Com uma emenda de última hora, os concursos públicos de arquitetura não foram extintos na nova lei de licitações aprovada pelo Senado (1). Vitória da arquitetura? Ledo engano pessoal.
A lei aprovada é uma lei contra a cidadania, ela legaliza a corrupção no poder público.
Nós, os artistas
O problema maior desta lei para nós arquitetos é o desrespeito e a ignorância da nossa profissão. Pela leitura do texto, vemos que não somos coordenadores de projetos, somos “artistas”.
Esta lei ridiculariza a nossa profissão. Mesmo sem a emenda de última hora, a administração pública podia, sim, fazer uma licitação sob a modalidade “melhor técnica ou conteúdo artístico” (seção III, dos critérios de julgamento).
Qualquer prefeito pode dizer que a amiga de sua filha, grande artista, que até já publicou uma casa em uma revista especializada, participou de um “concurso de arquitetura” e apresentou o melhor “conteúdo artístico” entre as propostas. E contratá-la legalmente para construir a nova prefeitura do município.
Simples assim. Está na lei!
Antes havia definições claras de como fazer e de como julgar. Agora tudo é possível.
Dependemos da honestidade dos nossos políticos.
O (des)interesse público
O grande problema desta lei é a presença de inúmeros subterfúgios para converter os termos definidos e normatizados em dúbios e interpretáveis. O maior deles é criar o termo “Projeto Completo”.
O Projeto Básico é definido por norma da ABNT, assim como o Projeto Executivo. A lei institui um termo sem definição técnica para poder ser interpretado ao léu.
O que é o “projeto completo”? Não existe uma definição clara. A lei chega ao absurdo de dizer que o “projeto completo” deve conter informações que permitam a “dedução” dos métodos construtivos! (artigo 5º, item XXIII, alínea d). Colegas, não precisamos mais definir os métodos construtivos nos nossos projetos. Os engenheiros da obra vão deduzir. Simples assim.
A contratação integrada
Outro absurdo que impressiona pela cara-de-pau é o termo “contratação integrada” (artigo 5º, item XXX), onde o poder público pode, legalmente, contratar uma empreiteira para fazer o projeto e a obra a partir de um estudo preliminar. E esta contratação pode ser feita por preço global, gente! Nenhum problema. Com um estudo preliminar se contrata uma construtora que irá elaborar o projeto básico, o projeto executivo e executar a obra. Não é necessário nenhum controle. Agora está na Lei. Foi aprovado pelos senadores!!
A “saudosa” 8.666
Sempre fui um defensor da 8.666. Sim. Era uma lei que defendia o interesse público. Precisa, chata e com problemas. Sim. Mas eram problemas pontuais. E eram poucos pontos. A lei não fazia distinção entre contratação de projeto e de obras. Isto gerava grandes problemas que enfrentamos durante anos.
Os políticos detestavam a lei: coibia a criação de privilégios, estabelecia várias regras burocráticas, e sobretudo sempre impedia o atendimento dos ditos “prazos políticos”, sempre com a pressa de quem não planeja.
Na leitura geral da nova lei, ficam duas impressões claras. A primeira, o desconhecimento total da profissão do arquiteto: a lei ignora totalmente nossa função. Quando a categoria é citada (três ou quatro vezes na totalidade do texto), é associada à estética e ao lado “artístico”. E a segunda, a principal, este texto legaliza as práticas corruptas da administração pública. Tudo é possível com esta nova lei. Possível e legal.
Os arquitetos deveriam fazer apelo aos engenheiros, aos advogados, mas sobretudo aos cidadãos em geral para que os políticos não consigam legalizar as práticas de corrupção e privilégios que estão se concretizando.
Um outro Congresso é possível!
Glossário
Contratação integrada – prática que consiste em instituir a vigilância das ovelhas por lobos famintos.
Honestidade dos políticos – conto de fadas.
Projeto completo – pode ter plantas, cortes e fachadas, mas não necessariamente.
Interesse público – termo antiquado sem nenhum significado na nossa sociedade.
nota
1
AGÊNCIA SENADO. Senado aprova alterações na Lei de Licitações e projeto vai à Câmara. Brasília, Senado Federal, 13 dez. 2016 <http://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2016/12/senado-aprova-alteracoes-na-lei-de-licitacoes-e-projeto-vai-a-camara>.
sobre o autor
Jupira Corbucci é arquiteto e sócio titular do escritório Bacco Arquitetos.