Para entender sucintamente a arquitetura contemporânea – e aqui vamos falar da arquitetura culta – é preciso saber que ela é resultado de um ato de rebeldia que se iniciou no final dos anos 60 contra os cânones impostos pelas vanguardas modernistas. Esse movimento, nascido sob a égide da liberdade revolucionária, acabou envelhecendo num emaranhado de ismos prescritivos e limitadores muito mais rígidos que o período anterior tinha vivido. Nada mais de acordo com um século que é considerado um dos mais autoritários e selvagens da história da humanidade.
Na arquitetura, Le Corbusier foi o profeta das vanguardas que, a par de sua liberdade criadora como arquiteto – que lhe permitia subverter seu próprio discurso –, estabeleceu os princípios da nova arquitetura: no mundo novo, para o novo homem, tudo teria hora e lugar apropriado e tudo seria projetado de acordo com uma receita simples: pilotis, planta livre, fachada livre e terraço-jardim, construindo uma maravilhosa sociedade... de formigas. Se os expoentes dessa arquitetura criaram obras esplendorosas, a vulgarização desses postulados foi um desastre: destruição de centros históricos, periferização da cidade, edifícios sem importância tratados como monumento, quando não como esculturas, e os famosos conjuntos habitacionais que desintegravam socialmente seus habitantes.
O grito de basta acabou saindo da boca do arquiteto americano Robert Venturi: – Isto tudo é muito chato! Foi a senha para que as novas gerações pudessem abandonar sem culpa os envelhecidos lemas vanguardistas. Usando muito mais a negação do que a afirmação de novos princípios, os novos rebeldes recuperaram o tênue fio da história da arquitetura e das cidades e libertaram a arquitetura da monotonia e sisudez. O movimento teve caráter anárquico e propiciou uma explosão de irresponsabilidades arquitetônicas, deixando prosperar uma plasticização e cenarização excessivas. Surgiu por toda parte, com a licença da erudição, a citação, o kitsh, o vernacular, a ironia ou o humor.
Esse movimento, que só chegou ao Brasil – quartel-general do modernismo – nos anos 80, ficou conhecido como pós-modernismo, apesar de muito poucos, por coerência anti-ismos ou medo do patrulhamento, se dizerem pós-modernistas. O pós-moderno brasileiro, porém, não teve energia suficiente para suplantar o pai poderoso – famoso mundialmente – e renovar a arquitetura. Particularidades nacionais, como uma sábio vínculo com a arquitetura colonial que amainava seu desprezo pela história e o caráter de arquitetura oficial, patrocinada pelo Estado, tornavam a tarefa de quebrar seu monolitismo ainda mais difícil.
De lá para cá a arquitetura brasileira se desencontrou. Enraizado demais para ser contestado, sem forças para se revitalizar, o modernismo brasileiro seguiu o caminho da banalização e repetição de si próprio: um predomínio do exibicionismo estrutural, uma teimosia em não incorporar os novos conceitos que se tornaram importantes para a arquitetura mundial. A complexidade, a psicologia multifacetada do ser humano numa sociedade rica na sua diversidade não ganharam a devida atenção dos arquitetos brasileiros.
A herança pós-moderna deixou uma época de muita liberdade – com alguma permissividade – e, claro, muita dificuldade de se pautar uma crítica da arquitetura contemporânea. Se hoje vivemos numa época de tribos, onde cada um vive muito-bem-obrigado com seus princípios, o vale-tudo, porém, já não vale tanto assim. É, no mínimo, politicamente incorreto fazer-se uma arquitetura inconseqüente, que ignore os problemas ambientais, que desperdice materiais e energia, que não se insira no seu contexto, que não tenha rigor na formulação de seus conceitos e princípios de composição, que não se preocupe com a construção de lugares para a vivência e convivência humanas. A arquitetura está muito mais séria e erudita: o estudo de sua história e teoria voltaram a ser prioritários e não se admite a arquitetura sem um pensamento que lhe estruture.
A arquitetura brasileira, liderada pela cabeça de Lúcio Costa e as mãos de Oscar Niemeyer, conquistaram o mundo; isto é conhecido. O que talvez não seja tão conhecido, é o fato de o Brasil ter construído, entre os anos 50 e 60, dois dos melhores exemplos mundiais da arquitetura modernista de museus: o MAM do Rio de Janeiro de Affonso Eduardo Reidy e o MASP de Lina Bo Bardi.
Nossos arquitetos sabiam como poucos fazer poesia com as receitas modernistas:
Uma coisa pura
Linha luz e ar
pousa frente ao mar assim definiu Carlos Drummond de Andrade o MAM, enquanto o MASP literalmente flutua sobre uma praça que se tornou um dos poucos lugares de São Paulo.
Para os museus, entretanto, a partir daí, o quadro não poderia ser pior: o Brasil praticamente parou de investir nessa área, enquanto um verdadeiro boom de construção e reconstrução de museus tomou conta dos países ricos a partir dos anos 80. As razões de tanto investimento são várias e vão desde propaganda e competição internacional até demandas sociais efetivas de maior acesso à cultura. Não se pode esquecer também da valorização dos patrimônios públicos e privados e, principalmente, do turismo. Nos países ricos, se sabe que além da significação cultural os museus movimentam engrenagens que propiciam grandes vantagens econômicas. Além disso, a nova ciência museológica, já devidamente reconhecida e organizada através do mundo, vinha pressionando pela melhoria das condições de guarda e exibição dos acervos.
A arte, como não poderia deixar de ser, também apresentou suas demandas. O que era discurso das vanguardas de cem anos atrás, finalmente virou prática corriqueira: o abandono dos suportes tradicionais. Hoje, a arte invade o espaço, requer energia e outros insumos que o museu tradicional não pode fornecer. Não se pode desconsiderar ainda o questionamento que essas instituições passaram a sofrer quanto à imagem de templo sagrado da cultura que adquiriram desde que foram constituídos no século XVIII.
Junte-se a isso a tendência à shoppinização do mundo (nada que não contemple o consumo e alimentação sobreviverá) e a importância que o público passou a ter dentro dos museus, não só em termos do seu conforto, mas também para que tenha maior acesso aos acervos e possa interagir, com auxílio dos computadores, com todo tipo de informação disponível e se entenderá porque os museus passaram por uma verdadeira revolução.
Para atender a tantas demandas, os arquitetos, por sua vez, desfrutaram de uma liberdade sem precedentes e deram à sua arquitetura uma dimensão inusitada, deixando, muitas vezes, que seu brilho rivalizasse com os acervos que abrigam. A complexidade dos museus serve ainda de licença, não raras vezes, para a dissociação da forma exterior com o seu conteúdo. Por outro lado, a preocupação com a inserção urbana e a utilização do seu potencial revitalizador de bairros tem sido um denominador comum bem explorado pelos arquitetos dos novos – e velhos – museus.
Artigo originalmente publicado, com o título Rebeldia com causa, no jornal Zero Hora, Caderno Cultura 2, no dia 05 jan. 2002.
[publicação: fevereiro 2002]
Flávio Kiefer, Porto Alegre RS Brasil