No debate sobre a promoção de grandes projetos como meio de produção do espaço urbano a comparação com iniciativas internacionais oferece uma limitação fundamental habitualmente subestimada: o replique do modo de financiamento e governança desses contratos ao contexto nacional.
O exame da arquitetura institucional dessas iniciativas demonstra freqüentemente um Estado forte ou uma iniciativa privada atuante, senão ambos.
Na comparação com casos brasileiros é comum a prerrogativa de que a iniciativa privada deva possuir um papel mais preponderante na promoção do desenvolvimento urbano estratégico, participando mais ativamente dos investimentos em conjunto com o Estado. As arquiteturas possíveis desse arranjo são inúmeras...
Todavia, se observarmos o processo de desenvolvimento urbano e seu contexto, veremos que a iniciativa privada nunca deixou de atuar segundo seus interesses, muito pelo contrário. Desse modo, nesse caso, a oposição Estado-Mercado aparenta ser uma prerrogativa que, mesmo que verdadeira, não explica a dinâmica do desenvolvimento urbano e imobiliário de nossas metrópoles a contento.
O exame desse campo pela perspectiva das teorias de custos de transação e de agência nos oferece, todavia, um panorama promissor.
Tendo em vista a impossibilidade do Estado e da iniciativa privada atuarem do mesmo lado em relação ao interesse público, como poderiam atuar na mesma direção? Somar esforços sem abrir mão de seu papel inerente?
A título de simplificação tomemos 3 agentes da produção do espaço urbano: o Estado, a Demanda e a Iniciativa Privada, detentora do capital financeiro e de parte da terra.
No que tange ao Estado o quadro é conhecido: a pressão por um severo ajuste fiscal associado à quebra do Sistema Financeiro da Habitação – SFH limita fortemente a possibilidade de alocação no setor habitacional e a capacidade de financiamento do setor imobiliário.
Quanto à esse ponto é significativo, mas longe de suficiente, a mudança na política de inversões da CEF promovida pelo Ministério das Cidades.
No que tange à iniciativa privada, detentora de terras ou imóveis ociosos, a disposição de investimento desses agentes é dada pela taxa de juros. Desse modo, tanto à capacidade de financiamento (leverage) quanto a disposição ao risco desse grupo é bastante baixo, senão uma das menores do mundo.
Novamente, é relevante as recentes observações de Maricato no Ministério das Cidades quanto a descontinuidade do tecido urbano como fator de encarecimento da terra por dificultar a provisão de infra-estrutura urbana.
Como resultado imediato observamos que a menos que o IPTU progressivo, previsto no Estatuto das Cidades, supere a taxa de juros, a efetividade desse instrumento será praticamente nula.
Para alterar essa razão, portanto, é necessário que os juros baixem muito ou que o uso social da terra, refletido na taxa de progressividade do IPTU, seja relacionada à taxa de juros praticada (1). Nesse meio tempo, em caso de autuação, o emprego de recursos judiciais por parte dos proprietários garante a rentabilidade do seu capital (2).
Essa condição, por si só, praticamente compromete quaisquer iniciativas de Land-Pooling ou de incorporação Público-Privada na promoção do espaço urbano.
Como alternativa, a produção do espaço urbano e da construção exceto poucos casos, tem se valido de estratégias de financiamento imobiliário que lançam mão de mecanismos de pulverização fundiária.
Quanto à esse ponto é sabido que a vocação imobiliária responde à contextos topológicos, logo, mudanças no ambiente de entorno refletem-se no valor do metro quadrado local.
Novamente salvaguardadas as exceções, imóveis tendem à mudar de vocação e adquirir um número crescente de proprietários no decorrer do tempo (pais passam para filhos que passam para netos, etc.).
Num período de trinta anos áreas inteiras sofrem mudança de vocação e, salvos os investimentos em infra-estrutura, testemunham decadência, seja fruto do crescente do custo de manutenção do parque construído, seja fruto da necessidade de investimentos para adaptação no seu uso.
Haja vista a dificuldade de financiamento, quanto mais baixo o extrato social, mais crítica essa condição.
Nesse quadro, projetos de renovação do parque construído costumam ter custos de transação altíssimos. Depara-se com uma miríade de proprietários e custos proibitivos de renovação arquitetônica.
