Sob o título “Reforma de loja gera debate ético e estético”, o jornal Folha de S. Paulo publicou no dia 18 de fevereiro de 2019 (1), matéria relativa à reforma em edificação comercial de São Paulo – erguida em 1987, na avenida Cidade Jardim –, cujo projeto original é do arquiteto Paulo Mendes da Rocha (2). Atualmente com 90 anos, o ganhador do Pritzker não foi consultado antes da reforma e este é ponto polêmico. O subtítulo (que no jargão jornalístico se chama “linha fina”) diz tudo: “Arquiteto adapta sede da Forma e é criticado por escolhas e por não procurar autor original, Paulo Mendes da Rocha”. Feita a partir de postagem do arquiteto Renato Anelli em rede social (3), a matéria faz referência ao tombamento de bens culturais, aduzindo uma profissional que “a sociedade pode se unir para proteger uma obra importante”.
Fico fora do debate estético. Não vou aqui falar sobre as escolhas do arquiteto autor da reforma ou requalificação, nem sobre o “borrão vermelho” colocado na antiga fachada acinzentada em que se destacava o nome da empresa, nem sobre o alegado “embate entre projetos”, limitando-me aos aspectos jurídicos da matéria da Folha, tratados de modo geral e como meros comentários a propósito do tema. Ressalto que este é um bom exemplo para tratar do direito de modificação, considerando a originalidade inquestionável da obra arquitetônica, que só será protegida se for inconfundível com outra, ou seja, se tiver a marca da criação intelectual. Sem dúvida, isto ocorre aqui.
O caso implica aplicação eventual da lei autoral e da norma corporativa, em conjunto. Sem ingressar em detalhes subjetivos do caso, em primeiro lugar, deve-se dizer que não se cuida de proteção de bem cultural, que o coloca no âmbito do interesse público. Isto porque a edificação não está tombada e nem de qualquer forma protegida pelos entes públicos das três esferas (art. 23/III da Constituição Federal). Se é fato que o tombamento congela as faculdades que o proprietário tem de modificação do bem, há outros mecanismos legais – fora daquele instituto – que trazem regras importantes a respeito. Refiro-me, em especial, ao direito subjetivo que o autor de projeto arquitetônico dispõe de impedir modificações não autorizadas expressamente por ele na obra que engendrou.
É exatamente o caso que, repito, analiso a partir da matéria do jornal e de modo genérico e abstrato. A norma básica sobre o assunto é o art. 24/V da lei geral sobre direitos autorais (Lei nº 9.610/98) que estabelece como direito moral de autor o de “modificar a obra, antes ou depois de utilizada”. Isto vale para todas as criações intelectuais protegidas pelo regime dos direitos autorais, dentre as quais se inclui o projeto arquitetônico. Então veja-se: o dono do prédio tem todo direito de demoli-lo sem consultar ninguém; agora não pode fazer modificações como bem entender porque deve levar em conta os direitos autorais do arquiteto autor do projeto. Dito de outra forma, construir ou demolir constituem direitos que ficam apenas na esfera jurídica do proprietário: modificar não. É que na edificação pronta concorrem dois direitos distintos: o direito material do proprietário e o direito intelectual do arquiteto que a projetou.
Para reforma, então, como decorrência daquela norma do art. 24/V, o arquiteto autor do projeto original deve ser necessariamente consultado antes que seja feita qualquer intervenção significativa em obra ou projeto que desenvolveu – a manutenção ordinária ou reparo fica, claro, fora disso, exclusive as cores que integram o projeto (4). É o que diz o art. 16 da lei do CAU (Lei nº 12.378/10): “Alterações em trabalho de autoria de arquiteto e urbanista, tanto em projeto como em obra dele resultante, somente poderão ser feitas mediante consentimento por escrito da pessoa natural titular dos direitos autorais, salvo pactuação em contrário”. Portanto, o sentido da norma é claro: se não houver acordo anterior por escrito, em sentido contrário, com o proprietário, este ficará impedido de fazer qualquer modificação na obra sem a concordância do arquiteto, sob pena do pagamento de danos morais originados exatamente da falta do consentimento deste. De outro modo o direito moral próprio e exclusivo do arquiteto de fazer modificações na obra ficaria violado sem qualquer punição, o que não parece razoável.
