Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Entre o inquieto S.HRU e o comportado VI CBA, a mudança de conjuntura política rompe algumas condições de possibilidades de congressos e encontros profissionais. Busca-se compreender esse processo e suas modulações.

english
Between the restless S.HRU and the well-behaved VI CBA, the change in the political situation disrupted some conditions of possibilities of congresses and professional meetings. We seek to understand this process and its modulations.

español
Entre el inquieto S.HRU y el bien portado VI CBA, el cambio de situación política trastocó algunas condiciones de posibilidad de congresos y encuentros profesionales. Buscamos comprender este proceso y sus modulaciones.


how to quote

FERNANDES, Ana. Depois do Quitandinha (1963), o VI Congresso Brasileiro de Arquitetos (1966). A reforma urbana e a captura de uma bandeira política. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 281.00, Vitruvius, out. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.281/8926>.

Cartaz do IV Congresso Brasileiro de Arquitetos, ocorrido em 1966
Imagem divulgação

Existem conjunturas particularmente estimulantes para nos questionarmos acerca do significado e do papel de congressos e encontros profissionais em sua relação com o próprio campo de conhecimento e atuação, emaranhados que estão com a sociedade e com a política, segundo modulações e mediações que os condicionam.

O VI Congresso Brasileiro de Arquitetos — VI CBA, promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil — IAB, que teve lugar em Salvador, em setembro de 1966, parece ser uma dessas conjunturas que nos permite perceber o funcionamento conjunto e contraditório entre campos profissionais, institucionais e políticos. Longe de estarem encerrados em si mesmos, os “espaços de possíveis” dos eventos estão imersos em campos de forças e campos de lutas (1) que presidem sua temática, audiência e posicionamento político.

Essa abordagem adquire maior sentido ao colocarmos em perspectiva o VI CBA e o Seminário de Habitação e Reforma Urbana — s.HRu, realizado três anos antes (1963) no Rio de Janeiro e em São Paulo, também uma iniciativa do IAB junto com o Instituto de Previdência e Aposentadoria dos Servidores do Estado — Ipase. Lembremos que o referencial s.HRu trouxe para a ordem do dia a questão da reforma urbana (2), bandeira do campo progressista que ainda atualmente agrega movimentos e ativismos em busca de uma cidade mais justa e plural.

Naquele momento, em 1963, em situação bastante turbulenta, estavam em pauta as reformas de base. Dentre elas, esboçavam-se a reforma urbana e medidas a ela correlatas, como, entre outras, o princípio da função social da propriedade, o combate à especulação, a luta pelo controle social e contra o imperialismo. O temário discutido centrava-se, basicamente e de forma afinada com parte da agenda governamental, na questão da habitação e da reforma urbana, conforme temário dos grupos de trabalho constituídos. Embora também mirando no VII Congresso da União Internacional do Arquitetos — UIA, que seria realizado em Cuba no mesmo ano, com a temática Arquitetura e Subdesenvolvimento, houve uma conjunção estreita entre o seminário e as grandes questões nacionais então debatidas. Não por acaso, o s.HRu atraiu audiência bastante diversificada pois, além de arquitetos, ali se faziam presentes lideranças profissionais, políticas, sindicais, associativas e estudantis de diversos pontos do país, mas majoritariamente do Sudeste e Sul (3).

Três anos depois, no entanto, após o golpe civil-militar de 1964, essa pauta praticamente desaparece das discussões públicas do VI CBA, embora diversos de seus personagens tivessem estado presentes no seminário de 1963. Tendo em perspectiva o IX Congresso da UIA, que aconteceria em Praga, em 1967, os temas para discussões do VI CBA se revelam bastante tímidos e genéricos, frente à riqueza social daqueles trabalhados no s.HRu. Assim, já o título do Congresso elude o fator humano, ao nomear-se Arquitetura e o Meio Ambiente, enquanto o de Praga se intitulava Arquitetura e o Meio Humano. Os títulos dos grupos de trabalho tiveram uma definição anódina, na qual a intensidade da questão da habitação é camuflada, tratando-a como ambiente residencial, embora pontuações relativas à natureza e à estrutura da ocupação da terra e à especulação existam no relatório final do Congresso. Essa formulação sugere, ao mesmo tempo, uma tecnificação nos modos de abordagem das questões nacionais, um cuidado político com a linguagem a ser utilizada e uma restrição da discussão ao campo mais estritamente técnico-profissional, com a presença quase exclusiva de arquitetos e urbanistas e de um número significativo de estudantes.

