“Os sentidos evoluíram, pois o progresso sempre traz inovações que permitem aos sentidos adquirirem novas dimensões”.
Brillat Savarin, A fisiologia do gosto (1)
Comer é um assunto universal por excelência. Desde os primórdios da humanidade tal prática se reveste tanto de um sentido exercitado, que atende às necessidades do corpo, como simbólico, que se preocupa com a função social das refeições. É equivocado pensar que as diversas estruturas onde eram preparadas as refeições elaboradas para uma coletividade surgiram apenas com a Revolução Industrial. Diferentemente do que se pode prever, as cozinhas profissionais surgiram a partir do momento que o homo socialis conhece o fogo, considerado o primeiro tempero descoberto pelo homem.
A descoberta do fogo representou para a raça humana um importante salto cultural, diferenciando-o perante os outros animais. O fogo, que servia para aquecer o corpo, se reunir ao redor dele e manter as presas afastadas, logo passa a servir como conservante e fonte de cocção dos alimentos, proporcionando uma verdadeira revolução nos hábitos alimentares. Sendo assim, a partir do momento em que o homem percebeu que o animal abatido em contato com a chama restaurava o seu calor natural, dá-se o nascimento da cocção. Da preparação de simples caldos espessos a base de caça fresca, cereais, tubérculos e sal de ardósia, o fogo aguçou o paladar, proporcionando o fascínio do homem pelo alimento. Desta forma, para Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, as diversas formas de cocção, preservar os alimentos e de reunir ao redor do fogo deram origem às cozinhas profissionais (2).
Logo, o comportamento alimentar da humanidade não se diferencia do biológico apenas pela invenção da cozinha, mas também pela comensalidade, ou seja, pela função social das refeições. A cocção do alimento adquire desta forma enorme importância nesse plano, favorecendo as interações sociais. Do convívio social, egípcios, assírios, fenícios, persas, gregos e romanos desenvolveram a arte dos grandes banquetes, tornando-se uma importante identidade do núcleo familiar e de toda a população, encorajando com isto a formação de uma estrutura espacial capaz de abarcar as atividades para manipulação do alimento.
Com os egípcios, inventores da padaria artística, ambientes foram recriados para abarcar o preparo do pão e da cerveja. Já com os gregos, o alimento passa a ser produzido em espaços próprios, dando origem a formação de uma estrutura organizacional complexa e composta por uma mão-de-obra particular. Tal estrutura traz consigo o aprimoramento da comensalidade, evidenciando a relação entre refeição e hospitalidade, sendo a refeição um instrumento de confraternização entre as pessoas. Sendo assim, os gregos associam a arte de comer com a arte de receber, gerando um aprimoramento no espaço da cozinha. Devido ao grande valor dado às refeições, a comida passa a ser preparada por escravos que tinham destaque sobre os outros, transformando em mão-de-obra especializada o trabalho de manipulação do alimento. Fornos, espetos, grelhas e vários outros tipos de recipientes e de caçarolas eram utilizados na preparação e cocção do alimento, sendo a cozinha o local incorporador destas atividades. Segundo Maria Leonor de Macedo Soares Leal,
“Entre os gregos da Antiguidade, o aumento da classe aristocrática, mais rica, levou a arte de comer a se associar com a arte de receber, acarretando um refinamento da cozinha. A comida era preparada por cozinheiros escravos, que tinham uma posição de destaque em relação aos demais escravos, tendo em vista o enorme valor dado às refeições” (3).
Os romanos integraram a Grécia aos seus domínios, consequentemente incorpora a arte da cozinha grega como parte da sua cultura. Assim como os gregos, os romanos também evidenciavam a relação entre refeição e hospitalidade. Entretanto, com o domínio de novas terras e a consequente riqueza obtida com as explorações fez com que os romanos aumentassem os seus excessos perante a mesa, transformando os grande banquetes em verdadeiras orgias. Nessas festas, a refeição era tão exagerada que haviam intervalos para os convidados vomitassem, tomassem banho e fizessem massagem.
Apesar da anarquia, os romanos também evidenciaram os princípios de comensalidade. Pode-se dizer que para eles os princípios de convivência e compartilhamento iniciavam a partir do preparo da sua alimentação. Pela falta de cozinhas nas casas da grande maioria da população, o ato de cozinhar acontecia em grandes cozinhas públicas comunitárias. Fato interessante destes espaços era a localização da área reservada para a cocção. O fogo nessas cozinhas era produzido diretamente no chão, entre paredes ou sobre um suporte um pouco elevado, sendo necessário que o cozinheiro ajoelhasse para conseguir cozinhar. Segundo Carolina Olsson Folino Sâmia, a fumaça, proveniente dos fogões tomava conta do ambiente, já que até o momento se desconheciam quaisquer técnicas de exaustão (4).
