Mulheres em grupo, mas solitárias. Escolhidas em agências de modelos, paradigmas da beleza feminina contemporânea. De corpo invejado e nuas. Mulheres de botas pretas de cano longo em formação marcial.
Um texto que descrevesse assim o trabalho de Vanessa Beecroft soaria uma pauta de revista Playboy para seus anunciantes. Mulheres belas, quase nuas, com o artifício fetichizante da bota preta de cano e salto alto, em postura militar. Uma imagem erotizante, a sugerida por essa descrição.
O trabalho de Vanessa Beecroft, utilizando esses referenciais tão aceitos, chega a efeitos opostos. As mulheres louras ou ruivas, de cabelos engomados e presos ou muito curtos, de olhar perdido na distância mais parecem corpos recém-saídos de campos de prisioneiros. Esquálidos, assexuados, infantilizados (as mulheres fotografadas não têm pelos pubianos nem qualquer vestígio de penugem nas pernas ou nos braços) expõem-se aos olhares curiosos.
Beecroft interroga o corpo como lugar do desejo. Não há rubores, vermelhidões, sofreguidão, ansiedade nas imagens das mulheres que fotografa. Há uma espécie de palidez comum, serial.
A artista ensaiou as modelos durante uma semana e depois fotografou-as e gravou-as em vídeo, expondo diversos momentos. A uma é dado o privilégio de descalçar-se e ela se repousa sentada, pernas encolhidas, pose de quase sereia, num abandono de cansaço tranqüilo. Seu contraste com as que continuam de pé, em formação e pose militar é gritante. Aquelas mulheres postadas em fileiras, ideais contemporâneos do corpo feminino, em situações masculinas, prontas a obedecer (no caso ao ritmo e à coreografia da artista/diretora) mostram-se o reverso do que suas imagens alardeiam na imprensa de moda. Não há glamour algum, há paciência, resignação e cansaço.
Há fotos em que algumas delas estão sentadas como se posassem para um pintor ou escultor. Sua nudez então, embora tão instrumental como na foto da formação militar, esboça uma humanidade, provavelmente dada pelo elo singularizado; trata-se de uma modelo escolhida por um pintor ou um escultor; pode até mesmo ser uma modelo posando para alunos de belas artes, por que não? Não se trata de um coletivo de mulheres sem qualquer relação umas com as outras, exceto pelo fato de terem sido escolhidas para estar ali, naquele momento, por alguém que as comanda.
Há fotos em que elas formam um desenho radial, como as nadadoras dos filmes de Esther Wiliams. E, nessa formação seus corpos lembram as imagens racialistas de Leni Riefenstahl, corpos em exercício, disciplinados e potentes.
Pode-se ler essas fotos como desenhos de lugares e de não-lugares. O corpo feminino, instrumentalizado da procriação à sedução, das imagens de beleza, justiça, liberdade, maternidade se posta diante de um observador ausente. E talvez essa ausência seja a do olhar masculino, artífice de um lugar da mulher, lugar que é construído assimetricamente, desde que se rejeitaram os mitos de Lilith como fundadores da identidade de gênero e se perseguiram os mitos de Eva, aquela formada de uma das costelas de Adão.
notas
[publicação: junho 2002]
Ethel Leon, São Paulo SP Brasil