Relatório final do VI CBA, ocorrido em 1966, p. 2
Imagem divulgação

Elementos de comparação entre o s.HRu e o VI CBA
Elaboração Catarina Dourado, Pibic Faufba, 2019–2020 [Revista Arquitetura n. 15, set. 1963 e VI CBA, set. 1966. Acervo IAB BA]

É revelador que um tema como o da Reforma Urbana não compareça uma única vez em toda a documentação encontrada referente ao VI CBA (4), apesar do importante papel que havia sido desempenhado pelos arquitetos, ao lado de outros setores sociais e políticos, na sua construção. Índice da retração acentuada, na esfera pública, do intenso processo reformista do início dos anos 1960. Como entender o seu eclipse?

Pensemos a partir de uma analogia com o processo inverso, o de construção de uma agenda de política pública. Segundo John Kingdon (5), uma questão adentra a agenda governamental se cumprir três condições necessárias: a constituição de um problema considerado importante pela opinião pública; a construção de alternativas (aqui estão diretamente ativadas as competências profissionais); e a questão política propriamente dita. São consideradas conjunturas críticas aquelas nas quais os três movimentos, que podem ter temporalidades distintas, aparecem agindo em conjunto.

A situação oposta, a de arrefecimento de questões da agenda pública progressista, poderia ser pensada a partir das mesmas três condições. Exploramos aqui a hipótese de uma conjuntura também crítica, mas capturada, na qual, a partir da dissolução de uma das condições, as outras ou perdem força relativamente e/ou submetem-se a outros regimes de construção de alternativas. A questão política propriamente dita é, portanto, tomada como a principal força que opera em conjunturas de expansão, de captura ou de inversão de pautas públicas. Ou seja, a nova correlação de forças impostas pelo golpe civil-militar e sua tradução violenta em um estado antidemocrático é âncora para compreender a subtração da reforma urbana progressista da agenda pública brasileira no campo do urbanismo durante a ruptura marcada por 1964 e anos subsequentes (6). Para tanto, circunscrevendo o presente objeto, trata-se de elucidar alguns movimentos fortes — repressivos, institucionais e profissionais — através dos quais essa captura se efetivou.

Breve interregno 1963–1966: virada da conjuntura

Os anos 1960 constituem período bastante turbulento no Brasil. Em sua primeira metade, ele se acentua a partir de janeiro de 1963, com a volta do presidencialismo — apoiado por 82% dos votos válidos (7) e por sindicatos, assim como pelo Comando Geral dos Trabalhadores — e o reforço da busca de reformas de base pelo governo de João Goulart. Ao mesmo tempo, acirram-se as movimentações contrárias a elas, movidas por grupos conservadores e ultraconservadores e mesmo de centro, articulados sobretudo pelas bandeiras de combate ao comunismo e de defesa incondicional do direito de propriedade.

O golpe civil-militar vem na sequência de algumas iniciativas do governo federal em direção às reformas agrária e urbana e à defesa da economia popular. Um grande comício pelas reformas, realizado na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, é o momento escolhido pelo então presidente João Goulart para publicizar um decreto (8) que declara de interesse social, para fins de desapropriação para a reforma agrária, terras agrícolas com localizações específicas e “atualmente inexploradas ou exploradas contrariamente à função social da propriedade”. No dia seguinte, 14 de março, novo decreto (9) tabela para todo o território nacional os aluguéis de imóveis desocupados ou que vierem a vagar, relembrando que, desde 1951 (10), constitui contravenção ter prédio vazio por mais de trinta dias, havendo pretendente que ofereça como garantia de locação importância correspondente a três meses de aluguel. Além disso, em 11 de março, também através de decreto presidencial, havia sido criado o Comissariado de Defesa da Economia Popular, para “tomar todas as providências legais que resguardem e defendam o povo de tudo que represente extorsão e ganância” (11).

Consideradas, entre outras, como ameaçadoras para o status quo, instaura-se o regime militar em 31 de março de 1964, que permanecerá dirigindo os destinos do país até 1985.

Examinemos alguns dos principais recursos políticos — repressivos, institucionais, profissionais — através dos quais se pode capturar a conjuntura crítica anterior, reduzindo a bandeira da reforma urbana a um problema específico de habitação, com o qual se poderia estar de acordo em linhas gerais, encampado inclusive pelo campo conservador.

A ação repressiva direta

Declarado o golpe e deposto o governo democraticamente eleito, o qual, segundo os militares, no preâmbulo do Ato Institucional — AI n. 1, “deliberadamente se dispunha a bolchevizar o país”, instaura-se um autointitulado Comando Supremo da Revolução, formado pelas forças armadas. Com o fim de “atender aos anseios do povo brasileiro”, ele se dá poderes constituintes, com o propósito de “restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas” (12).

