"Somente é um caos aquela confusão da qual pode surgir um mundo".
(Friedrich Schlegel)
Haveria um antes? Ou tudo começa ali? Quando se passa do caos à ordem? O maestro entra para reger sua orquestra. Antes disso não há nada. Comanda à parede que se solte e um bloco vem, gêmeo de outra coluna que nunca saiu dali. A linha no papel, o traço inicial, desperta. Desenhos. Linhas saem a bailar corpóreas, prontas a tornarem-se outras coisas.
Sopro o instante para trás. De tudo solto, encaixilho os planos detendo-os em estado de planos-parede, planos-papel, linhas, pontos. Prendo a respiração e vejo o mundo sem espessura, em repouso. Os desenhos vão para um estado ‘de antes’. Mas só em falsificado alcance os apreendo, demarcados por imaginário compartimento, como o existir da gente, pessoa sozinha numa página (2). Quanto tempo é possível ficar assim, imóvel? A vida, como não a temos.
Relaxo e tudo volta a mover-se. O ar reacomoda-se ao ritmo da obra e da enganosa solidez das paredes brancas descola-se um cubo cênico. Ou será que sou eu a entrar nas moléculas parietais? Agora as vejo e vejo o ar entre elas como coisas de desenho. Os traços, o ar, alguma cor, outrora incorpóreos, rasgam-se em objetos, pedra e túneis vazios por onde meu corpo pode passear. Seria de fato sólida como supunha?
Achato tudo de novo, seqüestrando sua extensão. Quero ver esse instante quando o papel e a linha concordaram que não havia apenas ambos, que era preciso dar a ver o ar que trocavam. Quero ver quando desafiaram pela primeira vez minha solidez corpórea, como conseguiram contar que vivíamos assim, simplesmente.
Respirando ‘o ar’.
Não é ar, é ‘o ar’, um ar nomeado, corpóreo, quase visível. Paradoxalmente desenhado e regido à distância, determinado e indeterminado, tocado e intocado. Ao respirá-lo, aspiro sua condição de ‘o ar’, abandonando e enfatizando a minha própria, outrora supostamente sólida e só. Sua musicalidade regida torna-o arquitetura que, em sua trama com as coisas, costura partes de um todo incomponível. Vejo a rede: uma porção de buracos, amarrados com barbante.
As coisas, conforme caminha a regência, passam de ‘seres’ a ‘estados de ser’. Tudo se move, mas é difícil - seu movimento é pesado, lento, curtido. O que as prende umas às outras se dá a ver: o cubo cênico, as vitrines, as molduras, a parede, o lugar de exposição. Tudo se move lentamente, retardado por amarras inevitáveis, que também as definem como coisas em estado de transição. Como nós, talvez as coisas temam perder-se no abismo do devir, no abismo entre ser isso ou aquilo – só a prisão o salve do demasiado.
Logo que ‘o ar’ que as une se for, serão apartadas. Sabem que não podem sobreviver como partes. Hão de ser outras coisas, separadas e ainda unidades, e devem portar-se como tal. Devem carregar sua cifra rítmica em si mesmas, devem ser elementos após sua divisão. Esse quase-todo é temporário, na iminência de desfazer-se. Paradoxalmente, precisarão ser outras coisas e não meras repetições do mesmo.
Cientes do dissolver-se iminente e datado pelo fim da exposição, aprontam-se para essa vida para-além. Aparelham-se de seus limites: o cubo cênico, a moldura e o vidro. Despedem-se com certa certeza do destino de coisa privada até nunca mais ver. Vestem seus próprios contornos, antecipando interferências. Correm a levar o máximo, a portar o élan do momento em que nasceram, em que lhes foi dada a vida.
Pergunto-me se serão capazes de voltar a definir a arquitetura do ar daqueles que as adquiriram ou se tornar-se-ão simples memória de uma vida anterior. Pergunto-me o quanto podem prescindir da recriação poética de cada olhar porvir e o que podem fora do limitado controle de seu criador sobre seu devir. Com vaga clareza noto que, de alguma maneira, isso tudo já está ali. Assusta, a intransparência equívoca das pessoas, enviadas. Elas não são. A alma, os olhos - o amor da gente - apenas começam.
Despeço-me, no último minuto do último dia, de seu estado de galeria. Mas não nos posso condenar de, juntos, não podermos mais vir a acontecer – é como se todavia alhures estivéssemos acontecendo, sempre. Nós dois.
notas
1
Exposição de Waltercio Caldas – Rio de Janeiro, Galeria Artur Fidalgo, de 19 de setembro a 20 de outubro de 2007.
2
Todos os itálicos – mas não apenas – referem-se a ‘Quadrinho de estória’ ou ‘Aletria e Hermenêutica’, de João Guimarães Rosa (In ROSA, João Guimarães. Tutaméia. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1967).
sobre o autor
Renata Reinhoefer França é Mestre em Artes pela UERJ, na linha de pesquisa ‘História e Crítica de Arte’. Em 2002 fez a ‘Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil’ pela PUC-Rio e, em 1999, cursou a ‘Especialização em Teoria da Arte Fundamentos e Práticas Artísticas’ pela UERJ.
Renata Reinhoefer França, Rio de Janeiro RJ Brasil