Chuva, Suor e Cerveja ou Sangue, Suor e Lágrimas? Esta era uma pergunta provocadora que me fazia um amigo europeu que, como quase todos, demonstram conhecimentos inesperados de música brasileira. Fazia uma referência a uma música de Caetano e a uma famosa frase do Primeiro Ministro britânico na II Guerra Mundial. Poderia ser só um trocadilho de palavras ou uma provocação amigável. Mas também poderia ser uma pergunta chave para entender a sociedade urbana brasileira; mistura fina de elementos festivos e trágicos.
A pergunta também se apresenta como uma espécie de resposta aparentemente equilibrada; um país de extremos onde a cidades se configuraram como um lugar de batalha mas também como um salão de festas.
Mas pouco a pouco me fui dando conta de que esta leitura também servia a um objetivo menos honesto. Ou seja, a de fazer entender que existem dois brasis: um moderno, rico e dinâmico e outro arcaico, pobre e lento. De fato, há dois anos atrás, quando organizamos em Barcelona o 1º Ciclo de Cinema Brasileño (Brasilia: la mirada del cine), era possível constatar certa tranquilidade manifestada por alguns brasileiros ao constatar que junto a documentais como Brasília segundo Feldmann (Vladimir Carvalho, 1975) havíamos programado Brasília segundo Alberto Cavalcanti (Antônio Carlos da Fontoura, 1982). Contando a história de maneira honesta – segundo cada um dos pontos antagônicos de vista – tanto o filme de Vladimir como o de Fontoura respondem a esta lógica dos extremos e acabam por fim ajudando a criar esta idéia de dois brasis.
Com este subterfúgio se logra uma imagem que cai bem a burguesia nacional porque lhes desvincula do Brasil arcaico, pobre e descarrilado, como se fosse possível uma desvinculação com o "outro" Brasil. Desde então resolví não tentar explicar as cidades brasileiras em conversas de poucas palavras. Em troca, costumo animar a que utilizem métodos empíricos e conto uma experiência de minha última viagem.
Nesta viagem, passeava imaginando o pensamento da gente. O pensamento de um motorista dirigindo seu carro, às 8 horas da noite, em direção de casa , pelas ruas de uma cidade brasileira qualquer. Cruzaria a esquina que acolhe o bar das tertúlias diárias e estaria atento a qualquer movimento brusco. Atento – não pensava porque era uma velha advertência assimilada – é necessário dirigir rápido e um cuidado especial se deve reservar para as paradas no semáforo. Parado o carro, o condutor verá assomar-se por detrás do vidro da janela um menino, velho com cara de menino, que talvez lhe peça uma esmola, talvez a carteira e lhe acabe levando a vida ou simplesmente lhe queira vender água de côco engarrafada. Agora entendia aquele amigo louco que cruzava as avenidas cariocas sem respeitar os semáforos em vermelho. Com sorte, pensará, acabará cruzando a cidade e as muralhas do seu seguro e confortável apartamento cuja tipologia habitacional singular permite quase prescindir dos serviços públicos básicos. Cruzando a guarita, seu coração parecerá abandonar uma palpitação forte e ritmada. Uma cadência que encontrará a faltar na hora do descanso ou do sexo na intimidade protegida do lar.
Para evitar o semáforo em vermelho quase havia atropelado um grupo, compacto e rápido cruzando pela zebra; uma mistura fantástica de indivíduos absorvidos pela vida. A freada atraiu um olhar que seguia um par de longas pernas bronzeadas, para lhe fuzilar com a vista. Parado, observa, atribui etiquetas sempre perversas e negativas. Exagera e dá rendas soltas a suas fobias.
O transeunte, buscando aquelas pernas que se escapavam na multidão, cruza a cidade antes de cada amanhecer e depois de cada entardecer como fugindo do sol. Mas na verdade se dedica a conter uma ameaça em forma de relógio, que na fábrica marca a contagem regressiva da sua vida profissional e em casa o de sua vida matrimonial. Aquela mulher bonita não era o único que passava por sua cabeça. Também pensava num gol, no aluguel atrasado, no cheque pré-datado, na loura do quinto andar, na dor de dente, no suor que escorre pelas costas, no político corrupto, outra vez na partida de futebol, na música de um carro, na música das lojas em liquidação, na data do aniversário, no número de loteria... Até em Deus havia pensado. Mas um carro que freia brusco e ruidoso lhe devolve outra vez ao passo de zebra e a uma guerra tão bruta quanto festiva. Não é a guerra de Sangue, suor e lágrimas nem a festa de Chuva, suor e cerveja. É só a sua guerra e a sua festa. Sua guerra contra um indivíduo, sentado num carro quase blindado, que por não atropelar parece empenhado em assassiná-lo com o olhar.
Dentro do carro, o outro pensa em estorvo e atrevimento. Com o carro já em marcha vê naquilo uma forma de resistência que, cada vez mais, parece estabelecer pouco a pouco uma nova ordem social. Em casa a filha lhe lembra da necessidade de comprar o Abadá para o carnaval. Abadá é uma palavra africana utilizada na Bahia e outras partes do Brasil para denominar os trajes com que os grupos carnavalescos se vestem nos desfiles de rua. Em se tratando de uma palavra vinculada a cultura negra escrava, a utilização do termo não poderia ser mais adequado: com o Abadá a pessoa compra o direito a sair acompanhando o bloco carnavalesco protegido por um cordão de isolamento e guardas de segurança profissionais. Neste cordão de isolamento somente está permitida a entrada daqueles que levam o Abadá correspondente ao bloco. Mas também por motivos de segurança, e isto é o mais curioso, não está permitido abandonar o cortejo durante o desfile.
Neste dia nosso condutor não necessita do carro. Com seu Abadá e o cordão de isolamento baixa pela rua alardeando sua alegria e sua liberdade. Alardea a música, as cores alegres do seu traje e, mais que nada, solta este grito de guerra que leva cravado na garganta. Um grito que anuncia uma ocupação, ainda que efêmera, daquele passo de zebra, do semáforo, da esquina e de toda a avenida. A cidade toda é possível e até parece extremamente amigável e sua. Já não existe passo de zebra que respeitar nem semáforo onde parar, só aquele olhar sorridente e inoportuno de um homem que, dançando num bar da esquina, lhe olha como quem olha a um carro quase blindado.
notas
[publicação: dezembro 2001]
Xico Costa, Barcelona Espanha