Eu tenho a idade do senhor que narra (bom, talvez um pouco menos, vá lá). Tinha sete anos em 1964, morava em Novo Hamburgo. Lembro de meus pais comprando gêneros alimentícios porque diziam que ia haver algo e podia faltar alimentos. Eu lia a Reader Digest com suas matérias sobre como o Brasil se salvou a si mesmo, e contavam histórias escabrosas da perversa URSS e como as crianças denunciavam os pais. Um ano antes tinha morrido aquele presidente bonitão americano e tinha causado uma comoção lá em casa. Minha mãe era fã dele. Mas eles também tinham aplaudido os jovens cubanos que lutaram contra o tirano Batista que fez de Cuba o cassino dos EUA. Pena que virou comunista depois (eu tinha lido que tinha sido depois do embargo e que o Fidel tinha dito que o cachorro não olha a cor da coleira do dono que traz comida, mas também não me interessei mais pelo assunto).
Aprendi a chamar aquele movimento dos generais de revolução. Parece que o tal marechal, o do Ceará, ia largar logo o posto, era coisa de 6 meses para voltar o poder aos civis. Esses seis meses se estenderam por vinte anos, mais quatro generais presidentes, escolhidos pelo alto comando e nós, o povo, “éramos inútil”, como dizia a música. A gente não servia para escolher presidente. A gente não podia escolher livros ou filmes ao bel prazer. Antes passavam pelos cortes da censura. Uma tal de Dona Solange e Cia que, de caneta e tesoura na mão, definiam o que podia ou não ser visto. Roque Santeiro, na primeira versão, com a Betty Faria de Porcina, chegou a ser gravada, mas foi censurada. Laranja Mecânica passou com bolinhas pretas que dançavam na tela tentando esconder a genitália desnuda, uma das cenas mais dantescas que já vi em um cinema. Jornais estampavam receitas de bolo ou letras de samba nas capas ao invés das notícias que não podiam dar. Até o ballet Bolshoi foi proibido por ser russo. Bailarino comunista devia ser muito subversivo mesmo.
As pessoas de bem ficavam bem faceiras porque parecia que tudo ia muito bem, se alguém roubava ou havia corrupção, era abafado. O denunciante ou se calava, ou era punido. Estar na lista do Dops era selar o futuro: adeus emprego, adeus concurso público, adeus vida. Alguns eram presos ou mortos. Crimes bárbaros como as das meninas Aracelli e Ana Lídia eram proibidos de serem noticiados e os suspeitos ficavam livres. Até pq alguns eram parentes de autoridades da época.
Se você fosse cordeirinho, podia suspirar em paz. Mas se ousasse reivindicar qualquer coisa podia ser preso. Greve? Proibido. Grêmio estudantil? Proibido. A gente era bem inútil mesmo.
Ao contrário do senhor do vídeo, para mim o sol foi se tornando mais escuro. Ao lema do “Ame-o ou deixe-o”, a gente só pedia que o último que saísse levasse o samba e apagasse as luzes do aeroporto.
Nunca fui a favor da luta armada pq acho que já nasci contra a violência. Mas muito menos era a favor da tortura de qualquer maneira. Ouvia falar delas. A gente sabia que haviam centros de interrogatórios e não achava nada, já que sempre tinha um amigo ou parente que tinha achado e ninguém nunca mais achou ele.
Ouvia falar de estupros em presas políticas e o caso da Beth Mendes foi muito emblemático pq ela tinha feito uma das primeiras novelas realistas brasileiras: Beto Rockfeller e era uma espécie de namoradinha do Brasil. Imaginar o que deveria ter sofrido na época, foi muito pesado para minha adolescência.
Quando algum deputado ou senador se metia besta, era cassado. Sim, a gente votava para o congresso. Tinham dois partidos: Arena e MDB. Mas a oposição era de faz de conta já que se podia canetear um Ato Institucional qualquer de babaus, lá se ia a pouca liberdade pelo espaço. Sem imprensa para gritar contra. A globo era a favor do golpe. Aliás, ela cresceu com o Golpe.
Houve o caso da Zuzu Angel que foi atrás do seu filho, cidadão americano, que tinha sido preso. Seu filho foi morto com requintes de crueldade, sendo colocado com a boca no cano de descarga de um carro que desfilou com ele por um quartel. Ela chegou a passar uma carta para o Henry Kissinger quando ele veio visitar o Brasil, em fevereiro de 1976. O passou é parar na frente e dar o bilhete sem pedir aprovação. Em abril de 1976 ela foi morta em um “acidente de carro” no Rio.
Teve o caso do Riocentro onde em um show de primeiro de maio bombas estouraram em dois militares. Um morreu e outro ficou ferido. A ideia era simular um atentado terrorista de esquerda. Foram inábeis. Mas o sobrevivente recebeu medalhas.
Teve o Marcelo Rubens Paiva, Embaixador Jobim, Herzog...mortos por discordarem ou por denunciarem corrupção.
A ditadura se transformou exatamente naquilo que jurou combater: acabou com as liberdades, formou massas de pessoas com medo, os resultados econômicos, passado o período inicial, foram desastrosos. O índice de Gini demoraria algumas décadas para voltar ao que era antes de 64. A inflação disparou. Uma massa de políticos acostumadas às benesses que o poder militar garantia aos que viviam na ilha da fantasia, que iam de mordomias sem transparência à total impunidade, continuaram a exercer o poder na primeira eleição indireta após a ditadura. Grandes caciques políticos cresceram sob as luzes verde olivas, ganhando concessões de rádio e tv.
Hoje quando se olha a história, sem fazer uma análise crítica, parece muito cômodo, achar que podemos chamar o exército para punir e colocar ordem na casa. Assim como fazíamos quando éramos pequenos e não tínhamos que assumir nada. Mas isto nos torna eternamente deitados em berço ora esplêndido, ora fajuto.
Deixo aos pobres de espírito, aos que não querem crescer como nação, a opção por achar que aquilo foi bom.
Eu vivi. Dentro e fora do poder. E lhes digo com toda sinceridade, não quero repetir porque se lá já foi um retrocesso, hoje seria um desastre ainda maior.
Definitivamente não tenho ditadura de estimação. Aplaude quem tem e assume.
Eu grito que ditadura não se comemora e tortura se repudia.
nota
NE – Atendendo determinação do presidente Jair Bolsonaro, o governo brasileiro divulgou no dia 31 de março de 2019 um vídeo institucional enaltecendo a intervenção militar ocorrida em 1964. O vídeo está disponível no link <https://www.youtube.com/watch?v=FAB4MKfUIFI>.
sobre a autora
Elenara Stein Leitão é arquiteta, blogueira, leitora, e moradora de Brasília na década de 1970.