Começa então, a partir do dia 10 de abril, a edição de atos do “comando supremo” que determinam cassações e suspensões de direitos políticos. Estes atos afetam diretamente personagens engajados com a questão da reforma urbana, muitos deles presentes no s.HRU (13), a exemplo de membros do executivo federal (Almino Afonso, então ministro do trabalho e convidado de honra do seminário), de parlamentares, com ampla maioria de deputados federais pelo Partido Trabalhista Brasileiro, como Arthur Lima Cavalcanti (PE), Fernando Sant’Anna (BA), Floriceno Paixão (RS), Rubens Paiva (SP), mas também pelo Partido Democrata Cristão, como é o caso de Franco Montoro (SP). Sindicalistas presentes ao Seminário também foram afetados, como Luiz Tenório de Lima, importante liderança do Comando Geral de Trabalhadores. Muitos deles eram militantes do então clandestino Partido Comunista Brasileiro.

Logo na sequência, em 14 de abril de 1964, é regulamentado o artigo n. 8 do AI-1, referente “à apuração da responsabilidade pela prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou de atos de guerra revolucionária”. A partir de então, está colocada a possibilidade dos Inquéritos Policiais Militares — IPMs, que transformarão em delito a atividade política de muitas pessoas.

Instaura-se, em setembro de 1964, um IPM sobre a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo — FAU USP, no qual o arquiteto, professor e militante do Partido Comunista desde 1945, Vilanova Artigas é intimado, indiciado e preso em sala de aula. Mantido incomunicável durante doze dias, sua casa foi invadida e vasculhada. Liberto, mas com novo mandado de prisão expedido, resolve se exilar no Uruguai. Volta clandestino ao Brasil depois de seis meses e só depois de um habeas corpus volta a ensinar na universidade, no segundo semestre de 1965 (14).

Vilanova Artigas esteve presente ao s.HRU e, ao que tudo indica, também ao VI CBA, uma vez que, para este último, ele foi eleito relator geral por Assembleia do Instituto de Arquitetos do Brasil Departamento Bahia — IAB BA. Ora, essa situação específica do eminente arquiteto parece revelar todo o clima que dominava o país, num processo crescente de controle e repressão. Também na Bahia, os arquitetos Newton Oliveira (membro da comissão organizadora do VI CBA) e Jairo Farias e o consultor geral da República do governo deposto, Waldir Pires, tiveram seus direitos políticos suspensos pelo AI-1.

Assim, as cautelosas palavras usadas no documento final do VI CBA parecem indicar essa difícil conjuntura. Já em sua introdução, a restrição do espaço político no Brasil estava manifesta: “o IAB, seção Brasileira da UIA, iniciou a divulgação do VI Congresso Brasileiro, esclarecendo as autoridades governamentais sobre os seus objetivos” […] “mantendo-se, sempre, como órgão técnico e cultural, apolítico e independente”. O pedido indireto de autorização para a realização do evento vinha colado à afirmação do caráter apolítico da entidade, resvalando para a dissociação entre o caráter profissional e a ação mais propriamente política na esfera pública. Assim, as dificuldades para desempenhar as atividades profissionais tinham suas causas “identificadas no fenômeno de desajustamento entre a dinâmica do processo de desenvolvimento que eclodiu no país a partir do final da segunda grande guerra e a imobilidade das instituições e valores culturais ainda vigentes no país” (15).

No que concerne ao primeiro grupo de trabalho, a estrutura do povoamento, do qual o arquiteto José Ricardo Serran era relator, a questão da terra emerge esmaecida em suas contradições, considerando os processos especulativos apenas sob a racionalidade dos custos de investimentos. Assim, “é indispensável a institucionalização de uma política de uso da terra urbana e rural, com vistas ao desestímulo da especulação imobiliária e a consequente redução do custo de implantação dos programas de planejamento, manipulada por órgão integrado na cúpula político-administrativa do país”. Permanecia, por outro lado, a questão da participação: “os programas de povoamento devem ser conduzidos de acordo com a cultura, com as aspirações e com a participação da população abrangida”, devendo ainda ser incentivada a “tomada de consciência dos problemas pelas próprias populações interessadas” (16).

