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drops ISSN 2175-6716

abstracts

português
Por meio da observação histórica, busca-se entender o processo de desenvolvimento das cozinhas profissionais. Na linha do tempo, este artigo se restringirá a apresentar os períodos de desenvolvimento entre Pré-História, Antiguidade e Idade Medieval.

english
Through historical observation, it is sought to understand the process of development of professional kitchens. In the timeline, this article will restrict itself to presenting the periods of development between Prehistory, Antiquity and Medieval Age.

español
Por medio de la observación histórica, se busca entender el proceso de desarrollo de las cocinas profesionales. En la línea del tiempo, este artículo se restringirá a presentar los períodos de desarrollo entre Prehistoria, Antigüedad y Edad Medieval.

how to quote

VILELA, Juliana de Almeida. Do fogo aos banquetes medievais. Uma pequena fatia da história das cozinhas profissionais. Drops, São Paulo, ano 19, n. 135.03, Vitruvius, dez. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/19.135/7194>.



“Os sentidos evoluíram, pois o progresso sempre traz inovações que permitem aos sentidos adquirirem novas dimensões”.
Brillat Savarin, A fisiologia do gosto (1)

Comer é um assunto universal por excelência. Desde os primórdios da humanidade tal prática se reveste tanto de um sentido exercitado, que atende às necessidades do corpo, como simbólico, que se preocupa com a função social das refeições. É equivocado pensar que as diversas estruturas onde eram preparadas as refeições elaboradas para uma coletividade surgiram apenas com a Revolução Industrial. Diferentemente do que se pode prever, as cozinhas profissionais surgiram a partir do momento que o homo socialis conhece o fogo, considerado o primeiro tempero descoberto pelo homem.

A descoberta do fogo representou para a raça humana um importante salto cultural, diferenciando-o perante os outros animais. O fogo, que servia para aquecer o corpo, se reunir ao redor dele e manter as presas afastadas, logo passa a servir como conservante e fonte de cocção dos alimentos, proporcionando uma verdadeira revolução nos hábitos alimentares. Sendo assim, a partir do momento em que o homem percebeu que o animal abatido em contato com a chama restaurava o seu calor natural, dá-se o nascimento da cocção. Da preparação de simples caldos espessos a base de caça fresca, cereais, tubérculos e sal de ardósia, o fogo aguçou o paladar, proporcionando o fascínio do homem pelo alimento. Desta forma, para Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, as diversas formas de cocção, preservar os alimentos e de reunir ao redor do fogo deram origem às cozinhas profissionais (2).

Logo, o comportamento alimentar da humanidade não se diferencia do biológico apenas pela invenção da cozinha, mas também pela comensalidade, ou seja, pela função social das refeições. A cocção do alimento adquire desta forma enorme importância nesse plano, favorecendo as interações sociais. Do convívio social, egípcios, assírios, fenícios, persas, gregos e romanos desenvolveram a arte dos grandes banquetes, tornando-se uma importante identidade do núcleo familiar e de toda a população, encorajando com isto a formação de uma estrutura espacial capaz de abarcar as atividades para manipulação do alimento.

Com os egípcios, inventores da padaria artística, ambientes foram recriados para abarcar o preparo do pão e da cerveja. Já com os gregos, o alimento passa a ser produzido em espaços próprios, dando origem a formação de uma estrutura organizacional complexa e composta por uma mão-de-obra particular. Tal estrutura traz consigo o aprimoramento da comensalidade, evidenciando a relação entre refeição e hospitalidade, sendo a refeição um instrumento de confraternização entre as pessoas. Sendo assim, os gregos associam a arte de comer com a arte de receber, gerando um aprimoramento no espaço da cozinha. Devido ao grande valor dado às refeições, a comida passa a ser preparada por escravos que tinham destaque sobre os outros, transformando em mão-de-obra especializada o trabalho de manipulação do alimento. Fornos, espetos, grelhas e vários outros tipos de recipientes e de caçarolas eram utilizados na preparação e cocção do alimento, sendo a cozinha o local incorporador destas atividades. Segundo Maria Leonor de Macedo Soares Leal,

“Entre os gregos da Antiguidade, o aumento da classe aristocrática, mais rica, levou a arte de comer a se associar com a arte de receber, acarretando um refinamento da cozinha. A comida era preparada por cozinheiros escravos, que tinham uma posição de destaque em relação aos demais escravos, tendo em vista o enorme valor dado às refeições” (3).

Os romanos integraram a Grécia aos seus domínios, consequentemente incorpora a arte da cozinha grega como parte da sua cultura. Assim como os gregos, os romanos também evidenciavam a relação entre refeição e hospitalidade. Entretanto, com o domínio de novas terras e a consequente riqueza obtida com as explorações fez com que os romanos aumentassem os seus excessos perante a mesa, transformando os grande banquetes em verdadeiras orgias. Nessas festas, a refeição era tão exagerada que haviam intervalos para os convidados vomitassem, tomassem banho e fizessem massagem.

