Uma das principais operações da arte moderna, se não a principal, foi a elaboração de estratégias formais para o plano da arte ganhar o espaço da vida. Duas das mais conhecidas dessas estratégias são contemporâneas entre si, porém operacionalmente distintas. Tanto o processo de tridimensionalização do plano pictórico como o processo de decomposição planar da massa sólida escultórica são praticamente simultâneos e resultam em um espaço que não mais emoldura ou envolve a obra, mas que a atravessa e a modifica, ou seja, espaço e obra deixam de ser entidades autônomas entre si e passam a ser uma coisa só.
Para ilustrar os dois procedimentos citados, tomemos como primeiro exemplo a “Guitarra” (1912/1913) de Picasso, composta por finas folhas de metal recortadas e fios de arame. A casca oca do violão agora é decomposta em planos ora paralelos ora perpendiculares entre si. Mesmo ganhando o espaço, o suporte da “Guitarra” é a parede, não o pedestal ou a base. A “Guitarra” antes representada sobre o plano (mesmo como colagem) agora salta para o espaço real que, por sua vez, também a invade.
O “Contra-relevo” (1914), um arranjo dinâmico de materiais elaborado por Vladimir Tatlin, subverte a lógica formal acadêmica da pintura e da escultura ao instalar no canto da sala de exposição um conjunto de folhas metálicas retorcidas entremeadas por um feixe de cabos flexíveis suspensos e fixados sob tensão nas duas paredes ortogonais. Do mesmo modo que a pintura se afasta da parede, a escultura salta do chão.
A decomposição moderna do sólido em partes ou planos consiste em procedimento elementar da formalização de uma relação de indistinção disciplinar entre obra e espaço. A obra do escultor e desenhista mineiro Amilcar de Castro (1920/2002) intenta reduzir ao máximo as tais operações necessárias à espacialização do plano ou, ao contrário, à redução do volume à condição de plano. Esse processo se reduz a duas operações elementares: corte e dobra. Qual seria a operação mais simples para estabilizarmos uma folha de papel sobre um plano? A dobra. Qual seria a operação mais simples para trazermos o espaço, antes exterior, para o interior da obra? O corte.
O campo da escultura construtiva moderna brasileira pode ser compreendido a partir das obras de três artistas: Amilcar de Castro, Franz Weissmann e Mary Vieira. As obras de Weissmann e Mary Vieira, apesar das diferenças, revelam uma beleza mais “gestáltica” no sentido da busca de uma perfeição lastreada pelo conforto visual. As obras projetadas (sim, projetadas) por Amilcar de Castro padecem da particular ambiguidade de pertencerem a dois mundos distintos e aparentemente inconciliáveis: a dimensão universalizante da geometria construtiva e a crueza hostil e sedutora do ferro exposto ao tempo cujo peso parece querer enraizá-lo ao lugar, à terra. A pátina de ferrugem (o tempo) e a terra (o lugar) são os elementos que justamente conferem um caráter particular (e aí diz respeito a nós) ao pressuposto elementar da abstração construtiva: a autonomia da forma e da sua potencial capacidade de reprodução.
Na trajetória de Amilcar, as operações do corte e da dobra podem ocorrer isoladas em obras distintas: planos só cortados ou planos só dobrados, ou em alguns casos, apenas sutilmente vincados. É certo que do ponto de vista operacional, a solda de dois planos de ferro maciço é mais simples (ou menos complexa) que a dobra, mas a solda é a junção de duas partes que formam uma terceira cujo aspecto deve insinuar a sensação de inteireza. A questão é que a solda de duas partes configura uma ação contrária ao sentido mecânico e conceitual do trabalho do artista. Se a dobra é ação mínima para transpor o plano ao espaço, é assim que deve ser, mesmo que o plano seja uma placa de ferro com cinco centímetros de espessura. E a realização dessa ação só é possível graças ao domínio do uso do calor e do maquinário pesado da indústria siderúrgica.
A recorrência das grandes superfícies de ferro sem acabamento é o aspecto que comumente aproxima as obras de Amilcar de Castro e do escultor estadunidense Richard Serra. Contudo, as torções e os desaprumos de Serra provocam no sujeito a sensação de instabilidade que parece não ser o objetivo de Amilcar de Castro. Seus planos cortados e dobrados assumem a controversa condição de portais, sendo assim, despertam no sujeito o inconsciente e irresistível desejo de aproximação, de “passar” pela escultura. Por mais que a ideia do portal, do ponto de vista do seu sentido hierarquizante, seja diametralmente oposta ao pressuposto moderno do espaço contínuo, devemos concordar que se o objetivo da escultura moderna foi tirar o espaço como mero contorno de si mesma, nada mais moderno do que poder “passar” pela escultura.
Nas peças onde não há dobra, mas apenas corte, o plano se estabiliza verticalmente graças ao ganho de ainda mais espessura para que não tombe nem para um lado nem para o outro. Os cortes nessas peças de grande espessura, que já assumem a proporção de blocos e não mais de planos, ganham aspecto de fresta, cuja esbeltez quase não permite perceber a luz do outro lado da peça. Esse corte-fresta soa como uma marcação, uma linha, um desenho. Quando o corte “sangra” a peça maciça de uma extremidade à outra, a linha, antes uma ação sobre a peça, torna-se o encaixe entre duas peças resultantes do corte daquele sólido original. Esses prismas férreos de Amilcar ganharam a escala do edifício no projeto para a sede do Grupo Corpo (não construído), vencedor de concurso realizado em 2002, elaborado pelos arquitetos Alexandre Brasil, Carlos Alberto Maciel, Éolo Maia e Jô Vasconcelos, tendo Amilcar de Castro como consultor da “solução plástica-estrutural”.
O clima e os limites de oxidação do ferro fazem com que as superfícies de suas obras revelem uma profundidade na qual camadas de tempo podem ser entrevistas. Para além dos movimentos gráficos precisos, é justamente na manutenção intencional da condição precária da matéria bruta que reside a ambiguidade e o próprio sentido cultural da obra de Amilcar de Castro. Sob esse ponto de vista, poderíamos dizer que o ferro e o concreto são materiais que parecem ter naturezas de superfície parecidas. Ambos nasceram para absorver e dignificar os efeitos do seu próprio abandono, como as ruínas de um artefato inconcluso, seja ele urbano, seja na natureza, como um corpo que mantém sua dignidade e sua altivez apesar das adversidades. Parece que a obra de Amilcar de Castro é mesmo uma lição de comportamento para o Brasil.
notas
NE – texto publicado originalmente na página Facebook do autor.
1
BRASIL, Alexandre; MAIA, Eólo; CASTRO, Amilcar de; VASCONCELOS, Maria Josefina; MACIEL, Carlos Alberto. 4º Prêmio Usiminas Arquitetura em Aço. Projetos, São Paulo, ano 02, n. 016.01, Vitruvius, abr. 2002 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/02.016/2141>.
sobre o autor
Rodrigo Queiroz é arquiteto (FAU Mackenzie, 1998), licenciado em Artes (Febasp, 2001), mestre (ECA USP, 2003), doutor (FAU USP, 2007) e professor livre-docente do Departamento de Projeto da FAU USP. Curador de exposições de arquitetura moderna, tais como “Ibirapuera: modernidades sobrepostas” (Oca, 2014/2015), “Le Corbusier, América do Sul, 1929” (CEUMA, 2012), “Brasília: an utopia come true”, (Trienal de Milão, 2010) e “Coleção Niemeyer” (MAC USP, 2007/2008).