O ministro da educação citou o Japão como modelo para asfixiar o ensino de humanidades e privilegiar disciplinas das áreas de tecnologia, ciências biológicas e veterinária. Mas, por esquecimento ou má-fé, ele não mencionou os protestos de professores, cientistas e empresários japoneses contra essa “reforma” educacional. Várias universidades japonesas recusaram-se a adotá-la.
O texto abaixo é um trecho da palestra que dei aos calouros da UnB (“Humanismo contra barbárie”, 14 de março de 2019). Por coincidência, cito o caso japonês, que inspirou o atual ministro da educação.
A partir das décadas de 1970 e 1980, as áreas de humanidades no ensino médio e nas Universidades foram fortemente atingidas por governos ultraconservadores no Reino Unido e nos Estados Unidos (Margareth Thatcher e Ronald Reagan) e ditaturas no Brasil e na América do Sul. Há uma tendência de privilegiar o ensino e a pesquisa das áreas científicas e tecnológicas, e de abandonar as humanidades.
Em 2015, o primeiro ministro do Japão anunciou uma reforma do ensino universitário, em que pretendia abolir os departamentos de ciências humanas, letras, artes e pedagogia (formação de professores). O ministro da educação pediu aos reitores que orientassem os jovens de 18 anos a escolher áreas de estudo altamente úteis à demanda da sociedade. Pelo menos quatro grandes universidades japonesas se recusaram a implantar essa reforma. O “Conselho de Ciências” do Japão, que reúne mais de 2 mil pesquisadores e cientistas, expressou sua profunda inquietação com a reforma, e ressaltou “o papel essencial e único das ciências humanas para a comparação crítica e a reflexão sobre a maneira que os seres humanos e a sociedade se relacionam. Todo e qualquer rebaixamento das ciências humanas e sociais levaria a uma perda da riqueza do ensino superior japonês”.
Surpreendentemente, a recusa não veio apenas do mundo acadêmico. A Keidaren (Federação do patronato japonês, muito mais poderosa e esclarecida que a Fiesp e a Fierj juntas) criticou a reforma e declarou “esperar que os estudantes e jovens diplomados possam resolver problemas com ideias que englobam diversas áreas das ciências humanas”.
A justificativa econômica para excluir as disciplinas de humanidades das escolas e universidades é uma farsa. O motivo dessa desfaçatez é ideológico: atrofiar políticas públicas, da qual a formação humanista é um elemento basilar.
No fundo, trata-se de uma junção nefasta, que une o neoliberalismo ultraconservador com uma ideologia retrógrada, amparada por um fundamentalismo religioso. Essa junção é uma premissa da barbárie, e aponta para o colapso do humanismo.
“O núcleo do humanismo”, como diz Edward Said “é a noção secular de que o mundo histórico é feito por homens e mulheres, e não por Deus, e que pode ser compreendido racionalmente. O conhecimento histórico é baseado na capacidade do ser humano de criar conhecimento, em oposição a absorvê-lo de forma passiva, embotada, conformista” (1).
O discurso e as práticas anti-humanistas são também anti-intelectuais, pois pretendem abolir o que o filósofo italiano Gianbattista Vico chamava de “autoconhecimento”: a capacidade de conhecermos melhor o que nós mesmos fazemos e formamos – a História.
E o autoconhecimento é, ou deveria ser inseparável da autocrítica, pois ambos são essenciais para a formação humanista. As disciplinas de humanidades no ensino médio e na Universidade permitem aos jovens o autoconhecimento e a autocrítica, e estimulam a reflexão sobre a sociedade e o processo histórico, e não apenas brasileiros. A leitura de um bom livro sobre a escravidão dá aos jovens a compreensão das iniquidades do país.
Tudo isso fala diretamente da formação educacional e da construção de uma sensibilidade em relação aos outros. A literatura, a história, a filosofia e a sociologia ocupam um lugar central nessa formação.
nota
1
SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 29.
sobre o autor
Milton Hatoum, arquiteto formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, é escritor, autor de um Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado e diversos outros livros, ganhadores do Jabuti e outros prêmios importantes.