Então, podemos distinguir algumas situações, que pressupõem, todas elas, a oitiva prévia do profissional, que no caso não houve: a) o arquiteto autor do projeto original concorda em fazer, ele mesmo, modificações na obra (é a situação ótima – a obra é dele e a modificação também será); b) o arquiteto autor do projeto original concorda com modificações mas não se dispõe a fazê-las, autorizando outro profissional a intervir em criação sua (também é uma situação plenamente lícita porque o arquiteto não pode ser obrigado a fazer a modificação – isto é direito dele e não obrigação); c) o arquiteto autor do projeto original não autoriza que outro profissional faça modificações, reservando para si tal prerrogativa, não se propondo, entretanto, a fazê-las por quaisquer motivos válidos (situação em que o dono do imóvel se vinculará à vontade do profissional, sob pena de pagamento de danos morais na medida exata da violação de um dos direitos morais de autor). Disse “motivos válidos” porque a obra arquitetônica é estética, mas também tem função utilitária e o proprietário do imóvel não poderá ficar sujeito a meros “caprichos” do profissional (5).
No caso da hipótese b), acima, se o autor do projeto original, devidamente consultado, não aceitar fazer a intervenção e permitir que outro profissional a faça, o mesmo art. 16/§ 4º da lei do CAU dispõe que: “Na hipótese de a alteração não ter sido concebida pelo autor do projeto original, o resultado final terá como coautores o arquiteto e urbanista autor do projeto original e o autor do projeto de alteração, salvo decisão expressa em contrário do primeiro, caso em que a autoria da obra passa a ser apenas do profissional que houver efetuado as alterações”. Assim, na “reforma da Forma”, já ocorrida, é perfeitamente possível que Paulo Mendes da Rocha, caso de “chateie” (como dito pelo autor da intervenção), de um lado consinta tacitamente com a alteração, mas, de outro, afaste a coautoria da obra modificada, preferindo que ela permaneça exclusivamente com o autor da modificação. Isto é direito seu, certo e inquestionável, porque o edifício que projetou era outro ou era totalmente outro (debate em que não ingresso).
No caso da hipótese c), acima, cabe ao arquiteto o direito de repúdio previsto no art. 26 da lei autoral. Ele estabelece, com clareza, que “o autor poderá repudiar a autoria de projeto arquitetônico alterado sem o seu consentimento durante a execução ou após a conclusão da construção”. Porém o repúdio, ou seja, a quebra do vínculo de “paternidade”, precisa ser visto como apenas uma das conseqüências civis da violação do direito intelectual do arquiteto. Além dela, como resposta do ordenamento, incidirão danos morais considerando a relevância maior ou menor dos motivos do arquiteto (aquilo que em Direito se chama de “justo motivo”, expediente requerido em muitas hipóteses legais para averiguação de razões). Por exemplo: se o proprietário pretendesse transformar a edificação comercial em residencial, sem construir outra no lugar, ou se quisesse vender a “laje” da antiga loja Forma, ou seja, a superfície superior, para outro proprietário (considerando o potencial construtivo não esgotado) que iria edificar acima dela desfigurando por completo o projeto original, sem dúvida haveria danos indenizáveis (6). A modificação não autorizada da obra, com motivos sólidos tais como esses dois, hipotéticos, ou muitos outros – ou ainda sem a necessária comunicação anterior –, configurará ato ilícito do proprietário e, assim, implicará indenização por violação de direito personalíssimo do arquiteto, na forma do disposto no art. 5º/X da CF.
Em Portugal, da mesma forma, o Estatuto da Ordem dos Arquitectos (Decreto-lei 176/98), depois de assegurar aos profissionais o “direito de autor sobre as obras de arquitetura” (art. 43º/2/”b”), estabelece os princípios da deontologia profissional. Dentre outros, eles implicam o seguinte dever recíproco dos arquitetos: “quando chamado a substituir um colega na execução de uma tarefa, não a aceitar sem esclarecer previamente com ele e com que lhe incumbe a tarefa, a situação contratual e de direito de autor”. Assim, a lei exige (lá também) a comunicação com o arquiteto autor do projeto original para os “esclarecimentos” prévios e necessários. Algo que vai muito além do “telefonema” a que se faz referência na matéria do jornal.