O ambiente residencial, tema do terceiro grupo de trabalho, tinha como relator o arquiteto Joaquim Guedes. A habitação era a principal questão tratada. Segundo o relatório, embora o governo brasileiro tenha criado o Plano Nacional de Habitação “esta medida foi aplaudida pelos arquitetos que vinham, há longo tempo, batendo-se […] pelo estabelecimento de medidas que visassem o equacionamento do problema residencial” (17) apenas o sistema financeiro tinha sido montado até então para viabilizar a construção maciça de unidades residenciais, relegando os outros aspectos. Como medidas necessárias são indicadas, entre outras, as necessidades de adequação entre moradia e perfil cultural e socioeconômico dos moradores; de se evitar a constituição de guetos e de espaços segregados; de enfrentar o caráter nefasto da especulação, pois leva a localizações ruins e alto custo de infraestrutura; de elaborar legislação sobre controle e uso da terra; de organizar tramas de acolhida e tramas sanitárias, acompanhadas de recursos para a autoconstrução e de assistência técnica.

Percebe-se assim uma derivação sobretudo técnica do tratamento da questão da habitação e do planejamento. Importante, mas politicamente acuada, pois esvaziada da ação reformista, eludindo as contradições que subjazem à produção da cidade capitalista (18). Bem de acordo com os “espaços de possíveis” delineados pela nova conjuntura autoritária, mas também reflexo de outras ordens que, mesmo que existindo anteriormente, ganham espaço a partir do golpe.

s.HRu, Revista Arquitetura n. 15, 1963
Imagem divulgação

Por fim, impressiona que, no acervo consultado do VI CBA, apenas um único documento faça referência à violência do regime militar. O Diretório Acadêmico da FAU UFRJ denuncia a repressão contra os estudantes. Ele foi fechado e seus membros acusados de subversão e de agitação por estarem se manifestando contra o pagamento de anuidades na educação superior. Respondendo a inquérito administrativo, a Comissão Executiva do Diretório e mais 27 colegas estavam proibidos de adentrar a Faculdade de Arquitetura (19). As três moções aprovadas pelo VI CBA, por sua vez, não fazem qualquer referência à situação política do país, centrando-se na questão do ensino e da profissão.

A ação institucional

Muitas instituições manifestaram-se favoráveis ao golpe militar. Na problemática que aqui nos interessa, importa destacar posições assumidas por universidades e pelo próprio IAB.

Na Universidade de São Paulo, o reitor Luis Antônio da Gama e Silva (1963–1969), a quem inclusive se atribui a redação do AI-5 (20), foi a favor do golpe e manteve estreitas relações com o governo militar. Contribuiu diretamente para a delação de professores no chamado Inquérito Policial-Militar da USP e mesmo antes dele, no que é chamado de Comissão Secreta do Reitor. Dela já constava o nome de Artigas, preso, como vimos, em setembro de 1964 e que foi apontado como um sujeito “cuja ideologia colocava em risco os ideais da ‘Revolução’” (21).

Da mesma forma, na Universidade Federal da Bahia, no mesmo dia 31 de março, o Exército invade a Residência Universitária masculina, prendendo todos, alguns dos quais permaneceram detidos por vários meses. No dia 1 de abril, “policiais armados invadiram o prédio da Faculdade de Ciências Econômicas e quebraram as máquinas da gráfica do diretório acadêmico, onde eram impressos jornais estudantis e eventuais panfletos” (22). No dia 7 de abril, a Congregação da Escola Politécnica declara seu apoio ao golpe, com apenas três votos contra: “hoje reunida, pela primeira vez após os acontecimentos da semana passada, vem solidarizar-se com as Forças Armadas pelo importante papel desempenhado na defesa das instituições e manifestar ao Comando da 6aRegião Militar, o seu decidido aplauso e entusiástico apoio”. No dia 9 de abril, é preso o professor Milton Santos, docente da Faculdade de Filosofia, que ficará detido até 23 de junho. No mesmo dia, em reunião do Conselho Universitário, o reitor Albérico Fraga informou, expressando extremismo ideológico e racismo, que editou “com abundância de coração, o primeiro ato arbitrário como reitor da universidade, que foi a demissão pura e simples do famoso comunista Isidorio Bispo de Oliveira”, “negro analfabeto”, agora “preto preso”. Além disso, já anunciava que os presos poderiam ser demitidos, uma vez que faltariam ao trabalho sem motivo justificado. Em 9 junho de 1964, “o diretor da Faculdade de Filosofia Aristides da Silva Gomes, enviou novo ofício ao General Comandante da VI Região, no qual comunica “que a congregação desta faculdade, na sua primeira reunião após o êxito feliz da revolução redentora, deliberou que se manifeste as suas congratulações com as Forças Armadas pela magnífica vitória”.

Diante desse quadro, faz muito sentido, de parte de professores presos, a recorrente constatação de falta de apoio institucional das universidades, como o faz Sérgio Ferro em seu depoimento à Comissão da Verdade da USP (23). Na prática, parte significativa das posições de comando das instituições trabalhava diretamente contra eles.

