopes. Além da Senzala: arranjos escravos de moradia no Rio de Janeiro (1808–1850). São Paulo, Hucitec, 2010.
29
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 15 mar. 1809, p. 4.
30
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 3 ago. 1811, p. 4. Grifos do original.
31
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9 mai. 1812, p. 4.
32
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 13 jan. 1813, p. 4. Grifos do original.
33
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 11 nov. 1815, p. 4.
34
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 8 out. 1817, p. 4.
35
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. In ASSIS, Machado de. Obra completa. Volume 1. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1979, p. 823.
36
LIMA, Tânia Andrade. Op. cit., p. 295.
37
POETTERING, Jorun. Water and the Struggle for Public Space: Social Negotiations in the usage of Colonial Rio de Janeiro’s Waterworks. Brasiliana — Journal for Brazilian Studies, v. 5, n. 2, July, 2017 <https://bit.ly/47vUICL>. Sobre o aqueduto e a importância dos escravizados no abastecimento, ver também METCALF, Alida C., SMITH, Sean Morey, KENNEDY, S. Wright. ‘A mere gutter!’ The Carioca Aqueduct and water delivery in mid-nineteenth-century. Urban History, v. 49, n. 1, Rio de Janeiro, 2022, p. 61–87 <https://bit.ly/3sbtzG5>.
38
Sobre a implantação do sistema de penas d'água, ver ALMEIDA, Gilmar Machado. A domesticação da água: os acessos e os usos da água na cidade do Rio de Janeiro entre 1850 e 1889. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, PPGH Unirio, 2010.
39
Ver SANTOS, Noronha. Fontes e chafarizes do Rio de Janeiro. Revista do Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional, v. 10, Rio de Janeiro, 1946.
40
Arquivo Nacional, 4ON, 102, p. 166V.
41
BRIGGS, Frederico G.; LUDWIG, Pedro. Brasilian souvernir: a Selection of the most peculiar costumes of the Brazils. Rio de Janeiro, Ludwig and Briggs, s./d.
42
SANTOS, Noronha. Op. cit., p. 93.
43
CABRAL, Alfredo do Valle. Guia do viajante no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Typographia da Gazeta de Notícias, 1882, p. 410–411.
44
CORRÊA, Magalhães. Op. cit., p. 17.
45
CORRÊA, Magalhães. Op. cit., p. 34.
46
CABRAL, Alfredo do Valle. Op. cit., p. 410.
47
Collecção de Leis do Imperio do Brasil de 1870. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1871, p. 416.
48
Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 24 ago. 1833, p. 2; Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 26 ago. 1833, p. 2;
49
Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 18 mar. 1868, p. 2.
50
Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1 ago. 1870, p. 3.
51
Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 3 ago. 1870, p. 2.
52
Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 4 ago. 1870, p. 3.
53
Ver BRITTO, Ana Lucia; QUINTSLR, Suyá. Redes técnicas de abastecimento de água no Rio de Janeiro: história e dependência de trajetória. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 9, n. 18, 2017 <https://bit.ly/3MpxhCH>.
54
Atualmente, são utilizados os chamados poços artesianos.
sobre a autora
Anita Correia Lima de Almeida é doutora em História (UFRJ, 2001) e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), onde atua na graduação e na pós-graduação. Atualmente, vem se dedicando à história ambiental urbana e à história dos desastres.