Se duas formações a princípio bastante distintas sugerem a possibilidade de observar fatos e ocorridos por óticas diferentes e complementares, ao mesmo tempo elas permitem uma vivência de lugares mais plural.
Entre 2013 e 2015, havendo recém-concluído o curso de engenharia mecânica, fui trabalhar no projeto do motor de foguete L75, baseado no soviético RD-109 que, desenvolvido a partir de 1957, colocou Yuri Gagarin em órbita da terra durante a missão Vostok 1 em 1961.
Contemporâneo a este projeto, portanto, é o da nova capital do Brasil, que ao cosmonauta causaria uma forte impressão durante sua visita naquele mesmo ano – diria sentir-se chegar “num planeta diferente”. Obra maior de seus principais idealizadores, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, ela não deixa de ser um exemplar excepcionalmente tardio da escola carioca que já se destacava no mundo desde o começo dos anos 1940. Se ali Oscar Niemeyer alcança um status de herói nacional e figura romântica do movimento moderno, anteriormente a 1957 já era possível destacar duas grandes obras suas, em termos de escala: o conhecido parque do Ibirapuera (1951-1954) e o anterior e quase obscuro Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial – DCTA em São José dos Campos, de 1947.
Foi de fato uma grande coincidência que me reservou um primeiro endereço profissional num amplo projeto de Oscar Niemeyer. Coincidência ainda maior devido a minha atração compulsiva pelo trabalho pré-Brasília do arquiteto, que em minha opinião, guarda suas maiores joias, o que inclui o vultuoso projeto do original Centro Técnico de Aeronáutica – CTA. Prevendo a urbanização de uma área superior a 370 hectares, seu escopo, qualidade e divulgação à época de sua execução contrasta com seu reconhecimento atual e figuração em trabalhos acadêmicos. Apenas para citar algumas publicações relevantes, o projeto figura em ambos os Papadakis (1950 e 1956 – anteprojeto e obra, respectivamente), na exposição do MoMA Latin American Architecture since 1945, e no conhecido Modern Architecture in Brazil, de Henrique Mindlin (1956).
Já a partir de 2016, quando passei a me dedicar exclusivamente à arquitetura, naturalmente sempre fiz questão de mostrar para meus colegas de profissão essas obras que parecem pouco acessíveis, especialmente por estarem por trás de uma grande portaria militar. Quando o arquiteto e fotógrafo André Scarpa me disse que realizava uma reforma em um apartamento do edifício Copan e que desejava entender mais sobre os materiais que Niemeyer utilizava, imediatamente pensei no hall do ITA, de espacialidade notável e belíssimo acabamento. Quando a professora Heliana Angotti Salgueiro escreveu sobre as fotografias de arquitetura de Marcel Gautherot para o V Seminário Docomomo-SP, também a levei para conhecer, desta vez com ênfase nos longos e singelos edifícios habitacionais.
Mesma intenção tive numa quinta-feira pós carnaval, quando voltava do Rio de Janeiro ao longo da rodovia Presidente Dutra com o colega carioca José dos Guimaraens, aproveitando para lhe mostrar o Clube dos 500, em Guaratinguetá, e a residência Olivo Gomes, já em São José dos Campos. Após um tour compreensivo das habitações, que já requerem boa dose de olhar treinado para ignorar as alterações e compreender a beleza dos projetos, nos dirigimos ao edifício da escola. Tentei prepará-lo para o a fluidez arrebatadora do espaço, apesar do material já empregado no piso térreo, e do forro de gesso digno de motel barato.
Qual não foi minha surpresa ao notar que, apenas alguns meses após minha última visita ao local, já se fora o leve corrimão e o piso cerâmico hexagonal. Enquanto o porcelanato brilhante nos faz franzir a testa, o grosseiro guarda-corpo em alumínio praticamente arruína a leitura do gesto do desenho fluido do arquiteto.
Consternados, nos dirigimos para o carro, sem antes deixar de passar por uma das secundárias escadas helicoidais que completam a circulação vertical do edifício, envoltas por brises-soleil em amianto – como de praxe, azuis. E não é que estes também sofriam do mesmo destino dos longos blocos de apartamento – eram todos pintados de bege exatamente naquele momento.
Embora pontuais, essas modificações impactaram significativamente num espaço de beleza ímpar dentro da arquitetura moderna brasileira. E se tudo se restaura, também se sabe que isso não ocorre com facilidade ou frequência quando os usuários não enxergam o que tem com a importância devida.
Tive um resto de viagem bastante triste.
sobre o autor
Rolando Piccolo Figueiredo é formado em engenharia mecânica pela Universidade de Bath. Atualmente cursa Arquitetura e Urbanismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie, e administra o perfil Oscar Niemeyer Works, focado em pesquisas sobre o trabalho pré-Brasília do arquiteto.