Mais uma ameaça faz estremecer o nosso chão já tão devastado por inúmeros e reiterados absurdos jurídicos, imoralidades políticas e impropriedades técnicas. Corre em São Paulo a notícia de uma possível exclusão de representantes das universidades paulistas do Colegiado do Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado.
Lembremo-nos de que até o início dos anos 1980, a USP era a única universidade a se manifestar nesse Colegiado, criado em 1968 junto com o Conselho. As áreas de conhecimento contempladas naquele momento eram as tradicionalmente associadas à preservação do patrimônio: História, História da Arquitetura e Arqueologia. No início da redemocratização, uma reforma na composição do Conselho permitiu a inclusão de representantes das três universidades estaduais (USP, Unicamp e Unesp) e de outras áreas de conhecimento.
Essa medida não significava apenas o fortalecimento quantitativo das bases acadêmicas da preservação, mas – em consequência disso – um aumento de sua massa crítica e a necessária diversificação das razões pró ou contra a adoção e implementação de medidas de acautelamento de bens culturais. Tinha início a ampliação do conceito de valor na prática patrimonial e a consequente diversificação das bases conceituais, dos procedimentos e agentes da preservação. Passavam a ser ouvidas também, no Conselho e no órgão de assessoria, reivindicações da sociedade civil cujo encaminhamento correto demandava a colaboração de antropólogos, geógrafos, biólogos, entre outros. Além disso, tornaram-se mais visíveis e presentes, nas reivindicações e deliberações preservacionistas, as peculiaridades das diversas regiões do Estado, na voz dos movimentos sociais e de pesquisadores trabalhando nos diversos campi das universidades públicas paulistas.
É importante lembrar que a colaboração dos acadêmicos de origens institucionais, disciplinares e mesmo regionais diversas e sua livre manifestação no Colegiado, com direito a voz e voto, são um caminho legítimo, eficiente e talvez inevitável para o cumprimento, no âmbito do Estado de São Paulo, do que estabelece o Artigo 215 da norma constitucional segundo a qual o Poder Público promoverá, com a colaboração da sociedade – e não com a ampliação progressiva do espaço de representação do próprio Estado, como se tem observado – a salvaguarda dos bens culturais “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.
Não conheço as razões alegadas para a pretendida mudança e não consigo imaginar alguma que pareça razoável. Se for o propalado – e necessário – corte de gastos públicos, é bom lembrar que a colaboração dos acadêmicos significa prestação de serviços de assessoria de alto nível e pro bono, ou seja sem custos, em benefício – em princípio – do Conselho e da sociedade.
Vale então considerar a possibilidade de nuvens obscurantistas estarem se acumulando, uma vez mais, sobre os campos precariamente floridos da preservação; campos estes que, aliás, têm sido com frequência espaço de luta contra a barbárie e contra o 'poder da grana' no Brasil e alhures. Vale lembrar a recente tentativa, chocante, criminosa e imoral, de pressionar o Iphan a ceder diante de interesses imobiliários de indivíduos politicamente influentes.
Devemos nos opor – fortemente – a qualquer retrocesso obscurantista, que conduza a gestão preservacionista na contramão do que se procura fazer em todo o mundo, ou seja, a salvaguarda do patrimônio cultural tangível e intangível, orientada pelo respeito à diversidade, à sustentabilidade, aos direitos culturais, que se vale do conhecimento acadêmico e busca os caminhos abertos pelo avanço da democracia.
sobre o autor
Antonio Augusto Arantes Neto é professor titular de antropologia da Unicamp e ex-presidente do Condephaat, do Iphan e da ABA – Associação Brasileira de Antropologia.
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Foto Keila Vieira