“O céu é o mar de Brasília"
(Lucio Costa)
Nesse ano temos duas datas importantes para celebrar: o centenário de vida de Oscar Niemeyer e os 50 anos de realização do concurso do Plano Piloto de Brasília. Uma conjunção de datas felizes, excelente oportunidade para divulgarmos e refletirmos sobre a obra de dois grandes brasileiros: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Obras tão entrelaçadas, que para o grande público muitas vezes se confundem, como na concepção e realização de Brasília. A parceria intelectual, que se inicia ainda na década de 30 e firma-se no projeto e construção do Edifício do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro onde ambos tiveram participação decisiva, se estenderá por mais de 60 anos.
Considerado um marco da arquitetura mundial, primeiro “arranha céu” a seguir os cânones do modernismo: planta livre, brise soleil, pilotis e uma nova implantação no terreno e relação com o entorno, o edifício do MEC, incorpora as idéias do arquiteto franco-suíço Le Corbusier, consultor do projeto contratado pelo Ministro Gustavo Capanema, principal patrono do modernismo no país. Realizam-se aqui, a par de uma industrialização e urbanização incipientes, as idéias que embora surgidas no continente europeu, em condições sócio-econômicas e culturais bem diversas, ainda não haviam encontrado solo fértil para vicejar. Configura-se o fenômeno, recorrente no Brasil, de adoção de idéias deslocadas de seu arcabouço histórico, que Roberto Schwarz, tão bem descreveu em seu já clássico ensaio, “As idéias fora de lugar”.
Os caminhos dos dois arquitetos se cruzarão outras vezes, até desaguar em Brasília, onde juntos irão realizar uma das mais significativas expressões culturais do século XX.
A decisão do Presidente Juscelino Kubitscheck, em 1956, de construir Brasília, enseja a realização do Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil. Realiza-se o certame com a participação de 26 concorrentes, entre eles Lúcio Costa, que se apresenta como simples “maquis” do urbanismo. A ata do júri com a seguinte afirmativa, retrataria uma unanimidade que o tempo só viria a consagrar “O único plano para uma capital administrativa do Brasil”.
No “Relatório do Plano Piloto”, a certidão de nascimento da cidade, Brasília é apresentada, de forma singela e esquemática, porém carregada de simbolismo, lirismo e universalidade. São vinte e três itens, precedidos de uma breve introdução, acompanhados de alguns croquis e de uma planta geral. São descritos os princípios que devem orientar a implantação da cidade, sob a égide de suas quatro escalas estruturadoras: monumental, residencial, gregária e bucólica.
Lucio Costa lega a humanidade, uma síntese inédita de idéias e influências urbanísticas de diferentes épocas e geografias. Algumas delas reconhecidas pelo autor como a “filiação intelectual francesa e a lembrança sempre amorosa de Paris”, “os gramados ingleses”, “Piccadilly Circus”, “Times Square”, “Champs Elysées”, “Diamantina”, “os terraplenos chineses” e as “auto-estradas e viadutos dos arredores de Nova York”.
Um olhar cuidadoso, percebe além dos onipresentes princípios do urbanismo modernista, contidos na Carta de Atenas, elaborada em 1933, pelo Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. A presença do ideário dos socialistas utópicos do século XIX, da Cidade Jardim, do inglês Hebenezer Howard, da Cidade Linear, do espanhol Arturo Soria y Mata e da Cidade Industrial do francês Tony Garnier, se manifestam na estrutura viária, em sua relação com os edifícios e com o verde que a tudo emoldura. Influências tão diversas como Washington, capital dos Estados Unidos e Teotihuacan, cidade pré-asteca do México, também estão presentes na morfologia e no ordenamento urbano. O que parece dispare é catalizado e ordenado em um todo harmônico, onde as partes são identificáveis, mas a unidade é absoluta.
Ao completar 50 anos o Relatório se transformou em cidade, com modificações em relação ao traçado original, que não alteraram substancialmente sua força e expressividade, embora tenham repercutido em sua escala e funções urbanas. Brasília realiza um anseio histórico do país, por meio de idéias e formas que pertencem a humanidade, exibindo modernidade e historicidade, o que por muito tempo lhe foi negada. Colocou “no lugar”, as idéias que estavam fora dele.
É hora de celebramos a memória e obra de Lucio Costa, homem despojado, conhecedor como poucos da alma brasileira, que para criar o moderno, dedicou toda uma vida ao conhecimento do passado e a preservação de nosso patrimônio histórico e artístico.
PS – O artigo era para ser sobre o cinqüentenário do Relatório do Plano Piloto. Mas como falar de Lucio Costa e Brasília, sem falar de Oscar Niemeyer.
notas
[publicação: janeiro 2007]
Luiz Philippe Peres Torelly, Brasília DF Brasil