“Matar o mensageiro” é uma expressão que teria tido origem na decisão de Dario III, rei da Pérsia, de executar o oficial que lhe levou a notícia da derrota de seu exército por Alexandre da Macedônia.
Certamente ele não foi o único soberano a mandar matar portadores de más notícias. E essa decisão sempre teve ao menos duas componentes, uma pessoal, e outra de cálculo político.
A pessoal provém da irritação de quem se crê “soberano” (aquele que carrega o poder) e vê a realidade contrariar seus desejos, que, para ele, deveriam estar acima de tudo, por serem a expressão das necessidades da pátria e da vontade de Deus.
A componente política, menos pomposa e mais realista, passa pelo cálculo da necessidade de evitar que outros, além do soberano, tenham acesso à informação. Porque ela tem o efeito corrosivo de mostrar que o mandatário não está, ao fim e ao cabo, no exercício do poder absoluto sobre a vida.
Os mensageiros nos dizem que um brasileiro morre a cada minuto pelos efeitos da “gripezinha”; que já são mais de 35 mil mortes no Brasil e que, ao contrário da maioria dos países, nossas curvas de contaminação e óbitos ainda estão em crescimento exponencial.
Se todos receberem a mensagem, correm o risco de concluir que a política de desprezo pela ciência, pelas práticas consagradas pela medicina e pelo princípio humanista de que vidas humanas têm valor central numa sociedade civilizada, nos empurra para um desastre de dimensão histórica.
Como (ainda) não é possível matar fisicamente todos os que, no Brasil e fora dele, insistem em nos avisar que estamos sendo fragorosamente derrotados nessa batalha, então cabe ao soberano determinar que a mensagem não chegue até nós.
Substituir médicos e gestores de saúde por militares; mudar o horário de divulgação dos números para garantir que “não haverá mais manchetes no Jornal Nacional”; mudar a maneira de calcular os mortos, são apenas modalidades atuais de matar o mensageiro.
Esta semana trouxe, entretanto, um curioso problema para essa relação. Que fazer quando o mensageiro é o soberano do soberano?
Trump, o único que está, para o sub-soberano tropical, acima de (nossa) pátria, aquele que recebeu com desdém o I love you do sabujo do sul, mandou avisar que, se ele seguisse nos Estados Unidos, as mesmas práticas do Brasil (e da Suécia) o número de mortos ali poderia ultrapassar um milhão.
Que fazer quando o guia maior, o espelho de todas as ambições, o soberano ante quem, voluntariamente, o sátrapa local faz a genuflexão, avisa de viva voz, que seu exército caminha inexoravelmente para o massacre?
nota
NA – publicação original do artigo: MARTINS, Carlos A. Ferreira. Matem os mensageiros. Jornal Primeira Página, São Carlos, 07 jun. 2020.
sobre o autor
Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do IAU USP São Carlos.