Também uma ação ambígua do IAB pode ser aqui mencionada. O Instituto, entre 1960 e 1966, teve como presidente Ícaro de Castro Melo, que desempenhou papel importante no trabalho de inserção e reconhecimento do arquiteto, mas manteve postura apolítica e de não intervenção do IAB nos casos de associados coagidos ou presos durante a ditadura (24). Ainda assim, amigo de Artigas, será ele, “um homem do lado de lá”, quem vai ajudar a “trazê-lo de volta do exílio no Uruguai” (25). Uma disputa acirrada pela direção no Instituto para a gestão 1966–1967 leva Fabio Penteado à direção, reorientando a posição do IAB, que sai em defesa de alguns de seus associados (26). Importante passo na posição política do Instituto.

No entanto, nessa conjuntura difícil e regressiva, no que se refere diretamente à realização do VI CBA na Bahia, já sob a nova direção do IAB nacional, é de se perguntar sobre os motivos que teriam levado a comissão organizadora, em seu primeiro dia de programação, à realização de um coquetel oferecido aos congressistas pelo governo do Estado, no palácio residencial de verão em Ondina. Note-se que Lomanto Júnior, eleito por voto universal em 1962, apoiador do governo João Goulart num primeiro momento, passa a apoiar o governo militar. Em agosto de 1966, um mês antes do CBA, ele participou, ao lado do então presidente General Castelo Branco, da inauguração da ponte do Pontal, em Ilhéus, recebendo dele o seguinte agradecimento: “agradeço, comovido, a gestão de V. Ex.ª, que dividiu comigo a maior festa popular que o meu governo assistiu” (27).

Embora a busca de proximidade com o Estado em várias de suas dimensões pareça ser uma característica dos congressos profissionais (28), ela também expressa, de partida, o seu caráter ambíguo e contraditório. Oscilando entre hegemonias políticas, entre racionalidade instrumental e realidade social, o discurso técnico e profissional se mostra mais ou menos prevalente, ocupando hierarquias distintas na construção do espaço dos possíveis.

Assim como iniciativas políticas de diferentes perfis eram tomadas, seja em relação aos governos estaduais, seja com movimentos diversos concernindo o poder central — tomando precauções, buscando alianças ou revendo posições —, estratégias profissionais também tinham de ser elaboradas frente à nova situação repressiva. Encolhido pelo campo de forças, inclusive pelo banimento ou intimidação de muitos de seus agentes, o campo de lutas deve se reconfigurar.

A ação profissional

Acompanhando inicialmente os engenheiros, mas de forma mais autônoma e acentuada a partir dos anos 1950, os arquitetos moviam-se em torno da questão da habitação e do planejamento enquanto objetos privilegiados para a elaboração de políticas públicas (29). Apesar de instável, tratava-se de uma conjuntura de relativa abertura para a construção do Estado Nacional e suas derivações, da qual deveria fazer parte o enfrentamento dos problemas vinculados à habitação, ao urbanismo e ao planejamento, à cidade e à urbanização.

Assim, já com maior protagonismo do campo dos arquitetos, são várias proposições que vão se construindo em sequência. Dentre outras, a de criação de um Ministério do Bem-Estar Social, Habitação e Urbanismo, proposto pelo IV CBA (30), realizado em São Paulo, em 1954; a de elaboração de uma Lei da Casa Própria, em 1959 (31); a de instauração de um Conselho Nacional de Habitação e Planejamento Territorial, em 1960/1961 (32), ou ainda o esboço de uma Política Habitacional, em 1962 (33). Essas iniciativas se intensificaram e tiveram repercussões importantes (34), culminando na realização do já mencionado e referencial s.HRu (1963).

O golpe civil-militar de 1964 seguido pela criação do BNH e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo — Serphau no mesmo ano levam, segundo Serran, a que o IAB passe, da luta pela formulação de uma política habitacional, para a luta pela reformulação daquela então adotada, em “permanente atitude crítica, entrecortada por eventuais momentos de trabalho conjunto” (35).

Essa atitude crítica, no entanto, revela uma contração em termos de ação política e manifesta-se pelo reforço de uma ação que se quer mais técnica e objetiva. Ou melhor, a justificativa técnica é a principal arma política utilizada — não sem conflitos e disputas no campo de lutas — para a busca de salvaguarda e legitimação da entidade em contexto autoritário.

