Um colega arquiteto publicou recentemente seu projeto executivo aprovado para construção de um centro de eventos no interior de São Paulo. As plantas detalhadas mostravam áreas comuns, um café e refeitório, e um grande auditório. Mesas coletivas para almoço, e milhares de lugares disponíveis para sentar e assistir aos shows, palestras e reuniões no anfiteatro. Muitas cadeiras para atender muita gente. Há meses isolada em casa durante a quarentena, fiquei hipnotizada por aquela imagem na minha frente, uma mistura de saudosismo e repúdio/medo da aglomeração. Mas o projeto estava aprovado. Aprovado com parâmetros dos velhos tempos. Já fiquei imaginando o pessoal da administração tirando poltrona-sim-poltrona-não para se adaptar às novas regras. E o gestor indignado dizendo que comprou um projeto para atender ao dobro do público, e assim nunca bateria sua meta. Chegar ao limite máximo de cadeiras disponíveis (confortavelmente) em um auditório é uma façanha para poucos designers que se submetem a horas em um jogo de encaixe. Será que vamos continuar a projetar dessa forma?
Deixei a prancheta há anos, mas nunca parei de pensar na nossa relação com o espaço. “O urbanismo está em alta!”, comemorava uma amiga por telefone, dizendo que eu não deveria me preocupar mais com falta de emprego. O urbanismo não sei, mas a especulação sobre o que vai acontecer com os espaços e construções das cidades tem sido pauta quente. A incerteza do momento atual também traz à tona o planejamento “fita crepe”. Marcações nas ruas e lojas alargando ou confinando indivíduos provisoriamente até se chegar a uma conclusão de como lidar melhor com espaço de maneira segura deixam a desejar. Delimitações de distanciamento são medidas emergenciais, e sua alta visibilidade apesar de importante no momento, também contribui para continuar escondendo e tapando problemas maiores que as cidades enfrentam há anos: moradia digna, acesso a higiene e saneamento, hospitais, escolas, comida, dentre outros.
A arquitetura monumental da esplanada em Brasília foi projetada para promover demonstrações populares. Espaço público era pensado como o espaço para uso democrático. O famoso vão da Lina Bo Bardi garantia ao projeto do Museu de Arte de São Paulo uma área livre para manifestações, um respiro em plena Avenida Paulista. O vão, o vazio, foram desenhados para ser cheios. O desenho do projeto conta com a ativação desses espaços através de seus usos. Ainda hoje queremos fazer jus a essa causa. Mas estamos democraticamente divididos, e o lugar do protesto está sendo repensado por ora. Difícil imaginar o que pode substituir as demonstrações in loco. Difícil ignorar os efeitos devastadores que estas demonstrações in loco podem ter. A discussão acontece agora, enquanto vivemos o ápice de uma crise de saúde, mas seria ingênuo achar que seus efeitos não vão continuar (ou voltar) a nos assombrar. Mais uma vez, me vejo dividida entre a saudade e o medo das aglomerações.
Arquitetxs: será que vamos começar a seguir outros princípios de projeto ao desenhar novos espaços? Os simbolismos e seus significados estão mudando. O vazio não é mais para abrigar a multidão. E eficácia de um auditório não se dá mais com um maior numero de assentos. O higienismo do século 19 (1) – com toda sua gloria e rejeição, seu elitismo e preconceito – se reavive em um novo livro de regras para como projetar nossos espaços. Por enquanto só estamos grudando adesivos no chão para ver se essas novas ideias “vão colar”. Mas também já aprendemos que uma boa arquitetura quebra as regras. O manual do Neufert (2) não apenas tem que ser repensado e adaptado, mas extrapolado. O desenho de um espaço de qualidade consegue construir vãos maiores. Aprendemos que não adianta impor ou tentar prever o comportamento que usuários vão fazer de um lugar. Aprendemos que só especular sobre o futuro dos espaços não é “ fazer urbanismo”.
notas
1
Referência às reformas de Paris (1853) por Barão Haussmann.
2
Neufert aqui se refere ao manual de projetos escrito e publicado em 1936 pelo Alemão Ernst Neufert (1900-1986), arquiteto conhecido por sua carreira na Escola Bauhaus, trabalhos com Walter Gropius e Adolf Meyer. Traduzido e usado mundialmente, o manual universalista de Neufert estabelece regras, padronizações, e boas praticas da arquitetura a partir de estudos detalhados visando um usuário “ideal”. Ver: NEUFERT, Ernst (1936). Arte de projetar em arquitetura.
sobre a autora
Laura Belik é doutoranda em Arquitetura pela Universidade da California, Berkeley, Mestre em Design Studies pela Parsons – The New School (Nova York, 2016), e formada como arquiteta e urbanista pela Escola da Cidade (São Paulo, 2013).