Graças ao pecado da gula, os banquetes monumentais foram banidos, e na Idade Média a orgia e os exageros alimentares se renderam à força da igreja. Os mosteiros eram os donos das únicas bibliotecas da época, tornando-se os detentores de toda erudição. Não é de se espantar, portanto, que o conhecimento culinário do período também estivesse compactado entre os muros desses espaços. Nesta época, todas as descobertas gastronômicas estavam restritas aos monges beneditinos, franciscanos e cistercienses, que herdaram os conhecimentos da cozinha romana. Os monges foram fundamentais para o desenvolvimento da gastronomia da época, simplificando o preparo dos alimentos e agregando qualidade aos produtos. Entretanto, apesar de toda sabedoria denotada a igreja, tal época também foi marcada por muita ignorância e principalmente marcada pela falta de higiene. O que se viam eram ruas repletas de lixo, odores terríveis espalhados por todos os cantos, nobres ricos com dentes podres e roupas nojentas, retratando a precariedade dos condições higiênicas.
Conforme Lieselotte Hoeschl Ornellas, tanto nas casas como nos castelos e monastérios, as cozinhas da Idade Média eram locais ofensivos para qualquer pessoa civilizada que nutria o mínimo de respeito pelo próprio estômago. Não existiam qualquer noção primária de higiene. A lenha queimava no fogão no centro do ambiente, e a fumaça nem sempre encontrava a liberdade proporcionada por uma chaminé com dimensões adequadas, de maneira que a fuligem geralmente tomava conta do ambiente. Os animais, eram abatidos ali mesmo, dando início à arte da limpeza e do corte. Na mesma bancada certamente eram preparadas as massas e outros pratos. Enfim, o ambiente era caótico e imundo sob todos os aspectos (5).
Mesmo numa época de condições higiênicas desfavoráveis, os monastérios foram a primeira forma de organização funcional e espacial de um autêntico serviço profissional de alimentação, compondo uma cozinha estruturada, prática e eficaz, na medida que serviam refeições para um grande número de comensais. Equipamentos como fogões, fornos e estufas passaram por um avanço considerável. Anteriormente encostado nas paredes, o fogão agora passam a ser locado no centro das cozinhas, proporcionando ao cozinheiro trabalhar no equipamento por todos os lados, facilitando o fluxo de operação (6).
“As cozinhas, no século XIV, eram localizadas no centro da habitação, tendo o fogão como peça central e grande chaminé para o exterior, o que seria a origem dos fire place (lareiras). As reuniões se faziam ao redor do fogo, que era dedicado ao deus da família ou deuses lares dos romanos” (7).
O que se observa da história deste ambiente é que a cozinha profissional sofreu uma revolução no decorrer dos tempos. Da simples reunião ao redor do fogo para a degustação da caça recém abatida à preparação de grandes banquetes, este ambiente sofreu profundas alterações, tendo sempre como intenção a organização do espaço e seus fluxo de trabalho. Mesmo com séculos de separação, as cozinhas profissionais da atualidade ainda carregam consigo o legado das suas origens, onde a disposição do fogão em ilha é considerado o layout mais apropriado a este tipo de operação.
notas
1
BRILLAT-SAVARIN, Jean Anthelme. A fisiologia do gosto. São Paulo, Cia. das Letras, 1995.
2
FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. 8ª edição. São Paulo, Estação Liberdade, 2015.
3
LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares. A história da gastronomia. Rio de Janeiro, Senac Nacional, 2006, p. 22.
4
SÂMIA, Carolina Olsson Folino. Cozinha funcional: análise do espaço e do usuário idoso. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2008.
5
ORNELLAS, Lieselotte Hoeschl. A alimentação através dos tempos. 3ª edição. Florianópolis, UFSC, 2003.
6
MONTEIRO, Renata Z. Cozinhas profissionais. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2013.
7
ORNELLAS, Lieselotte Hoeschl. Op. cit., p. 90.
sobre a autora
Juliana de Almeida Vilela é arquiteta e urbanista, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC-GO. Pós-Graduada em Docência no Ensino Superior pelo Centro Universitário Senac e em Arquitetura, Construção e Gestão de Edificações Sustentáveis pela Faculdade Unileya. Atualmente é aluna do mestrado em arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.