Assim, já em maio de 1964, logo após o golpe de Estado, o então presidente do Instituto, Ícaro de Castro Melo (36), havia encaminhado à presidência da República telegrama congratulando-se com o governo por sua sensibilidade com relação ao problema habitacional e colocando os arquitetos à disposição para a busca de soluções. Em janeiro de 1965, uma declaração do Conselho Superior do IAB mostra bem os limites que estavam colocados à sua ação. O documento reafirma a entidade enquanto “um órgão apolítico e independente, cuidando apenas dos aspectos técnicos e culturais ligados à profissão do arquiteto”. Ou seja, “repele veementemente as insinuações de, no debate dos problemas habitacionais do país, assumir posições de luta política, de caráter ideológico ou de prestar-se ao papel de ‘inocente útil’ de quem quer que seja” (37). Trata-se, exclusivamente, de centrar-se nas questões da habitação e do planejamento.

Elas ganham peso crescente no âmbito da ação profissional e vai se construindo um espaço de colaboração técnica — ainda que crítica e disputando racionalidades de ação, ou um duelo público (38) — entre a entidade e o governo. Bem o demonstra a presença ativa do IAB com relação a iniciativas do governo federal. Ainda em 1964, a entidade se posiciona acerca dos vetos colocados pela presidência da República à Lei n. 4.380, que criou o Sistema Financeiro da Habitação (39). Já durante o ano de 1965, a entidade participa do Grupo de Habitação do Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada — Epea, do Ministério do Planejamento, elaborando um diagnóstico do setor da construção civil, então em crise (40). Ou ainda, logo no início de 1966, as tratativas para estabelecer um convênio entre o Serphau e o IAB versando sobre a indicação de profissionais habilitados para projetos de planejamento físico (regional e urbano) e trabalhos de arquitetura (conjuntos, habitações e prédios isolados) (41).

Além disso, ainda em 1966, além do VI CBA, dois outros encontros foram realizados, abordando, de diferentes perspectivas, as questões relativas à produção de habitação e ao planejamento. O I Encontro Nacional de Arquitetos Planejadores, em Curitiba, em maio de 1966, contou com representação do Serfhau e destacou a importância do planejamento físico-territorial em seus vários níveis e o papel dos arquitetos e de outros profissionais ali presentes (42). A Mesa Redonda sobre Política Habitacional, realizada em julho, no Rio de Janeiro, contou com a presença de representantes do BNH, do Serfhau, do Setor de Habitação do Epea e da Carteira de Habitação da CEF, com o propósito de analisar o Plano Nacional de Habitação (43). Além da pauta da habitação e sua relação intrínseca com a cidade e seus equipamentos e os processos de urbanização, registre-se a satisfação do IAB “com os resultados positivos representados pelo ‘Diagnóstico Preliminar do Setor de Habitação’ […] e pelo ‘Estatuto do Planejamento Integrado Regional e Municipal”, ambos do Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica. Para Serran (44), o VI CBA apenas ratifica as conclusões da Mesa sobre Política Habitacional.

Ou seja, a ação profissional, através de sua entidade, continuava a problematizar a questão habitacional e do planejamento, mas em diálogo próximo (e crescente) com as instituições do governo autoritário. Para que acontecesse, mesmo que de forma crítica e com pautas que são atuais ainda hoje, ele deveria seguir os limites estabelecidos pelo novo regime. De fato, a dimensão política carregada pela bandeira reformista tinha sido banida do processo. Três anos de fechamento democrático e repressão tinham conseguido rarefazer o campo das mudanças mais estruturais que se tinha pretendido implementar.

Concluindo

A análise de congressos e encontros profissionais, sobretudo em conjunturas críticas, parece oferecer uma perspectiva fértil para a compreensão de conjunturas de campos de conhecimento e atuação. Ou seja, não se trata apenas de estabelecer um contexto no qual se passam as ações, como se fosse um continente para um conteúdo, mas de problematizar todo o processo enquanto interação dinâmica entre campos de forças e campos de lutas.

Claro que os dois congressos aqui analisados, entre 1963 e 1966, período marcado por excepcionalidade política, trazem com eles um conjunto acelerado de múltiplos movimentos que colocam em cena as contradições internas ao próprio campo da arquitetura e do urbanismo, suas bandeiras de luta e os modos de encaminhá-las. A aposta numa maior tecnificação da ação profissional — inclusive como resposta política à ação repressiva — terá dois desdobramentos distintos e irregularmente articulados. O primeiro é que, ao se combinar com a institucionalização de uma política pública, ela ganha força de inércia e alcança outros foros de reprodução, inclusive nos processos de formação, de teorização e de legitimação da razão instrumental. O segundo aponta para o fato de, ao acompanhar as conquistas de ampliação do espaço democrático pela sociedade brasileira — e delas participar –, outras experiências e possibilidades vão se abrindo no campo para deslocar e colocar em crise essa ação mais hierarquizada e vertical.

