Territórios são ocupados por sujeitos que se compõem como sociedades assimétricas, distribuídos assimetricamente no território, mas imbricados em espaços de diferentes formas. Essa mistura de sujeitos heterogêneos, muitos deles em situação de minoridade cívica e existencial, provoca ruídos, principalmente se parte dessas pessoas distancia-se dos padrões de comportamentos, vestimentas, configurados segundo normas e regras admitidas por Estado e sociedade. Populações aquém de padrões socialmente aceitos e adotados como parâmetros conforme o território, bairro, rua, tornam-se indesejáveis estranhos aos olhos do Estado e de uma construção ideológica que procura garantir assimetrias. Micro-ações de expulsão são engendradas e a lógica de uma “hostipilidade” (1) (neologismo criado por Derrida para exemplificar agressivas ações de acolhimento do de-fora, daquele que chega sem ser esperado) se instala, muitas vezes de forma sutilmente agressiva. Ações de inibição são produzidas pelo Estado e por uma parcela da sociedade acentuadamente segregadora, por meio de um projeto sociopolítico de exclusão que sempre esteve presente na história brasileira, como escreveu Gilberto Freyre (2) — sobre o pobre, o negro, o sujeito inferior, um estudo sobre a estrutura social do brasileiro, e Sérgio Buarque de Holanda (3). Traços que permanecem como resquícios que perduram desde os tempos da colonização, perpetuada e reproduzida por classes que correspondem a uma parcela extremamente pequena, porém hegemônica, dominante e com poder instalador de lógicas segregacionistas locais e globais.
Por meio de uma reflexão crítica a partir de um recorte de sutis ações de inibição e expulsão no território brasileiro, evidenciam-se lógicas excludentes garantidas por leis, ações e arquiteturas hostis à construção de cidadanias inclusivas.
Em meio aos “estriamentos” e “alisamentos” (4) do território, aos paradoxos das distâncias abissais e antagonismos de espaços contíguos, minorias cívicas compostas por vulneráveis e excluídos, enfrentam diariamente o Estado e sua ciência da polícia. Uma ciência viabilizada como e por “aparelhos de captura” (5) — concebidos como artefatos e dispositivos que vigiam, disciplinam e ordenam os territórios — confrontados pelas máquinas de guerra (6), conceitos inventados e trabalhados por Deleuze e Guattari para pensar criticamente a conflituosa relação entre instituições e sujeitos excluídos, inviabilizados, apagados, desgovernados que, soltos, se tornam aberrantes ambulantes potencialmente capazes de enguiçar geografias.
Os territórios são áreas controladas por poderes estabelecidos, através de leis universais (e impessoais). “Foucault precisa: território é uma noção geográfica, mas, antes de tudo, uma noção jurídico-política (designa o que é controlado por determinado tipo de poder)” (7). Porém, a partir desse poder, o Estado determina quem e como se pode usufruir dos espaços no território, que por vezes são utilizados justamente para diferenciar e explorar os sujeitos. Ao tentar controlar e ordenar todo o território, o Estado estria o espaço. Como em um tabuleiro de xadrez, o Estado articula as peças e denomina um lugar para cada uma delas e, através de regras, intitula como elas se movem, podemos dizer que o território é mensurado em todas suas dimensões; nas palavras de Deleuze e Guattari, “mede-se o espaço a fim de ocupá-lo" (8). Entretanto, brechas são inerentes à realidade dos espaços, por mais configurados, formatados, regrados que sejam, diferente das regras de um tabuleiro. E, é a partir dessas lacunas que os espaços lisos emergem — “ocupa-se o espaço sem medi-lo” (9), como Deleuze e Guattari descrevem —, e nesses pontos cegos surgem áreas à espera. Esses espaços sem definição a priori, as brechas urbanas, os vazios à deriva ou lugares distópicos, são espaços que restam para um determinado grupo, contêm uma ambivalência, pois se encontram entre possibilidades e lugares à margem. Arriscamos dizer que seriam lugares disponíveis a quem quiser se apropriar desses sítios. Em meio aos espaços alisados, territórios desertificados, desprovidos de referência, desterritorializados, as apropriações acontecem, sendo elas expropriadas de outrem, que, por vezes, não é aceito por quem o cria e o esquece. Essa tomada de território cria um estranhamento entre os sujeitos e os opressores para manter o espaço estriado “o Estado consiste em estriar o espaço, contra tudo que o ameaça transbordá-lo” (10). Desta forma, os limites dos territórios ficam definidos, alinhados e monitorados, assim, ordenados de acordo com o que Estado permite dentro das suas demarcações. Uma das formas de demarcar os espaços é através da arquitetura e do design, que são usados para criar espaços hostipitaleiros, em muitos casos mobiliários e procedimentos de exclusão, pensados para garantir as regras de uso e ocupação do espaço tidos como socialmente aceitos, gestos de negação da existência dos socialmente invisibilizados, que reordenam códigos de inclusão e exclusão; a cidade se desafeta pelo desacolhimento ou, talvez, tão grave quanto, por acolhimentos seletivos.
