Há muito tempo que era aguardado este feliz momento – que culmina uma velha aspiração dos defensores do Movimento Moderno carioca –, da criação do Núcleo do Docomomo-Rio. Em 1997 a Fundação Oscar Niemeyer, fez um primeiro intento de organizar-lo, que inexplicavelmente, não deu certo. Hoje com o apoio da Faculdade de Arquitetura da UFRJ e com a participação dos dois Programas de Mestrado (PROURB e PROARQ), temos a honra de poder concretizar nosso grupo, que vai permitir somar mais uma voz na defesa do patrimônio moderno carioca, tantas vezes preterido, deformado ou destruído.
Para quem não está familiarizado com o Docomomo, resumamos brevemente a sua trajetória. Esta organização internacional sem fins de lucro, se dedica á documentação e conservação da arquitetura e urbanismo do Movimento Moderno. Surgiu na Europa nos finais dos anos oitenta, quando se percebia que com o processo de transformação das cidades pela dinâmica do neoliberalismo e a globalização, seriam eliminados importantes prédios construídos entre os anos 1930 e 1950, especialmente aqueles situados nas áreas centrais das cidades, para ser substituídos pelos novos e anónimos arranha-céus, sob a pressão da especulação imobiliária. E também, ao verificar o descaso dos governos com edifícios que por razões políticas ou ideológicas, não eram apreciados no seu valor estético ou histórico: por exemplo, a Biblioteca de Viipuri de Alvar Aaalto, que pertencia à Finlândia e que logo ficou no território da ex-URSS, praticamente abandonada por anos; o sanatório de Zommestraal na Holanda; e aCasa del Fascio em Como, em um primeiro momento mais identificada com o regime fascista; que com a sua significação estética no conjunto da obra de Giuseppe Terragni, um dos principais arquitetos do modernismo italiano.
Em 1990, na cidade holandesa de Eindhoven, surgiu o núcleo inicial do Docomomo, com a participação de um pequeno grupo de profissionais e pesquisadores – , 140 membros de 20 países – que rapidamente foi crescendo até chegar hoje a 2500 pessõas que acompanham as iniciativas do grupo; e com 500 membros efetivos de 42 países. O primeiro coordenador foi o holandês Hubert-Jan Henket com a colaboração ativa do secretário Wessel de Jong, que estabeleceram a sede em Rotterdam; e no ano 2002, foi nomeada coordenadora a pesquisadora e professora romana Maristella Casciato, e secretária a jovem e dinâmica Emilie d’Orgeix, ficando estabelecida em Paris a nova sede central. Além dos encontros e congressos realizados em diferentes regiões do mundo, o jornal do Docomomo e os livros publicados, permitiram conhecer as experiências e obras de países distantes, ou fora do circuito que aparecem nas histórias da arquitetura moderna, tanto da África, Ásia e os pertencentes ao ex-mundo socialista. E também desenvolveram temas especializados como o uso do concreto armado, e monográficos regionais: o primeiro número do ano 2006 esteve dedicado ao modernismo no Brasil.
Argentina foi o primeiro país da América Latina que se integrou no sistema – desafortunadamente com uma estrutura interna rígida e pouco democrática –; e em 1992 Beatriz Galvão, da Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Bahia estabeleceu a representação no Brasil. Posteriormente integraram-se o México, Cuba, República Dominicana, Colômbia, entre outros. Neste momento, estamos apoiando a criação do núcleo do Docomomo em Miami, para que desenvolva um relacionamento ativo entre América Latina e os Estados Unidos. A professora Beatriz se manteve na direção do Docomomo até 1999, ano em que a sede passou de Salvador a São Paulo, sob a direção de Hugo Segawa. Surgiram vários núcleos estaduais como os de Recife, Curitiba, Porto Alegre, São Paulo. E nestes anos começaram a se organizar encontros nacionais e estaduais, em Salvador, São Paulo e São Carlos, Viçosa, Niterói, Curitiba e Porto Alegre; com o internacional em Brasília no ano 2000, primeiro celebrado na América Latina, que teve grande sucesso e permitiu o relacionamento entre os pesquisadores e profissionais locais e os visitantes estrangeiros.
Historicamente o tema da conservação esteve tradicionalmente associado com os “monumentos” construídos desde a Antigüidade até o Neoclassicismo nos finais do século XVIII, e até os inícios do XIX. Com o desenvolvimento de historicismo acadêmico, e a cópia dos estilos do passado, se produz uma crise na valorização dos “monumentos”, em particular com a rejeição, no século XX, de toda referência histórica na nova arquitetura. No caso de América Latina, apenas as obras das primitivas civilizações americanas – em grande parte destruídas pelos colonizadores hispânicos –, e a arquitetura colonial eram consideradas patrimônio. Quando surgiu o ecleticismo e o historicismo, e no século XX, o Movimento Moderno, estas obras não entravam na categoria de preserváveis nas instituições internacionais: nem no Icomos, nem na Unesco. No conjunto de centenas de sítios e prédios integrados na Património Cultural da Humanidade, só recentemente foram assimilados pela Unesco Brasília, a Cidade Universitária de Caracas e a casa de Barragán na Cidade do México. Afortunadamente no Brasil, como a presença dos arquitetos modernistas no Iphan liderados por Lúcio Costa, paralelamente aos monumentos coloniais, foram declarados patrimônio nacional o Ministério da Educação e Saúde, a Igreja de São Francisco de Assis em Pampulha de Oscar Niemeyer (1947), a primeira construção de Brasília, o Catetinho (1959), a Catedral de Brasília (1962), entre outros.