Não por acaso, a reforma urbana reaparecerá como bandeira política já nos anos 1980, expressão de diversos movimentos pelo direito à moradia e à cidade, processo no qual, entre outros, o campo da arquitetura e do urbanismo jogará papel importante. Agora, com outro contexto, outras configurações e outras limitações. Mas guardando uma relação intrínseca entre campos de forças polarizados por processos de democratização e campos de lutas definindo novos espaços de possíveis.

notas

1
De forma mais geral, campo de forças (“cuja necessidade se impõe aos agentes que nele se encontram envolvidos”) e campo de lutas (“no interior do qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de forças, contribuindo assim para a conservação ou a transformação de sua estrutura”), os quais delineiam “espaços de possíveis”. BOURDIEU, Pierre. Espaço social e campo do poder. In Razões práticas. Sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus, 1996.

2
Inaugurada pela experiência cubana, logo após a revolução de 1959: a Ley de Reforma Urbana, de 14 de outubro de 1960, prevê, em seu artigo 1º, que “toda familia tiene derecho a una vivienda decorosa. El Estado hará efectivo ese derecho.

3
Trato do s.HRu em FERNANDES, Ana. Reforma urbana no Brasil. Inquietações e explorações de sua construção enquanto campo e política. In LEME, Maria Cristina. Urbanismo e política no Brasil dos anos 60. São Paulo, Annablume, 2019.

4
Conjunto substantivo de documentos relativos ao VI CBA que integram o acervo do IAB BA.

5
KINGDON, John. Agendas, Alternatives, and Public Policies. New York, Longman Classics Edition, 2002.

6
Importa salientar que uma versão conservadora da reforma urbana continua em ação naquele período, através da formulação de lideranças políticas, religiosas, sociais e institucionais.

7
Referendo no Brasil em 1963. Wikipedia <https://bit.ly/45Q7cUd>.

8
Decreto n. 53.700/64.

9
Decreto n. 53.702/64.

10
Lei n. 1.521/51, art. 9 VI.

11
Decreto n. 53.678/64.

12
Ato Institucional (AI) n. 1, 9 abr. 1964, preâmbulo “À nação”. In Portal da Legislação <https://bit.ly/46T5kLY>. Dezessete Atos foram editados entre 1964 e 1969.

13
Cf. relação publicada na Revista Arquitetura n. 15, 1963

14
USP. Comissão da Verdade, 2015 <https://bit.ly/40gACKh>.

15
Conclusões do VI Congresso Brasileiro de Arquitetos, Salvador-Bahia, 19–24 de setembro de 1966. Relatório Final. IAB-BA. PROJ_CAIXA03_66-2-2, p. 2–3. Grifo da autora. As citações que se seguem neste tópico referem-se ao mesmo documento.

16
Idem, ibidem, p. 4. Grifo da autora.

17
A Lei n. 4.380, de agosto de 1964, cria um conjunto de medidas visando à formulação de uma “política nacional de habitação e de planejamento territorial, […] no sentido de estimular a construção de habitações de interesse social e o financiamento da aquisição da casa própria, especialmente pelas classes da população de menor renda”. Artigo n. 1, p. 6. Grifo da autora <https://bit.ly/3sgQKyF>.

18
No documento final do s.HRu, a reforma urbana é compreendida como “o conjunto de medidas estatais, visando à justa utilização do solo urbano, à ordenação e equipamento das aglomerações urbanas e ao fornecimento de habitação condigna a todas as famílias”. IAB — s.HRu, julho 1963. Revista Arquitetura n. 15, 1963. Grifo da autora.

19
“Aporte ao Sexto Congresso Brasileiro de Arquitetos”. Diretório Acadêmico Attilio Correa Lima, UFRJ.

20
Luís Antônio da Gama e Silva. Wikipédia <https://bit.ly/49fzlHm>.

21
Comissão da Verdade USP, 2018 e referência a artigo publicado no Correio da Manhã. Ver em particular o volume n. 5, relativo à FAU USP.

22
Essas informações e as que se seguem, relativas à UFBA, se baseiam no relatório da Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da Universidade Federal da Bahia, 2014.

23
Em 2015, ele afirma: “ausente desde 1972 do Brasil, eu, Sérgio Ferro, não tenho conhecimento de nenhuma declaração oficial ou de alguma ação clara que demonstre repúdio por parte da USP ou da FAU USP com relação a inquéritos, prisões, torturas ou assassinato perpetrados contra professores, alunos e funcionários destas instituições. Espero que me engane”. Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo (op. cit.).

24
KAMIMURA, Rodrigo. O problema social na arquitetura e o processo de modernização em São Paulo: diálogos, 1945–1965. Tese de doutorado. São Carlos, PPGAU IAU USP, 2016.