As táticas de arquitetura e design (uma das etimologias de design está ligada a ideia de maquinação, armadilha) hostis são condutas sutis de segregação, através de grades, marquises com luzes acesas à noite ou com jatos preparados para aspergir água ao sinal de ocupações, bancos com divisórias ou sem encosto, muretas e canteiros com pedras ou elementos pontiagudos que não permitem sentar-se ou apoiar-se, blocos de concretos nas calçadas que, entre tantas outras particularidades, trazem um modo de dizer que nesses lugares a permanência é para ser rápida, ou ainda que não é para se utilizar desses espaços.
As finalidades dos espaços, com seus possíveis usos, não são percebidas da mesma forma por todos aqueles que deles se apropriam. As apropriações, sejam elas individuais ou coletivas, reverberam por pouco ou muito tempo para além do local em que ocorrem e produzem uma ruptura na ordem estabelecida a priori pelo Estado. Quando este não está de acordo com as apropriações, a hostilidade é declarada e o indivíduo se torna um hóspede indesejado; os lugares são assim interditados a partir de uma moral pública, garantindo uma maquiagem urbana ou retocando-a, muitas vezes borrada por aqueles que inadvertida ou inconscientemente a interrogam em seus preceitos prontos-para-uso.
“É a sua desagradável aparição no cotidiano que restaura a paz hierárquica perturbada por quem levou a sério o princípio igualitário e teve de ser lembrado ‘do seu lugar’. O ritual é ‘desagradável’, precisamente porque verbaliza o que não deveria ser dito para ser eficaz, quebrando assim o pacto silencioso e cordial de uma sociedade em que cada um efetivamente deve conhecer o ‘seu lugar’” (11).
Tanto Estado como o mundo mercadológico-empresarial, através de seus procedimentos e aparelhos de captura, se valem do poder e, através do espectro da insegurança, disciplinam os fluxos desviantes e as potenciais e eventuais máquinas de guerra produzidas por ele próprio. Criam-se, assim, agentes controladores que vigiam e organizam o território com a deliberação do próprio Estado, que age de forma preventiva, por vezes brutalizada, quando o território ameaça escapa ao seu controle ou se insinua como potencialmente ameaça à ordem pública e às exigências mercadológicas. Estamos no campo de uma união da biopolítica com o exercício de um biopoder expressa como micropolíticas preventivas, atuando diretamente no disciplinamento e expulsão de indesejados indivíduos.
“Essa forma hostil de manter o poder está ligada às máquinas de guerra que se articulam de diversas formas a fim de reorganizar o território. Essa forma de dominação e hostilidade para combater seu adversário, que na verdade são os próprios sujeitos que compõem e habitam as cidades administradas por eles, são uma forma de hostipitalidade que age para manter sempre o domínio sobre quem não seguir as regras do jogo criado e manipulado por eles” (12).