Nesse contexto, a decadência persistente do imóvel e sua inaptidão vocacional vão minando o valor do parque construído e, não raro, proprietários interrompem o pagamento de tributos deteriorando o quadro condominial, reforçando o ciclo descendente de valorização.
Novamente, não raro, sem condições de honrar os compromissos imobiliários, proprietários passam a operar no mercado informal.
O Estado por sua vez, frente à sua incapacidade de fiscalização e arrecadação, assume papel passivo, afinal trata-se dívida creditícia a receber, valor este que, apesar de não haver qualquer liquidez, ajuda a fechar o rombo municipal.
Pronto, está constituída uma situação de suspensão de incentivos – hold up – (3), configurando, como diz Tendler (4), um trato com o demônio (devil's deal), onde todos são prejudicados, assim desenhado:
- grandes proprietários mantém seu dinheiro investido no banco ou à procura de oportunidades "da china";
- os pequenos proprietários passam a apelar ao mercado informal;
- o Estado comodamente observa a situação valendo-se da arrecadação de créditos sem liquidez ou valor real.
Como exibido freqüentemente nas TVs, as regiões do Glicério, Parque Dom Pedro, 25 de Março e do Pari são testemunhas desses contratos extrajurídicos envolvendo o estoque de mercadoria ilegal.
A alta taxa de vacância da região central, por sua vez, também se encaixa nesse quadro.
Como mitigar essa situação? Como criar uma conjunção de interesses que permita a construção de uma alternativa de Governança (novos contratos, novos acordos)?
Podem ser identificadas algumas medidas, dentre outras, a reversão do padrão de financiamento por pulverização fundiária:
1. Incentivo ao remembramento fundiário em regiões ditas críticas e dotadas de infra-estrutura:
1.1 Mediante compromisso de investimento perdoar-se-ia a dívida mobiliária e imobiliária, permitindo a reinserção competitiva de uma parcela do parque imobiliário hoje relegada à ilegalidade.
A medida oferece vantagens por todos os lados:
- mediante a injeção de crédito os proprietários do parque construído decadente poderiam retornar à legalidade incrementando níveis de arrecadação municipal e estadual.
- o novo parque construído, por sua vez, geraria uma nova arrecadação no lugar do Parque obsoleto devedor.
- ocorre o retorno de grande parte do parque construído ao mercado o que, em tese, derruba o m2 aquecendo o mercado imobiliário.
- o estado pode "desenhar" as novas condições de investimento promovendo desenvolvimento planejado.
- as vantagens de uso intensivo da terra em torno de áreas dotadas de infra-estrutura é conhecida.
- podem ser associados à Operações Urbanas e à venda de CEPACs.
Como exposto acima, se por um lado essa parte podre do mercado imobiliário ajuda a fechar as contas públicas, por outro, será necessário crédito para o setor. Daí um possível papel para as agencias de financiamento.
Naturalmente programas dessa natureza devem ser devidamente desenhados e precedidos de pesquisas e estudos econômicos aprofundados. Uma tarefa nada trivial. Fica, todavia, um argumento para discussão: A lógica acima descrita é procedente? Qual o efeito da vinculação do IPTU progressivo à taxa de juros?
Está aberto o debate.
notas
1
Aqui cabe uma ressalva: estou descrevendo um mecanismo que talvez mereça maior exame e não advogando uma solução expropriatória.
2
Esta é outra possível linha de intervenção que novamente merece maior exame quanto à sua pertinência.
3
WILLIAMSON, O.E. “The Institutions of Governance”. In: The New Institutional Economics, Vol. 88, nº 2, maio de 1998; “The Theory of the Firm as Governance Structure: From Choice to Contract”. In: Journal of Economic Perspective, Vol. 16, nº 3, verão de 2002, p. 171-95.
4
TENDLER, J , Small Firms, the Informal Sector, and the Devil’s Deal, Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, Massachusetts 02139, IDS Bulletin [Institute of Development Studies], Vol. 33, No. 3, July 2002.
sobre o autor
André I. Leirner graduou-se pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em 1992. Concluiu seu Mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Architectural Association of London em 1999. Cursa mestrado em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo desde 2004. Desenvolve trabalhos nas áreas de Desenvolvimento Urbano, Políticas Públicas, Arquitetura e Urbanismo.
André Leirner, São Paulo SP Brasil