Amamos e odiamos nossas cidades quase que simultaneamente. Basta um comentário “forasteiro” para sairmos em defesa apaixonada da cidade em que vivemos. Mas entre nós, moradores, não poupamos críticas às carências e defeitos de nossa cidade, que tanto sofrimento nos causa. E os arquitetos, o que é que têm com isso?
Não é de hoje que nós, arquitetos, vagamos por infindáveis discussões teóricas e por inúmeros tratados sobre questões de programa e projeto, os chamados “métodos projetuais”. Esse é um tema que dá conformação à arquitetura ao longo dos tempos: é um fundamento. Mas nem por isso podemos afirmar que nossas cidades – as brasileiras – têm apresentado progresso em seus níveis de conforto urbano e de vida “conversável”, como gostaria Fernando Pessoa. Muito pelo contrário.
Pela própria natureza da arquitetura – transitar numa zona do fenômeno ou da fenomenologia – o espaço só existe quando experimentado, quando vivenciado no tempo de cada um ou de cada comunidade. Portanto, questões de programa e projeto estão imediatamente afeitas ao uso do espaço e às diferentes percepções dos diferentes usuários (cultural e psicologicamente falando). Não há abordagem absoluta ou exata para se chegar a um bom projeto arquitetônico. No processo projetual, como num jogo de xadrez, a cada ato ou decisão tomada, devemos rever táticas e estratégias para a obtenção dos fins; a cada ação, interferimos e modificamos a própria realidade com que estamos trabalhando. Programa e projeto se transmutam no tempo/espaço da realização arquitetônica, dos primeiros estudos e abordagens do problema, ao final da obra e sua ocupação e uso. Mudanças políticas e contingências de toda ordem afetam diretamente a arquitetura.
Definitivamente, arquitetura não é uma disciplina exata. Vivendo entre a arte e a técnica, produzindo arte e técnica, ela é também poética.
Podemos identificar em vários momentos da história da arquitetura ocidental quando é que conceitos de programa e projeto estiveram absolutamente integrados, fundidos em unidade de ação, e quando estiveram dissociados, dando espaço para a produção de uma arquitetura de baixa qualidade. Com raras e boas exceções, vivemos hoje, de modo geral, este segundo momento, em que o projeto se desvincula do programa de tal maneira que as conseqüências nefastas são imediatamente sentidas em nossas cidades, no nosso cotidiano.
Abrindo um parêntese, é importante esclarecer aqui que não estamos falando de programa como um simples elenco de necessidades espaciais. Entendemos por programa a mais abrangente e profunda demanda humana, seja no âmbito da vida íntima, individual, seja na vida em coletividade, pública. Programa enquanto tomada de consciência do significado ou da identidade do lugar, do lugar enquanto sítio habitado ou em vias de o ser. Cito aqui o arquiteto português Álvaro Siza: “uma coisa é o lugar físico, outra coisa é o lugar para o projeto. E o lugar não é nenhum ponto de partida, mas é um ponto de chegada. Perceber o que é o lugar é já fazer o projeto”.
Portanto, projetar é captar e inventar o lugar a um só tempo.
Vivemos a época da pós-cultura do espetáculo, a cultura da aparência. Nos dias de hoje, importa menos o que você é do que o que você parece ser. Aparência é tudo. Aparência como fim em si mesmo. E a arquitetura é um dos melhores veículos dessa falácia. Não importando o programa, seu conteúdo, ou, como quer Siza, o “lugar”, o projeto toma o rumo e as regras do mais cruel formalismo. Cruel porque despreza o fato de que seu objetivo final é o uso – o comportamento humano e o próprio ser humano, com suas idiossincrasias, suas diferenças culturais, suas diversas concepções de mundo e formas de estar no mundo.
Assim, a arquitetura se desumaniza, brindando às aparências, criando simulacros ou formas dissimuladas de segregação, dominação e poder. São os incontáveis marcos urbanos nefastos.
Podemos aprofundar um pouco mais esta idéia de programa para além da demanda explícita ou subjacente de um grupo ou de grupos de pessoas. Podemos agregar ao conceito de programa o uso ou a vida que se dará no futuro espaço a ser construído, fatos posteriores, portanto, ao projeto. Se concebermos projeto como forma analítico-investigativa e propositiva a um só tempo, estaremos fundindo os conceitos de programa e projeto em uma mesma unidade de ação. Ação que lê, avalia, interpreta, propõe e modifica relações humanas, comportamentos individuais e coletivos, trocas e convivência; ação que produzirá conforto ou desconforto, serenidade ou agitação, prazer ou sofrimento. Afinal, projetar é desejo de realizar algo no futuro.
Saber interpretar, ler, traduzir em espaço a vontade mais íntima do individuo ou anseios coletivos, é a tarefa do arquiteto. Ao projetar, o arquiteto deve dar muito de si, deve se colocar na situação “do outro”, vestir as várias “peles do lobo” nas inúmeras situações que podem se apresentar. Ao projetar um restaurante, ser cozinheiro e gourmant; um hospital, ser doente e médico; uma escola, ser aluno e professor... Arquitetura será assim entendida como uma roupa que vestimos, ou que nos veste: confortável, justa, apropriada ou absolutamente desconfortável e imprópria – física e psicologicamente falando. E não importa se a escala é a do objeto, a da casa ou a da cidade. O desenho de um copo ou de uma cadeira importa tanto quanto o de uma praça ou de um boulevard.
Esse discurso pode parecer um exagero quando refletimos sobre nossa prática arquitetônica. Mas o fato é que nessa prática tudo cabe. Na poética da arquitetura, podemos abarcar bons bocados do mundo, seja no tempo, seja no espaço. Guiamos-nos pela imaginação e pela responsabilidade civil, pela liberdade de criação e pela busca de rigor em nossos projetos.
Em se tratando de programas ou demandas de espaços públicos ou marcos urbanos, existem momentos em que devemos ser muito contundentes, afirmativos em nossa proposição/projeto. Mas existem também aqueles momentos em que devemos quase desaparecer, como um contra-regra de teatro: dar toques mínimos em pontos específicos, ser invisíveis, ajeitar coisas com mãos leves... e o resultado se sentirá. Cito aqui o exemplo do SESC – Fábrica da Pompéia, que vai da delicadeza da recuperação e restauro da antiga fábrica de tambores à violência da inserção dos blocos esportivos em concreto aparente, com suas passarelas feéricas a la “Metrópolis”, de Fritz Lang. O fazer arquitetônico transita entre estes dois extremos, cabendo a cada um de nós, arquitetos, acertar o ponto. E aí não se trata de loteria ou sorte. Nossas escolhas deliberadas afetarão irremediavelmente a vida de muita gente, uma vez que arquitetura, quando realizada, não poderá ser guardada numa gaveta ou posta fora pela janela. Será sempre mais uma graça ou desgraça de nossas cidades.
notas
Extraído de palestra realizada em São Paulo em novembro de 2006 e publicado originalmente na revista Cult, n. 113, ano 10, maio de 2007, p. 47.
sobre o autor
Marcelo Ferraz é arquiteto formado pela FAU-USP em 1978, é sócio do escritório Brasil Arquitetura, onde tem realizado vários projetos com premiações no Brasil e exterior. É também sócio fundador da Marcenaria Baraúna, onde desenvolve projetos de mobiliário, desde 1986.
Marcelo Ferraz, São Paulo SP Brasil