Por meio da vigilância constante, direta e indireta, explícita e velada, o Estado produz e expõe os sujeitos para assim monitorá-los, uma forma de dominação e disciplina, como descreve Foucault, um onipresente “panóptico” (13), um neo-panóptico onde cada um, além de vigiado, torna-se vigilante do outro na atualidade; uma ciência da polícia, do Estado securitário realizados na aversão ao que chega ou se aproxima sem as credenciais que o viabilizariam como cidadão. A chegada sem convite do de-fora, seja na macro ou microescala, torna-se justificativa e leitmotiv para aprimoramento de dispositivos biotecnológicos. Aliado às divisões do território, os microterritórios surgem e ajudam no controle, monitoramento dos espaços pelo Estado por meio desses dispositivos que se espalham pelo meio urbano e pela vida social. Soberanos e assujeitados ocupam o mesmo espaço, em uma hierarquia engendrada pelo Estado, que se faz presente pela ciência da polícia — monitoramento, controle e disciplina de ocupação. Em uma cadeia, sujeitos, dispositivos, agentes estão ao lado e abaixo do Estado, vigilantes e vigiados são controlados por ele, como um mecanismo coletivo de inibição. Mecanismos de normalização social, a ciência da polícia, ou, o que poderíamos denominar por “aparelhos de captura” — que também não deixam de ser máquinas de guerra oficiais — não passam também de peças dentro de um jogo estruturado pelo Estado, que se aproveita e articula quando lhe convém.
“À guerra ou às hostilidades, à hostilidade, quer dizer, a uma hostilidade declarada que é também, acredita-se comumente, o contrário da hospitalidade. Ora, se a guerra e a hostilidade declarada fossem a mesma coisa, e se fossem o contrário da paz, dever-se-ia dizer que paz e a hospitalidade do acolhimento vão também juntas. E que elas formam um par inseparável, uma correlação na qual uma, a paz, corresponde à outra, a hospitalidade, ou reciprocamente” (14).
Entretanto, mesmo nesse cenário orwelliano [George Orwell], espaços residuais, restâncias, restos sem um sentido que os inibam como devires imprevistos sempre vão existir nas cidades de diversas maneiras, em diferentes tempos e permanências, emergindo das brechas e de situações adversas. Em alguns casos, eles causam desconfortos e estranhamentos, porém, a partir deles percebemos lugares e situações de formas diferentes, que nos fazem refletir a respeito desses territórios que surgem ou se transformam sem regras e em diferentes dicotomias. Como por exemplo, uma ocupação em um baixo de viaduto, até quando ela poderá existir nesse espaço? Até quando for conveniente para o Estado? Os leitos carroçáveis demarcam o limite e a margem que resta para os sujeitos, tal qual um limite de lugar que os ocupam como alternativa de sobrevivência nessas brechas da cidade legal, ou será que estão exatamente onde o Estado programou para estarem?
Sobrevivendo nesses territórios que os vê como hóspedes indesejados, ao mesmo tempo em que se espera que os sujeitos ajam dentro de um código comportamental estipulado pelo Estado e parte da sociedade, o indivíduo acaba por ser considerado inconveniente dentro de sua própria cidade. Uma subversão, como quem diz “aqui você não é bem-vindo”, à qual podemos relacionar ao Not in my Backyard — Nimby (“não no meu quintal”), cujos vieses se caracterizam por condutas de grupos específicos para viabilizar seus desejos e atitudes individuais em um nível local, impondo resistências para evitar certos sujeitos ou apropriações indesejadas em uma determinada área. A hospitalidade do Estado é endereçada a poucos, o que só permite a ocorrência de certos “alisamentos” [aqui, o espaço liso, conceito de Deleuze e Guattari, pensado como lugar de fluxos imprevistos e/ou incontroláveis] em determinados lugares quando lhe convém ou quando o coletivo se articula de modo que impede a ação de estriamento e que por vezes se dá através de confrontos. A "hostipitalidade" é presente, de forma camuflada ou aberta, engendrada pelo Estado e por demandas sociais segregacionistas, fazendo-se presente como obstáculos, barreiras, demarcando territórios, designando as áreas que podem e, de que maneira podem ser usufruídas.
Coletividades de enunciação e alteridade urbana
Os conceitos de hospitalidade ou hostipitalidade, a partir das reflexões do filósofo Jacques Derrida, materializam-se nas turbulentas poéticas de alisamento que se abrem a partir de ocupações, invasões e apropriações, que, por sua vez, se aproximam e se distanciam de cada um deles. Hospitalidade e Hostipitalidade se misturam em espaços do coletivo, alteridades urbanas abertas para o porvir.