Um dos principais problemas que dificulta a preservação do patrimônio moderno é o fato de ser constituído por edifícios utilizados para funções sociais – escolas, hospitais, bibliotecas, cinemas, fábricas, pontos de gasolina, clubes –, ou casas individuais. Ou seja, temas que não pertenceram ao sistema simbólico que identificava o “monumento”, e portanto sujeitos à uma rápida obsolescência ou mudança da função. E por outro lado, com a difusão do vocabulário modernista na arquitetura comercial – a redução das formas a sua mínima expressão funcional, por motivos econômicos –, a distinção entre um prédio sem valor estético e um com uma significação arquitetônica ficou difícil no consenso social. E também incidiu a pressão da especulação imobiliária, que necessita de terrenos livres nas áreas valorizadas economicamente, e que conta com o apoio dos políticos corruptos e insensíveis aos valores culturais da cidade, como acontece em forma persistente no Brasil. Isso significa que é importante estabelecer o valor cultural dos prédios na cidade, ou conjuntos urbanos – como é o Aterro e a Marina da Glória no Rio de Janeiro – por exemplo –, que estão estão sendo deformados com as recentes intervenções, supostamente necessárias para se adequar às necessidades dos Jogos Pan-americanos de 2007 –, e que merecem ser preservado para as gerações futuras, sem cair em dogmatismos ou preconceitos estéticos. Ou seja, é indispensável estabelecer um relacionamento dialético entre o Movimento Moderno e as manifestações de outros períodos, igualmente válidos. A obsessiva negação do historicismo por Lucio Costa, levou a perda do Palácio Monroe, do Solar Monjope, e de vários prédios da Avenida Rio Branco, que hoje serviríam de exemplo para os nossos alunos de arquitetura do que foi a exasperação formal do ecletismo e as arbitrariedades decorativas do Neo-colonial.
O objetivo a que se propõe o Núcleo Docomomo-Rio é participar ativamente na defesa do patrimônio arquitetônico e urbanístico carioca, em colaboração com as principais instituições de pesquisa e documentação, como a Câmara Setorial de Arquitetura, Engenharia e Urbanismo do Arquivo Nacional; as universidades – como a UFF e o NPD da FAU/UFRJ –; a Casa Lucio Costa, a Fundação Oscar Niemeyer, o IPHAN, e o Centro de Arquitetura da Prefeitura, entre outros. Procuraremos acrecentar o inventário já elaborado dos principais prédios e propor o tombamento a níveis municipal, estadual ou nacional dos que ainda não foram considerados até agora. Outra tarefa importante é não só divulgar trabalhos sobre o Movimento Moderno para que o grande público assuma o valor estético e cultural dos prédios deste período, mas promover pesquisas universitárias e intercambiar as experiências que se desenvolvem nas diferentes faculdades existentes na cidade: é um exemplo paradigmático o estudo das casas modernas através das maquetes realizado na FAU pela professora Beatriz dos Santos Oliveira. Mas um dos principais objetivos será lutar para que o Ministério de Educação e Saúde – que no dia 24 de abril de 2007 se comemoram os 70 anos da pedra fundamental colocada por Capanema – seja apresentado para a nomeação como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Este prédio é um ícone do Movimento Moderno, não somente da arquitetura carioca e brasileira, mas da América Latina, sendo o primeiro edifício moderno alto de escritórios na região.
Por último, desejo agradecer o apoio obtido do Diretor da FAU, Gustavo Rocha-Peixoto; da Coordenadora do Prourb, Denise Pinheiro Machado e dos membros do Docomomo-Brasil, que apoiaram a criação do Núcleo. Não podemos esqueçer a ajuda recebida de Hugo Segawa, Coordenador do Docomomo-Brasil. E agradecer principalmente à professora Ceça Guimaraens pelo seu esforço e entusiasmo na organização da exposição comemorativa do Salão do 31 que organizou Lucio Costa para abrir um espaço aos membros da vanguarda artística e arquitetônica brasileira no Rio de Janeiro e que marcou o início do Movimento Moderno carioca; iniciativa que se desenvolveu em colaboração com o MNBA e a Funarte. Tema presente no livro que se distribui hoje, Arquitetura e Movimento Moderno, também organizado pela Ceça, que resume um curso realizado com a participação de uma equipe de profissionais e pesquisadores cariocas, e que se insere na coleção de publicações apoiadas pelo Docomomo-Brasil. Também desejo parabenizar a equipe da direção do Docomomo-Rio – a professora da UFF, Marlice Azevedo e o doutor Renato Gama Rosa, da Fundação Oswaldo Cruz –, que estão colaborando com entusiasmo nesta nova empreitada. E não esquecer os membros do Docomomo-Rio, que ajudaram na difusão do nosso trabalho, e que participam ativamente nas iniciativas do grupo, que esperamos seja ampliado com novos membros. O Docomomo é uma instituição aberta á todos os que desejem integrar-se na luta pela boa arquitetura de todos os tempos, e pela cultura arquitetônica fluminense.
notas
NE - Discurso proferido no ato de criação do Núcleo Docomomo-Rio durante a abertura da exposição “Salão do 31”, no Museu de Arte de Belas Artes – MNBA, em 9 de novembro de 2006.
[publicação: janeiro 2007]
Roberto Segre, Rio de Janeiro RJ Brasil