A cada dia fica mais evidente a exacerbação do ódio nas relações humanas. A agressividade manifestada através das redes sociais extrapolou os limites do mundo virtual e se instalou sem o menor pudor em nossa vida cotidiana. Esse comportamento raivoso, insensível ao sentimento do outro, revela a intolerância, o preconceito e a incapacidade do indivíduo ou de certos grupos aceitarem pacificamente as convicções alheias.
Haverá algum meio para reverter essa perversa realidade? Para o dramaturgo Nelson Rodrigues, “o homem não vive sem ódio. Quando não tem a quem odiar, odeia a si mesmo. Um dia, arrancará a própria carótida e chupará o sangue como um vampiro de si mesmo”. Não obstante o fatalismo desta afirmativa, deverá existir alguma maneira de resgatar os princípios básicos da formação humanista e do bom convívio social. Não dá para aceitar passivamente a postura egocêntrica de quem tem o olhar voltado unicamente para os seus interesses pessoais.
As próprias nações europeias estão sendo obrigadas a enfrentar o refluxo das ações predatórias que praticaram durante anos em suas antigas colônias. Diante do crescente fluxo migratório, alguns países tentam fechar suas fronteiras para impedir a entrada dos miseráveis que fogem das guerras civis e de algumas ditaduras cruéis apoiadas veladamente por essas mesmas nações. Até onde chegará esse sectarismo que deixa em seu rastro sementes de ódio e revanchismo? Os reflexos das políticas discriminatórias já despontam no contexto urbano de várias cidades europeias.
No Brasil, vivemos outra espécie de radicalização política. Estimulada por fanatismos de diversas naturezas, a síndrome da intolerância tem afastado pessoas próximas e desfeito antigas amizades. Esse tipo de violência tem sido recorrente no cotidiano de nossas cidades. Não é possível admitir que tal postura esteja dentro dos padrões de normalidade comportamental. Conviver com esse conflito tem sido tão difícil quanto encontrar uma saída capaz de pacificar corações e mentes.
No Rio, a violência se apresenta com diversas facetas. O processo de retomada dos territórios dominados pelas facções do tráfico e milícias, ao que tudo indica, está indo por água abaixo. O projeto das Unidades de Polícia Pacificadora foi desvirtuado por um governo desinteressado em melhorar a qualidade de vida nas comunidades pacificadas. As obras de infraestrutura e a implantação de equipamentos de interesse social ficaram no esquecimento. Com a crise econômica esse quadro tende a se agravar consideravelmente.
Em seu livro Cidades invisíveis, o escritor italiano Ítalo Calvino afirma que o inferno dos vivos, se existe, é aquele que está aqui e que ajudamos a construir nos ambientes onde ocorre a vida cotidiana. Para escapar desse inferno, muitas pessoas se sujeitam a conviver com ele até não mais percebê-lo como tal. Outras, porém, tentam identificar o que é e o que não é verdadeiramente um inferno e, assim, melhor compreender os verdadeiros significados da cidade.
Essa parábola demonstra que em uma cidade como o Rio não se pode considerar inferno tudo aquilo que causa estranheza. Para evitar avaliações precipitadas ou mesmo preconceituosas é preciso conhecer, de perto, como vivem as populações nos diversos bairros da cidade e nas inúmeras aglomerações urbanas informais. Certamente, essa experiência será um caminho proveitoso para compreender os diferentes modos de vida em nossa cidade.
Independentemente das críticas feitas aos poderes constituídos, não podemos abrir mão do regime democrático conquistado ao longo dos anos com muito esforço e sacrifício. Neste momento singular da nossa história esperamos que a nossa sociedade construa para si um futuro com mais dignidade. Há que se reestabelecer o quanto antes a urbanidade perdida, para evitar o esfacelamento definitivo das relações sociais. Não há mais tempo a perder.
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Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. O Rio que vem por aí. O Globo, Rio de Janeiro, 17 dez. 2016.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot, arquiteto urbanista, professor da FAU UFRJ.