Um território acolhedor, ou talvez simplesmente neutro, ao invés de opressivo, com espaços abertos ao novo, sem definições a priori, como um receptáculo disponível a quem quiser usufruir, atemporal, se torna um território capaz de se fazer e refazer, tal como Khôra (15), território de todos e de ninguém, acolhedor(a) mas inapropriável como propriedade a partir de apropriações. Esses espaços que surgem, ou passam a ser enxergados, de forma diferente por meio de apropriações imprevistas — por vezes inoportunas, inadequadas, sejam elas permanentes ou não — podem desaparecer sem deixar rastros, ao menos materiais, dando lugar a outros eventos no mesmo local, sem necessariamente assumir compromissos factuais com o entorno ou contexto. Espaços múltiplos, que se mesclam, contaminando o entorno ou contaminados por ele; pontos de outras inserções e estriamentos minoritários sociais em meio a um espaço liso. São áreas que, sem qualquer anunciação, podem ser transformadas a partir de ações de ocupação sem poder instaurador de propriedade. São espaços de potência que podem criar estranhamentos e conflitos, mas estão ali para serem apropriadas sem julgamentos.
Territórios possuem gradações de acordo com os sujeitos que se comportam nos espaços e os usam. Diante dos estriamentos e das tentativas de ordenar os sítios, as brechas surgem, e elas podem ser permanentes ou efêmeras, reverberar para o entorno, criar rizomas e penetrar em outros espaços, desaparecer ou surgir em outro ponto, porém, sem deixar de existir como intervalo entre o público e o privado. Essas áreas residuais são como receptáculos de acolhimento de micro existências urbanas. Existências que, a partir de discretas apropriações e ações — de prosaicos abrigos a ações mais estruturantes —, tornam as áreas mais acolhedoras e hospitaleiras, se contrapondo à hostilidade corrente, ao mesmo tempo em que, muitas vezes, as precipitam justamente por serem inadmissíveis. Sem imposições, os territórios permitem múltiplas possibilidades, acolhendo e propondo arranjos espaciais e programáticos, que por vezes fazem parte de uma organização coletiva dos próprios sujeitos indesejados.
“A hospitalidade pura ou incondicional, a hospitalidade em si, abre-se ou está aberta previamente para alguém que não é esperado nem convidado, para quem quer que chegue como um visitante absolutamente estranho, como um recém-chegado, não identificável e imprevisível, em suma, totalmente outro” (16).
Casos e exemplos não faltam na região central de São Paulo, como a extensão da Ocupação 9 de Julho, o projeto Arena Bela Vista ou a academia de boxe Nilson Garrido, nos quais o desejo de ocupar aquilo que não deveria ser ocupado não está ajustado a uma moral pública ou a uma estética urbana. São espaços de gestação de coletividades, desvio às normas e às lógicas oficiais, que reverberam para além do seu ponto de inserção, que somem e reaparecem em outro lugar, de diversas formas, mas sempre presentes em algumas partes do território. São ações erigidas e consolidadas por imbricação, pela organização dos corpos, anunciando outras ações, outras coletividades e modos de existência. Essas ocupações, quando estão de alguma forma estruturadas, são capazes de criar espaços de comunhão, de trocas horizontais, um lugar do comum, antes de ser público ou privado; quase sempre permanecendo à margem, como desvios em relação às normas e as lógicas oficiais. Elas podem acontecer de diversas formas, seja por instantes ou permanentes, mas sempre microterritórios conformados por e conformantes de algo ao se mesclar ao território.
“Sentidos e significados são sugeridos, organizações e configurações espaciais adequadas às destinações exigidas estão presentes e garantem o funcionamento do conjunto, porém, dialogando e, por vezes, conflitando com o indefinido, com o seu contrário, com aquilo que pode estar aquém e além, não só de sua própria situação inicial pretendida no ato da projetação, como do conjunto todo” (17).