No Brasil, a deontologia profissional não está na própria lei de 2010, sendo delegada, de acordo com o art. 17 dela, para o Código de Ética e Disciplina, objeto de resolução do CAU. Então, o Código de Ética e Disciplina do CAU (Resolução CAU/BR 52/13) estabelece como obrigação do arquiteto com seus colegas: “O arquiteto e urbanista deve considerar os colegas como seus pares, detentores dos mesmos direitos e dignidade profissionais e, portanto, deve tratá-los com respeito, enquanto pessoas e enquanto produtores de relevante atividade profissional” (item 5.1.1). E inclui dentre as obrigações dos arquitetos com seu contratante a seguinte regra: “O arquiteto e urbanista deve manter seus contratantes informados sobre quaisquer fatos ou conflitos de interesse que possam alterar, perturbar ou impedir a prestação de seus serviços profissionais” (item 3.2.13). A infringência dessa norma ética pode implicar como sanção, conforme as circunstâncias de cada caso, desde a advertência privada ou pública até a suspensão do exercício profissional e a multa (cf. Resolução CAU/BR 143/2017).
A partir dos princípios e normas expostos, sua aplicação ao caso concreto não será difícil. Porém, importa ressaltar que o interesse do arquiteto autor do projeto original, ou seja, sua intenção em movimentar a máquina do Estado, constitui o fator decisivo para que haja a transitividade das normas para o mundo real. É diferente do que ocorre, por exemplo, com o bem tombado, no qual o interesse público faz com quem qualquer pessoa possa provocar a proteção devida, até mesmo de caráter penal. No caso de obra arquitetônica não protegida pelo Poder Público não é assim: a atuação estatal vai depender da provocação do maior interessado e eventual lesado: sem ela, nenhuma medida poderá ser aplicada.
É certo que, no âmbito do CAU, “o processo ético-disciplinar será instaurado de ofício ou mediante representação do interessado” (art. 9º da Resolução 143). Ou seja, por força do impulso oficial e a partir da matéria do jornal, em tese, os agentes de fiscalização da autarquia corporativa, em São Paulo, poderiam iniciar o processo. Porém me parece que, no silêncio do titular da obra original, eles não fariam isso até porque, a qualquer momento, este titular pode dar o seu consentimento, expresso ou mesmo tácito (pelo silêncio à provocação dela), determinando imediata remessa do processo ao arquivo. O direito de fazer modificações na obra arquitetônica, em suma, é um direito intelectual disponível do titular, autor do projeto, que pode manejá-lo do modo que entender cabível, inclusive renunciar a ele se assim quiser. Parece ser este o caso, segundo se depreende da matéria do jornal. E, como vimos acima, pode também renunciar à coautoria da obra modificada por outro profissional.
notas
1
ANGIOLILLO, Francesca. Reforma de loja gera debate ético e estético. Folha de S. Paulo , São Paulo, 18 fev. 2019, <https://bit.ly/2IoQmX2>.
2
Sobre o projeto, v. MAHFUZ, Edson. Loja Forma, Paulo Mendes da Rocha, São Paulo, 1987. Série projetos exemplares, n. 1. Projetos, São Paulo, ano 11, n. 123.04, Vitruvius, mar. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/11.123/3818>.
3
“A loja que já foi da Forma passa por mudanças radicais. Alguém está acompanhando?” ANELLI, Renato. Postagem no Facebook, 2 fev. 2019 <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10211687324933391&set=pb.1675401443.-2207520000.1554805309.&type>.
4
Sobre as cores integrando o projeto, a famosa lei francesa sobre arquitetura (Lei 77-2, de 3 de janeiro de 1977), define no art. 3º: “Le projet architectural mentionné ci-dessus définit par des plans et documents écrits l'implantation des bâtiments, leur composition, leur organisation et l'expression de leur volume ainsi que le choix des matériaux et des couleurs”.
5
A posição que adoto difere daquela constante do Resp. 1290112, julgado em 2016, e que implica em sanção nenhuma ao proprietário diante da violação do direito do arquiteto, tenho frágil fundamentação autoral. Diz a ementa deste acórdão do Superior Tribunal de Justiça: “Em princípio, as alterações do projeto original só poderão ser feitas pelo profissional que o tenha elaborado, mas estando este impedido ou recusando-se a fazer, comprovada a solicitação, as alterações poderão ser feitas por outro profissional habilitado, a quem caberá sua responsabilidade a partir de então”. Veja-se que o STJ só exige a solicitação, ou seja, a comunicação e não o consentimento.
6
A própria lei de 2017 que instituiu o direito de laje no Código Civil exige o respeito à “linha arquitetônica” da construção-base, para preservação do “arranjo estético do edifício” (art. 1.510-B). É impossível dizer que, nesta hipótese, a modificação sem consulta ou feita com a discordância do arquiteto não geraria o dever de indenizá-lo.
sobre o autor
José Roberto Fernandes Castilho é professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura na FCT/Unesp.