O presente projeto expositivo apresenta alguns dos muitos e bons excertos possíveis de serem compilados a partir da densa carreira artística e de pesquisa no campo das artes visuais e áreas de conhecimento próximas, pelas quais Marco do Valle trilha seu perfil como artista, professor e arquiteto.
Este trabalho imprime assim, de saída, um desafio que dispõe de, pelo menos, duas origens possíveis: a formal, lançada pelo acompanhamento das pesquisas de Mestrado de Julyana Troya, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Unicamp – pessoa fundamental para o projeto, por meio de quem é disparado o desejo de realizar a exposição – e a origem factual, elaborada a partir de inúmeras oportunidades de aproximação, diálogo, dissenso, revisão e coleguismo geradores da admiração nutrida nos últimos anos de convivência direta com o artista Marco do Valle.
A Casa de Vidro foi o local imediatamente escolhido para o projeto. A constituição de sua arquitetura formada pelo peso do concreto, tanto quanto pela transparência do vidro, nos proporciona, no território em que viveu e marcadamente atuou Valle, condição ideal para evidenciar a transdisciplinaridade que bem caracteriza sua produção e pensamento. Em Campinas, este espaço museológico proporciona que o dentro e o fora dialoguem de forma direta e assim, na medida exata das pesquisas materiais e espaciais praticadas por ele, ao longo da vida.
Aliada à certeza de que sua produção esteve sempre voltada para a escultura contemporânea o que a pesquisa tem nos mostrado é que a diversidade de linguagens trabalhadas por Marco do Valle qualifica seu pioneirismo, no âmbito nacional, para experimentações tais como a arte xerox e a vídeo arte. Desse modo é que o projeto propõe ocupar todas as salas expositivas e delas transbordar para o entorno próximo, no qual uma de suas conhecidas esculturas de lençóis de borracha pode ser visualizada.
Nas três salas expositivas podemos encontrar o universo material praticado por ele, a partir de seu conhecimento técnico, tácito e científico que elegia, usualmente, manufaturas industriais conectadas ao campo da arquitetura e da engenharia. A esses materiais (borracha, pvc, alumínio, chumbo, aço), Valle acrescenta simbologias que cultivava a partir de estudos da forma plástica geométrica (bacias, pranchas, esferas, arcos) e das leituras dentre referenciais da própria História da Arte (Dürer, Beuys etc.) ou ainda advindos da Física e da Geometria.
Dos conjuntos tridimensionais importantes aqui expostos destacamos: “Três pontos não colineares determinam um plano (Euclides) (1979); “Topografia artificial” (1988); “Vórtice” (1984); “Multi-multi” (1982) e “Melancolia” (1992). A oportunidade de vê-los reunidos nos possibilita compreender a organização do sistema de distinções e correlações que constrói o conjunto todo de uma obra bastante expressiva.
Contudo, o visitante da exposição é recebido por diferentes tipos de presentidade aplicada à produção escultórica do artista. Documentos e materiais processuais acompanham, nas várias salas, peças de materialidade e gravidade densas, algumas delas remontadas e reapresentadas somente agora, passadas muitas décadas de sua primeira apresentação, como no caso de “Topografia artificial” (1988) que inclui formas de ferro próprias para a fabricação de telhas onde se depositam as peças de lençol de borracha. Já outras peças configuram-se por linhas delgadas, dispostas no plano horizontal e rastejante a projetarem-se no espaço que ocupam de modo algo delicado frente às dimensões da sala. Assim também, pode o visitante da Casa de Vidro, como num lance de espelhamento, deparar-se com o registro fotográfico de peças cuja materialidade e especificidade de construção não nos permitiriam reconstitui-los neste espaço; casos como “O vaso de perfume/La porteuse de parfaum” (1984) elaborado para uma mostra na Pinacoteca do Estado de São Paulo na qual a peça criada por Valle ladeava a conhecida escultura de Victor Brecheret; “Eixo paralelo de rotação da terra” (1989) instalado pontualmente no campus da Unicamp a partir de suas especificidades topológicas e geográficas ou ainda, o projeto “Robô Motoman DFV desenhando na areia” que Valle elaborou junto de Abílio Guerra para o Projeto “Arte Cidade 2 / A cidade e seus fluxos”, em 1994.
Há também espaço reservado para suas incursões em arte xerox e vídeo arte, assim como documentos e objetos selecionados de seu acervo nos apresentam os aspectos marcantes do professor estudioso e do arquiteto persistente.
A Seriação, modelo escolhido para estruturar e intitular esta exposição, busca abordar a gênese do sistema, a capacidade de ordenação, classificação e extensão do conjunto de elementos experimentados com os quais ordena-se a produção deste artista. Ela está presente tanto na forma plástica, quanto na repetição/inversão da lógica de sentidos (visuais, simbólicos) dos trabalhos. Assim também a seriação promove o fluxo nem sempre lógico, mas certamente complementar das variantes linguagens exploradas e pode ser aplicada à métrica com a qual Valle instaurava peças escultóricas, objetos e estudos, à luz do dia, do lado de fora, na paisagem, tanto quanto o faz, sob a iluminação do espaço de exposição, no interior do museu.
O projeto tem também a pretensão de envolver diferentes atores e públicos ao longo de sua permanência na Casa de Vidro. Evitando fechar-se no caráter meramente retrospectivo, tanto quanto no modelo clássico operado pelas exposições de arte, ajusta-se por outras presenças e convites que incluem a residência do artista visual e educador holandês, mestrando da Faculdade de Educação da Unicamp, MESMO (nome artístico de Kjell Van Ginkel); um Laboratório Pedagógico aberto a educadores da região, ação educativa para grupos escolares, ciclo de palestras e lançamento de livro. Destina-se, por fim, a configurar algo além da homenagem, que direciona sua mirada para o processo e para o trabalho do artista.
nota
NE – Texto curatorial da exposição Seriações na obra de Marco do Valle, curadoria de Sylvia Furegatti, coordenação do educativo de Julyana Troya. Casa de Vidro, Largo do Café, Taquaral, Campinas, de 27 de março a 31 de maio de 2019
sobre a autora
Sylvia Furegatti é artista visual, bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Estadual de Campinas (1991), especialista em Museus de Arte pelo MAC-USP (1992), mestre pela mesma instituição (2002) e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo FAU-USP (2007). É professora do Programa de Pós-Graduação e da Graduação em Artes Visuais (IA Unicamp). Atualmente ocupa o cargo de Diretora do Museu de Artes Visuais – MAV Unicamp. Ex-coordenadora da Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Unicamp (2013-2017), é a atual co-coordenadora do Grupo de Estudos sobre Arte Público en Latinoamerica – GEAP LA e coordenadora nacional do GEAP BR.