Nas cidades, territórios existem dentro de territórios, complementares ou antagônicos entre si, e que podem se acoplar ou, de formas distintas, se organizar nessas fendas abertas pelo desajuste. Nessas fendas, programações dissonantes e distoantes em relação ao território do qual emergem transformam-se em lugares de acolhimento. Assim como o projeto Arena Bela Vista, localizado no baixo do viaduto Júlio de Mesquita Filho, esses espaços podem começar a partir de uma apropriação espontânea, no caso pela vontade de um espaço público para jogar futebol e com a organização por parte de alguns agentes, e, assim, a área foi se articulando e ganhando espaço, força e melhorias; um agenciamento de sujeitos, um coletivo que estruturou um espaço que estava ocioso e trouxe novos usos e possibilidade para esse Terrain Vague. Criou-se um microterritório que se opõe ao programado estriamento do Estado a priori, a partir de uma organização interna, que, em um primeiro momento, estava fora da lógica urbana. A extensão da Ocupação 9 de Julho também é um caso que surgiu nessas áreas. Áreas que se deslocam da estrutura e da ordem do Estado, permanecendo isoladas em meio ao território urbano, como lacuna em um tabuleiro organizado e articulado, fora dos códigos de condutas do Estado, porém, com potência (des)estruturante. A organização da Ocupação se estabeleceu e criou vínculos para além dos sujeitos que ali habitam, reverberando para o entorno, com uma estrutura e hierarquização dentro do próprio coletivo, fugindo das normas sociais, mas construindo a base, se fortalecendo e se impondo. Oriundos de lutas diárias dos sujeitos em meio a um território hostil, ou indiferente, às suas presenças, esses microterritórios vão contaminando seu entorno.
Tal qual um rizoma, ele não é ordenado, vai penetrando nas brechas e encontrando caminhos que por vezes podem ser inesperados. Nesses territórios, é possível encontrar lugares abertos a qualquer outro, contrapondo-se à hostilidade das cidades, seja em pequenos elementos, ou uma escola de futebol em um baixo de um viaduto, até ocupações em diversos pontos da cidade, e quanto mais nos debruçamos sobre os territórios, mais sutilezas, ações concretas e passageiras são possíveis de se descobrir em meio aos muros, pedregulhos, segregação e hostilidades.
“As apropriações, que inicialmente começaram irregulares, mas foram ganhando forma e força ao longo do tempo com a participação da sociedade, são as respostas dos sujeitos ao necessário, que por muitas vezes o Estado não vê ou ignora. Porém, a partir do movimento, um espaço vazio que se torna algo muito maior e não há como não ver e não aceitar, como é o caso de coletivos ou sujeitos que coordenam ou gerem algo para a comunidade, que se apropriam também daquele espaço, tornando assim essas lacunas em aberturas dispostas ao outro” (18).
Para o Estado, a técnica mais eficaz de manter o controle e a ordem no território é por meio de técnicas de vigilância, de inibição, de interdição ou de estriamentos que se apresentam como formas edulcoradas de expulsão e afastamento. Entre a guerra e a paz, as dinâmicas das cidades se formam e se mesclam.
“A funcionalidade da democracia em sua versão fetichizada parece servir indistintamente a todos, mas serve em verdade aos que precisam dela para legitimar a sua denominação” (19).
Entre tantas formas de luta diária [essas potentes “máquinas de guerra” das quais nos falam Deleuze e Guattari], o enfrentamento, através da ação política, nos territórios públicos pelos sujeitos, principalmente em coletivo, é o meio mais eficaz de confrontar o estriamento e a opressão do Estado. E, com isso, avançar nas possibilidades de apropriações dos espaços. Por meio de diversas batalhas cotidianas, ocupações, ações e coletividades vão se constituindo como alternativas às inescapáveis existências. Em meio às tensões entre hostilidade e hospitalidade, entre estriamentos e espaços lisos, este estudo revela a complexidade das relações entre sujeitos, territórios urbanos e o Estado. Enquanto a hostilidade do Estado procura controlar e ordenar os espaços de acordo com seus próprios interesses, a resistência dos sujeitos emerge como uma resposta à opressão, criando territorialidades hospitaleiras que desafiam as normas estabelecidas. Lugares de luta prolongada contra obstruções, interdições, segregações, expulsões, acabam se tornando territórios de novos modos de vidas e culturas coletivas; apropriação como restituição de um direito à existência ativa.