25
Depoimento de Paulo Mendes da Rocha. Apud KAMIMURA, Rodrigo. Op. cit.

26
Segundo Vilanova Artigas e Geraldo Nogueira Batista. Apud DEDECCA, Paula Gorenstein. Arquitetura e engajamento. O IAB, o debate profissional e suas arenas transnacionais (1920–1970). Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2018.

27
Construção da Ponte Ilhéus-Pontal e as promessas. Valter Lessa. 22 out. 2019. ABI BA.

28
Como o demonstram o I Congresso Brasileiro de Urbanismo, na ditadura getulista ou o próprio Seminário de Habitação e Reforma Urbana, repetindo-se agora no próprio VI CBA.

29
Já o I Congresso Nacional de Urbanismo, de 1941 aprovou propostas de criação de um Departamento Nacional de Urbanismo, construindo um sistema institucionalizado que vinculava planos, ensino, estudos e a unificação do sistema legal. CENTRO CARIOCA. I Congresso Brasileiro de Urbanismo. Rio de Janeiro, 1941.

30
Ministério que deveria futuramente ser desdobrado em Bem-Estar Social e Habitação e Urbanismo. SERRAN, João Ricardo. O IAB e a política habitacional brasileira (1954–1975). São Paulo, Schema, 1976.

31
Idem, ibidem.

32
Conforme documento entregue aos candidatos à Presidência da República em 1960, reafirmado em audiência com o já eleito Jânio Quadros, em 1961. FRANÇA e LEITE, Vera Lucia Sanches. Caminhos que levam à cidade. O protagonismo do IAB na política urbana brasileira. Tese de doutorado. Niterói, PPGAU EAU UFF, 2017.

33
SERRAN, João Ricardo. Op. cit.

34
Dentre elas, o projeto de lei n. 1911/60 do deputado Floriceno Paixão, que buscava estabelecer um Plano, uma Superintendência e um Fundo Nacional de Habitação. Ou a criação, em 1961, da Comissão Nacional de Habitação e sua transformação em Conselho Federal de Habitação (Decreto n. 1.281/62). FRANÇA e LEITE, Vera Lucia Sanches. Op. cit., anexos 9 e 11.

35
SERRAN, João Ricardo. Op. cit.

36
Ver notas n. 23, 24 e 25.

37
FRANÇA e LEITE, Vera Lucia Sanches. Op. cit., anexo n. 24.

38
SERRAN, João Ricardo. Op. cit.

39
Idem, ibidem, anexo n. 6. Sobressaem a defesa do financiamento aos municípios, à infraestrutura, à moradia rural e da autonomia do Serphau enquanto órgão técnico.

40
SERRAN, João Ricardo. Op. cit.

41
FRANÇA e LEITE, Vera Lucia Sanches. Op. cit., anexos n. 25 e 26.

42
FRANÇA e LEITE, Vera Lucia Sanches. Op. cit., anexo n. 27.

43
FRANÇA e LEITE, Vera Lucia Sanches. Op. cit.

44
SERRAN, João Ricardo. Op. cit.

sobre a autora

Ana Fernandes é doutora pelo então Instituto de Urbanismo de Paris (1985), professora titular da Faculdade de Arquitetura da UFBa e de seu Programa de Pós-Graduação e pesquisadora 1A do CNPq. Coordena o grupo de pesquisa Lugar Comum e tem como principais áreas de ensino, pesquisa e publicações: história e memória da cidade e do urbanismo; produção da cidade, espaços públicos e comuns e política e direito à cidade.

comments

281.00 reforma urbana
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

281

281.01 imaginário

As águas no imaginário urbano de Lina Bo Bardi para São Paulo

Artur Simões Rozestraten

281.02 territorialidades

Provisoriedade e translocalidade

Apontamentos sobre as territorializações do migrante internacional contemporâneo

Marcela Dimenstein and Gleice Azambuja Elali

281.03 história ambiental urbana

Água da fonte, água de poço

Notas para a história do abastecimento no Rio de Janeiro

Anita Correia Lima de Almeida

281.04 planejamento urbano

Modernização e planejamento urbano em Curitiba (1913–1916)

Elizabeth Amorim de Castro and Zulmara Clara Sauner Posse

281.05 cartografia urbana

Como é a caminhografia urbana?

Registrar, jogar e criar na cidade

Eduardo Rocha and Tais Beltrame dos Santos

281.06 hospitalidade

Hostilidade urbana e resistência

A complexa relação entre sujeitos, territórios e o Estado

Anariá Reis Simões Ladeira and Igor Guatelli

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided