Essa reflexão poderia começar com um trecho de uma canção que dizia:
Mas se depois de cantar
Você ainda quiser me atirar
Mate-me logo, à tarde, às três
Que à noite eu tenho um compromisso e não posso faltar
Por causa de vocês (1)
O escritor Paul Valéry era um poeta cético. Tinha a convicção de que a história não pode ensinar nada aos homens. Disse isso no fim do século 19 – em ensaio publicado no seu Regards sur le monde actuel (2) –, sem saber que a primeira guerra mundial e, principalmente, a segunda guerra mundial seriam a prova de que estava certo. Infelizmente, a humanidade parece não evoluir. Dá voltas, em círculo e repete seus erros com convicção, podendo retroceder, involuir. Nada mais próximo da realidade política brasileira nos últimos anos. Nosso presente é um movimento vertiginoso de queda em um abismo oposto àquilo que denominamos como futuro. Mais do que nunca necessitamos de horizontes, de perspectivas, de projetos de futuro.
Na visada de Valéry, haveria algo previsível no futuro: a persistência da natureza humana e de seus equívocos. Essa persistência poderia ser denominada como inércia, em uma analogia mecanicista. Haveria na humanidade, assim como na matéria, uma resistência à modificação de seu estado de movimento (ou de ausência de movimento). O futuro seria assim, ao menos parcialmente previsível, se, porventura, como humanidade, estivermos incluídos nele.
Em 1930, Henri Bergson, filósofo então premiado com o Nobel de Literatura (1927), reconhecia, entre seus contemporâneos, o anseio de pensar o futuro no período entreguerras, no texto “O possível e o real”. Ao repórter que lhe perguntara como seria a grande obra dramática do futuro, Bergson respondeu: “Se eu soubesse como será essa grande obra dramática, eu a faria” (3). Poderíamos dar um pouco mais de precisão a essa resposta ajustando o tempo verbal da ação da seguinte forma: eu saberia, se a tivesse feito.
Como seria um diálogo entre Bergson e Valéry sobre o parcialmente previsível e o imprevisível com relação ao futuro do mundo hoje e do Brasil, em particular?
Bergson entendia o tempo, como duração ininterrupta, era a criação contínua de imprevisível novidade. Assim, se havia algo possível de ser antecipado seria a convicção de que lá estaria: “o imprevisível nada que muda tudo”. O tempo seria assim essencialmente elaboração do porvir, o que confronta qualquer noção platônica de que haveria uma “preexistência do futuro na forma de ideia”.
O artista – assim como a natureza – cria o possível ao mesmo tempo em que cria o real, isto é, enquanto executa sua obra. Ou enquanto delineia e modela seu projeto, como arquiteto ou projetista, trabalhando sobre a máxima materialidade da obra antes de sua construção. O artista, assim como todos nós que criamos continua e cotidianamente, opera no real, criando formas que gradualmente avançam no imprevisível e, simultaneamente, concebem um previsível no instante passado. Este previsível que se lança para trás, que se constrói como memória, invertido no tempo, pode dar margem a uma ilusão, a uma “miragem do futuro no passado”, como se a obra pudesse ter existido antes de existir, desconsiderando que “o próprio ato, ao se realizar, por mais que realize algo desejado e, por conseguinte, previsto, nem por isso deixa de ter sua forma original”.
“Devolvamos o possível ao seu lugar”, dizia: “a evolução torna-se algo inteiramente diferente da realização de um programa”. Sim, a teoria da evolução darwinista embasava o entendimento bergsoniano do tempo, avesso à realização de um “design inteligente”, contrário à ideia de um logos que já teria tudo engendrado. A teoria da evolução exemplificava, de forma didática, a elaboração temporal imprevisível, a princípio, que só pode ser delineada como uma operação de paleontologia, a posteriori.
A partir dessas considerações poderíamos revisar a proposição de Giulio Carlo Argan em Projeto e destino (2000), de se projetar:
“contra a exploração do homem pelo homem; contra a mecanização da existência; contra a inércia do hábito e do costume; contra os tabus e as superstições; contra a agressão dos violentos; contra a adversidade das forças naturais; sobretudo projeta-se contra a resignação ao imprevisível, ao acaso, à desordem, aos golpes cegos dos acontecimentos, ao destino...” (4).
Nesse sentido, o projeto se insere em uma pequena fresta de previsibilidade almejada na imprevisibilidade futura. Como uma sorte de desatino anti-fatalista. Ou de ousadia contra-sina. De antítese à tese da evidência do real. Tal qual um reflexo para manter-se de pé na iminência da queda. É assim que o projeto perpetua sua natureza heroica ou diairética, pretendendo enfrentar as contingências, ultrapassar a nossa natureza humana e ir além. O projeto tem uma potência transgressora anti-inercial. O projeto tem como motor um anseio vital: uma erótica.
Em uma visada antropológica durandiana, projetar não é uma ação ocasional exclusiva de projetistas, como arquitetos, urbanistas, designers e engenheiros, mas sim uma faculdade indispensável à nossa existência individual e coletiva (5). Projetar é uma ação reflexiva existencial cotidiana. Trata-se de um projetar-se. Tal ação, reconhecida como valor, pode instituir-se como parte de uma cultura dedicada à vida, engendrando inúmeros desdobramentos simbólicos de ações e metáforas do enfrentamento fundamental e original do projeto: o da grande angústia humana, da partida sem retorno, do inexorável, da morte.
Projetar continua sendo um lançar-se com asas precárias sobre o mar da incerteza. Um lançar-se com asas dedicadamente elaboradas no interior de um labirinto que nós mesmos construímos e que sabemos ser impossível habitar para sempre. Estamos certos de que morreremos se ficarmos inertes entregues ao acaso do enredamento labiríntico. Projetar continua sendo essa ação voluntariosa à qual nos dedicamos por inteiro, atentos, concentrando toda a nossa capacidade preditiva e construtiva, convictos de que vale a pena correr o risco de um voo improvável em direção a um futuro que, enfim, é tudo o que nos resta. Por isso seguimos tecendo nossas asas, reclusos, confinados, mas confiantes. Contra todo o peso da previsibilidade da morte, o projeto é um salto arriscado para um voo de liberdade que só alçamos com a coragem que nossos filhos nos dão. Afinal, só aprenderemos a voar quando já estivermos soltos no ar.
notas
1
BELCHIOR. Apenas um rapaz latino americano. In Alucinação (álbum), 1976.
2
Paul Valéry (1871-1945) reuniu diversos ensaios escritos desde o final do século 19 e os publicou em 1931. VALÉRY, Paul. Regards sur le monde actuel. Paris, Librairie Stock, Delamain et Boutelleau, 1931.
3
BERGSON, Henri. O possível e o real. In: O pensamento e o movente. São Paulo, Martins Fontes, 2006.
4
ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo, Ática, 2000, p. 53.
5
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
sobre o autor
Artur Simões Rozestraten é arquiteto e urbanista (FAU USP, 1996), livre-docente (FAU USP, 2017), BPE Fapesp (18/10567-1) junto ao Centre Max Weber – Laboratoire de Sociologie Généraliste, Université de Lyon, França (2019-2020). Coordenador do grupo de pesquisa CNPq (RITe) associado ao Centre des Recherches Internationales sur l’Imaginaire (CRI2i). Autor de Representações: Imaginário e Tecnologia” (Annablume/Fapesp, 2019).