O desafio persistente é encontrar um equilíbrio entre a organização mínima necessária para a convivência nas cidades e o reconhecimento das múltiplas formas de apropriação e existência nos territórios urbanos. À medida que exploramos os espaços entre o alisamento e o estriamento, entre a hostilidade e a hospitalidade, podemos vislumbrar um futuro onde a cidade abriga não apenas os privilegiados, mas todos os que nela habitam, celebrando a diversidade e a liberdade que os espaços urbanos podem proporcionar quando verdadeiramente acolhedores. O humanitário, no sentido de gestos e ações, talvez não esteja fora do inumano que a contém, dessa forma, de que universal podemos pensar?
Lutas minoritárias, locais — e não estamos falando de lutas particulares — podem se tornar o vetor de uma emancipação não anunciada, não como algo que permanece como promessa de libertação universal mas, talvez, como emancipação realizada como perturbações e reposicionamentos no interior das forças que nos pensam, nos governam. Ações locais minoritárias são capazes de inventar meios de enfrentamento das ciladas preparadas por ideologias hegemônicas e enunciar possibilidades de um universal ainda por vir.
“Ser livre, portanto, não significa nada mais do que se realizar conjuntamente. Liberdade é sinônimo de comunidade bem-sucedida” (20).
notas
1
GUATELLI, Igor. A hospitalidade urbana e a multidão — uma discussão sobre soberania, estados de exceção e inclusão no espaço público urbano a partir de alguns processos de ocupação massiva do território na cidade. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP, v. 22, n. 38, 18 dez. 2015, p. 177.
2
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. São Paulo, Global, 2013.
3
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. — 26ª edição. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
4
DELEUZE, GILLES; GUATTARI, FÉLIX. Mil Platôs. Volume 5. São Paulo, Editora 34, 2012, p. 14.
5
BRISSAC, Nelson. As máquinas de guerra contra os aparelhos de captura. Arte/Cidade. Fotonovela sci-fi, 2002, p. 11 <https://bit.ly/3GLdA50>.
6
Idem, ibidem, p. 11 e DELEUZE, GILLES; GUATTARI, FÉLIX. Op. cit., p. 15–16; 244.
7
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault — Um percurso sobre seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte, Autêntica, 2016, p. 414.
8
DELEUZE, GILLES; GUATTARI, FÉLIX. Op. cit., p. 26.
9
Idem, ibidem, p. 26.
10
Idem, ibidem, p. 64.
11
SOUZA, Jessé. A sociologia dual de Roberto DaMatta: descobrindo nossos mistérios ou sistematizando nossos auto-enganos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 45, 2001, p. 49.
12
LADEIRA, Anariá Reis Simões; GUATELLI, Igor. Pequenas ações de interdição e expulsão no território: [tecno]ideologias de metas políticas e sociais. V Jornada Discente do programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie, São Paulo, FAU Mackenzie, 2021, v. 1.
13
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 2012, p. 220.
14
DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo, Perspectiva, 2008, p. 105.
15
DERRIDA, Jacques, 1930. Khôra. Campinas, Papirus, 1995, p. 9.
16
DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, Anne. Da hospitalidade. São Paulo, Escuta, 2003, p. 15.
17
GUATELLI, Igor. A marquise do Parque Ibirapuera e manifestação do conceito derridiano “entre”: arquitetura como suporte de ações. Arquitextos, São Paulo, ano 06, n. 070.05, Vitruvius, mar. 2006 <https://bit.ly/3TwjSNO>.
18
LADEIRA, Anariá Reis Simões; GUATELLI, Igor. Op. cit.
19
DANTAS, André Vianna. Do socialismo à democracia: tática e estratégia na Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2017, p. 218.
20
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte, Âyiné, 2020, p. 12.
sobre os autores
Anariá Reis Simões Ladeira é arquiteta formada pela Belas Artes de São Paulo (2011) e mestre em arquitetura e urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2022).
Igor Guatelli é arquiteto e urbanista (1991) e mestre (1999) pela FAU USP. Doutor pela FFLCH USP (2005) e pós-doutor pelo Gerphau Ensa Paris La Villette (2011-2012), onde atualmente é pesquisador associado. É professor da graduação e membro do corpo permanente do PPGAU FAU Mackenzie. Autor do livro Arquitetura dos entre-lugares, sobre a importância do trabalho conceitual (Editora Senac São Paulo, 2012).