Geometria
“A sombra é uma testemunha do encontro entre o mundo das coisas materiais e um mundo em que a matéria não parece tão importante”
(Robert Casati, A descoberta da sombra)
A Praça Turca (1), projeto de Naia Alban e Moacyr Gramacho, é um desenho de sombra. Seu nome, ou melhor, seu apelido, indica um rastro de inspiração. Rastro porque, distante de uma precisão de referência, este nome quer nos levar a um certo espaço de cultura mediterrânea cujas soluções arquitetônicas conectam respostas sedimentadas no decorrer do tempo, que associam o universo cultural islâmico a uma natureza seca, de calor e ensolejamento intenso durante o dia, em uma analogia às condições geográficas do sertão nordestino. A opção por uma tectônica precisa é portanto acertada: seus pilares estereotômicos espaçados com base em um padrão modulado em cinco metros em ambas as direções sustentam a rede regular de faixas entrelaçadas feitas de um material reciclado à base de pet e tetrapak.
Ser mediterrânea de inspiração dá conta também de um aspecto fundamental em sua composição, aquele da geometria pura das edificações, dos cálculos matemáticos e estudos astronômicos que tiveram em sua origem uma grande ajuda da sombra. Os autores do projeto da Praça Turca indicam ainda a Mesquita de Córdoba como uma estação dentro deste percurso que o rastro nos indica. Há, porém, mais sutileza aqui do que um rápido recurso ao vocabulário visual guardado na memória possa sugerir: sim, a Mesquita de Córdoba com a regularidade de pilares e arcos duplos superpostos sustentam um forro de madeira organizado em faixas paralelas; e o brilho descontínuo e não figurativo das placas de material reciclado poderiam remeter um observador mais desatento à tradição islâmica do "ornamento" abstrato desafiador constante da estrutura em sua expressão mais ontológica.
Mas esta outra pista de filiação para entendermos a Praça Turca só se torna válida caso levarmos em consideração o pátio de laranjeiras, dispostas com o mesmo rigor geométrico das colunas da mesquita, fornecendo sombra contra o sol da Andaluzia. Entre o interior da Mesquita e o exterior do pátio há uma relação que de uma perspectiva tradicional poderia ser chamada de mímesis, mas se observarmos a relação em si, nas duas direções e por isso autônoma, passamos a compreender um sentido maior do que é transcrito pelo abstrato, do que indica graças à geometria o valor do imaterial através do material. Uma relação frágil, aberta, múltipla, até mesmo esmaecedora por indicar apenas como vestígio aquilo que efetivamente não pode estar ali.
Daí que a sombra da Praça Turca passeia como possibilidade geométrica, ou como delirante expressão testemunhal de um acertado encontro entre dois mundos agora multiplicados em diversos planos.
Lirismo
O terreno onde a Praça Turca foi erguida não é um quarteirão reservado para tal, este não é um largo no sentido português, esta não é uma rótula de tráfego, esta não é uma praça cívica herdeira das zonas de pedestres de uma cidade tradicional. Ela está construída sobre um terreno que se tornou praça simplesmente por não ter sido ocupado por uma edificação.
Apenas o recente progresso material advindo da expansão do agronegócio decorrente das áreas servidas por irrigação abriu a possiblidade para Juazeiro vir a ser pensada como uma cidade com alguma infra-estrutura, uma cidade menos feia. Juazeiro ainda tem calçadas estreitas e é difícil perceber qualquer noção de urbanismo em uma cidade rasgada ao meio por uma estrada federal. Mas os impulsos dos últimos anos possiblitaram uma série de iniciativas públicas e privadas, que tentam dar conta desta demanda por qualidade em forma de grandes projetos urbanos, espaços públicos, loteamentos e edificações.
A atuação do escritório Sete43arquitetura em Juazeiro abarca toda esta amplitude projetual. Do Parque das Estações, projeto não construído para um parque de exposições agropecuárias com uma área de 7 ha, a residências unifamiliares, como a Casa Muro, objeto de publicação em periódico estrangeiro (2), o conjunto da obra de autoria de Naia Alban e Moacyr Gramacho desenhada para a cidade envolve um número significativo de produtos de um exercício arquitetural pautado por uma interpretação acertada, pessoal e lírica de um lugar duro, áspero e vibrante. Anteparos verticais em pedra calcárea ou tetos leves e translúcidos de casas como a Barco, Compacta ou Gesto, planos precisos e angulares definindo conexões entre espaços públicos conquistados, como no Memorial do Vapor e Praça Costura, são exemplos contundentes desta interpretação incorfomada e apaixonada. A Praça Turca, um momento de síntese feliz deste exercício aberto, se pudesse ser transcrita, assim o seria, sem deixar de se servir das palavras de um canto sobre a cidade: frente a tanta dureza, contra o lume que embriaga ali onde tudo arde (3), a leveza da sombra.
Contra a corrente
Em ensaio publicado em Oppositions no ano de 1984 entitulado Três Gêneros de Historicismo (Three Kinds of Historicism), Alan Colquhoun conclui afirmando que
"A história oferece tanto as idéias que necessitam de crítica como o material a partir do qual esta crítica é forjada. Uma arquitetura que seja constantemente consciente de sua própria história mas constantemente crítica em relação às seduções da história é aquilo que nós deveriámos almejar hoje em dia" (4).
Boa parte produção de arquitetura do Brasil nos últimos anos que se mostrou consciente de sua própria história parece ao mesmo tempo extremamente seduzida por ela. Como resultado, os concursos nacionais que há mais ou menos quinze anos dão prêmios às variações de tamanho da caixa de concreto horizontal com um pátio interno e alguns planos de brises para "quebrar o peso". Ainda que esta observação não seja exatamente nova, haja vista o esforço da curadoria da exposição Encore moderne? Architecture brésilienne 1928-2005, apresentada em Paris, em ampliar o panorama da produção contemporânea para além desta nova ortodoxia, ela não deixa de continuar atual.
O Prêmio concedido pela Bienal VI Iberoamericana ao projeto do escritório sete43arquitetura não é somente um reconhecimento de um panorama mais amplo da produção de arquitetura no país. É também o reconhecimento merecido de uma obra que sabe operar tanto com a história como também com o lugar de maneira consciente, crítica e distante de cair em qualquer sedução fácil. Sua sombra, como todas as "sombras antigas", vestígios intermitentes, é quem estar ali para seduzir.
notas
1
Por ocasião da concessão do Prêmio Melhor Obra de Arquitetura de Espaço Urbano na VI BIAU, Bienal Ibero-americana de Arquitetura e urbanismo, realizada em Lisboa de 28 de abril a 2 de maio de 2008.
2
Casa Muro. In 30-60 Cuaderno Latinoamericano de Arquitectura, v.9, 2006, p. 62-69.
3
Referência ao texto da canção O Ciúme, de Caetano Veloso, do álbum Caetano, Polygram, 1987.
4
COLQUHOUN, Alan. Three kinds of historicism. In NESBITT, Kate (Org.). Theorizing a new agenda for architecture: an antology of architecture theory 1965-1995. New York, Princenton Architectural Press, 1996, p. 209.
sobre o autor
Márcio Correia Campos é arquiteto formado pela UFBA, Brasil, Mestre em Arquitetura pela Universidade Técnica de Viena, Áustria, atualmente doutorando da Universidade Técnica de Munique, Alemanha.
Márcio C. Campos, Salvador BA Brasil