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drops ISSN 2175-6716

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Carlos Martins, professor do IAU USP São Carlos, comenta o caráter democrático da monumentalidade moderna.

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MARTINS, Carlos A. Ferreira. Brasília e o século 21. Drops, São Paulo, ano 23, n. 184.01, Vitruvius, jan. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/23.184/8689>.



Uma velha tese historiográfica indicava que a decisão de construir Brasília, presente no imaginário político nacional desde a Inconfidência, foi acelerada como resposta aos acontecimentos que se sucederam ao suicídio de Getúlio.

Como se sabe, ao tomar conhecimento do martírio do presidente, para alguns o seu mais brilhante gesto político, multidões saíram às ruas do Rio de Janeiro numa explosão de dor e revolta, destruindo carros de polícia, invadindo e queimando sedes da UDN e de jornais antivarguistas.

Essa reação inesperada e massiva teria adiado por uma década o golpe conservador e antinacional e, ao mesmo tempo, convencido as elites conservadoras da necessidade de mudar a capital para o centro geográfico do país, isolando o poder a centenas de milhares de quilômetros das massas dos grandes centros urbanos.

O caráter do espaço urbano concebido por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, tem sido caracterizado, ao longo das ultimas seis décadas, como a cidade modernista por excelência e adjetivada como democrática ou autoritária segundo os diferentes pontos de vista, mas sempre com renovada paixão.

Um famoso historiador de arquitetura chegou a considerar o Golpe Militar de 1964 como a comprovação factual da natureza inerentemente autoritária de Brasília e de seu centro cívico.

As 40 mil pessoas que ocupavam, no sentido pleno e forte do termo, a Praça dos Três Poderes, e as cerca de 300 mil que coloriam de vermelho toda a extensão da Esplanada dos Ministérios, impõem uma reavaliação tanto daquela hipótese inicial como deste juízo

Se o Eixo Monumental não é ocupado com a regularidade da Avenida Paulista ou da Cinelândia, há momentos em que aquela refinada articulação de espaços internos e externos se reafirma como uma das mais potentes materializações do pouco conhecido e muito maltratado conceito da monumentalidade democrática, formulado no início dos anos 1940 sob o nome de Nova Monumentalidade.

Nova, exatamente por que se propunha em oposição à monumentalidade dos espaços nazifascistas, com seus edifícios e espaços públicos cuja escala agigantada enfatizava a dimensão do Estado e a pequenez do indivíduo.

Democrática, porque para seus formuladores a monumentalidade moderna, se concretizaria no processo de identificação “do homem da rua”, do homem comum, com os novos edifícios e espaços e com os valores históricos e sociais que eles representavam.

Nessa perspectiva, Brasília é a capital da nova monumentalidade. Não porque tenha concretizado a utopia da sociedade em que ministros e candangos morariam na mesma superquadra, o que obviamente não ocorreu.

Mas porque alguns de seus traços identificadores (o formato de avião do Plano Piloto, o perfil do Congresso ou a linha ao mesmo tempo singela e refinada das colunas da Alvorada) se tornaram símbolos reconhecidos e assumidos como seus por uma parcela extraordinária da população brasileira, de todas as classes sociais.

Lúcio Costa, no memorial de apresentação do Plano Piloto define monumental como aquilo que tem consciência do que é e do que representa.

Os mais jovens não terão visto o traço das colunas do Alvorada como desenho de carroceria de caminhão, mas minha geração sabe que eles viajaram o país inteiro. E talvez não o tenham encontrado como “decoração” (no sentido original, de elemento de afirmação de decoro, de dignidade) de casas humildes nas periferias de todas as cidades do país.

Mas esse mítico símbolo do renascimento que a palavra alvorada supõe estava lá, e provavelmente ainda está em alguns dos rincões afastados deste país, que voltam, pela terceira vez, a estar representados por um seu semelhante no centro do poder nacional.

Se o triangulo isósceles da Praça dos Três Poderes é a materialização espacial do principio de separação de poderes, definidora da visão clássica da democracia, menos óbvio é que a expressão “subir a rampa” tenha se incorporado ao linguajar nacional como equivalente a assumir o poder.

E essa mesma expressão fica a partir de agora requalificada pela extraordinária mudança na “liturgia” da posse que o agora ex-presidente, involuntariamente, possibilitou.

Se a arquitetura qualifica o ato social, este a transforma. A imagem de uma mulher negra, catadora de reciclável, transmitindo a faixa presidencial a Lula se incorporará à própria imagem do Palácio do Planalto, como “uma espécie de pátina”, para usar uma expressão do historiador e ex-prefeito de Roma, Giulio Argan.

A diplomação e a posse no Congresso são rituais da democracia formal. A transmissão da faixa pelo anterior detentor do poder presidencial também o era. Mas no primeiro dia deste ano, ela recuperou e materializou a ideia de que todo poder emana do povo. A transmissão da faixa presidencial nunca mais será a mesma.

O parlatório do Planalto, evocação das escadarias do Senado Romano, reivindicou ontem a dignidade do país e deixou claro que o povo brasileiro não cabe num cercadinho.

Lula atualizou, mais uma vez, o projeto de um Brasil moderno. Difícil e contraditório, caberá a cada um de nós demonstrar se ele será possível ou continuará condenado a um futuro longínquo.

Por ora basta saber que Lula em Brasília e Bolsonaro em Orlando constituem uma extraordinária metáfora da espacialidade como visão de mundo.

sobre o autor

Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.

 

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184.01 arquitetura e poder
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