Apesar da anarquia, os romanos também evidenciaram os princípios de comensalidade. Pode-se dizer que para eles os princípios de convivência e compartilhamento iniciavam a partir do preparo da sua alimentação. Pela falta de cozinhas nas casas da grande maioria da população, o ato de cozinhar acontecia em grandes cozinhas públicas comunitárias. Fato interessante destes espaços era a localização da área reservada para a cocção. O fogo nessas cozinhas era produzido diretamente no chão, entre paredes ou sobre um suporte um pouco elevado, sendo necessário que o cozinheiro ajoelhasse para conseguir cozinhar. Segundo Carolina Olsson Folino Sâmia, a fumaça, proveniente dos fogões tomava conta do ambiente, já que até o momento se desconheciam quaisquer técnicas de exaustão (4).

Graças ao pecado da gula, os banquetes monumentais foram banidos, e na Idade Média a orgia e os exageros alimentares se renderam à força da igreja. Os mosteiros eram os donos das únicas bibliotecas da época, tornando-se os detentores de toda erudição. Não é de se espantar, portanto, que o conhecimento culinário do período também estivesse compactado entre os muros desses espaços. Nesta época, todas as descobertas gastronômicas estavam restritas aos monges beneditinos, franciscanos e cistercienses, que herdaram os conhecimentos da cozinha romana. Os monges foram fundamentais para o desenvolvimento da gastronomia da época, simplificando o preparo dos alimentos e agregando qualidade aos produtos. Entretanto, apesar de toda sabedoria denotada a igreja, tal época também foi marcada por muita ignorância e principalmente marcada pela falta de higiene. O que se viam eram ruas repletas de lixo, odores terríveis espalhados por todos os cantos, nobres ricos com dentes podres e roupas nojentas, retratando a precariedade dos condições higiênicas.

Conforme Lieselotte Hoeschl Ornellas, tanto nas casas como nos castelos e monastérios, as cozinhas da Idade Média eram locais ofensivos para qualquer pessoa civilizada que nutria o mínimo de respeito pelo próprio estômago. Não existiam qualquer noção primária de higiene. A lenha queimava no fogão no centro do ambiente, e a fumaça nem sempre encontrava a liberdade proporcionada por uma chaminé com dimensões adequadas, de maneira que a fuligem geralmente tomava conta do ambiente. Os animais, eram abatidos ali mesmo, dando início à arte da limpeza e do corte. Na mesma bancada certamente eram preparadas as massas e outros pratos. Enfim, o ambiente era caótico e imundo sob todos os aspectos (5).

Mesmo numa época de condições higiênicas desfavoráveis, os monastérios foram a primeira forma de organização funcional e espacial de um autêntico serviço profissional de alimentação, compondo uma cozinha estruturada, prática e eficaz, na medida que serviam refeições para um grande número de comensais. Equipamentos como fogões, fornos e estufas passaram por um avanço considerável. Anteriormente encostado nas paredes, o fogão agora passam a ser locado no centro das cozinhas, proporcionando ao cozinheiro trabalhar no equipamento por todos os lados, facilitando o fluxo de operação (6).

“As cozinhas, no século XIV, eram localizadas no centro da habitação, tendo o fogão como peça central e grande chaminé para o exterior, o que seria a origem dos fire place (lareiras). As reuniões se faziam ao redor do fogo, que era dedicado ao deus da família ou deuses lares dos romanos” (7).

O que se observa da história deste ambiente é que a cozinha profissional sofreu uma revolução no decorrer dos tempos. Da simples reunião ao redor do fogo para a degustação da caça recém abatida à preparação de grandes banquetes, este ambiente sofreu profundas alterações, tendo sempre como intenção a organização do espaço e seus fluxo de trabalho. Mesmo com séculos de separação, as cozinhas profissionais da atualidade ainda carregam consigo o legado das suas origens, onde a disposição do fogão em ilha é considerado o layout mais apropriado a este tipo de operação.

notas

1
BRILLAT-SAVARIN, Jean Anthelme. A fisiologia do gosto. São Paulo, Cia. das Letras, 1995.

2
FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. 8ª edição. São Paulo, Estação Liberdade, 2015.

3
LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares. A história da gastronomia. Rio de Janeiro, Senac Nacional, 2006, p. 22.

4
SÂMIA, Carolina Olsson Folino. Cozinha funcional: análise do espaço e do usuário idoso. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2008.

5
ORNELLAS, Lieselotte Hoeschl. A alimentação através dos tempos. 3ª edição. Florianópolis, UFSC, 2003.

6
MONTEIRO, Renata Z. Cozinhas profissionais. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2013.

7
ORNELLAS, Lieselotte Hoeschl. Op. cit., p. 90.

sobre a autora

Juliana de Almeida Vilela é arquiteta e urbanista, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC-GO. Pós-Graduada em Docência no Ensino Superior pelo Centro Universitário Senac e em Arquitetura, Construção e Gestão de Edificações Sustentáveis pela Faculdade Unileya. Atualmente é aluna do mestrado em arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

 

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